2019. Ouvimos pássaros, depois zumbidos. A câmara abre para a cabeça de uma vitela morta cheia de insectos regalados. Afastamo-nos, revelando o cadáver pendurado como isco, seguindo uma mosquinha digital que acompanha o movimento de recuo da câmara. Depois esta sobe o tronco de uma árvore para nos mostrar um homem sentado numa plataforma de madeira. Tem uma mão sobre a perna e a outra segura uma revista que lhe cobre a face. Não lhe vemos o rosto, mas já sabemos há muito quem é. Queria destacar o pneuzito do herói (vide imagem abaixo), que a câmara logo revela e que faz questão de ver cada vez mais de perto, enquanto retira algo que come de uma lata, isto antes de nos mostrar a silhueta barbuda e chapéu safari. Nicolas Cage, pesadão, é um ícone, um homem de carácter instantâneo, seja ele um alcoólico, um lenhador, um capitão, um apaixonado, um herói ou um gajo. Ou um caçador barra vendedor de animais selvagens como neste Primal (Instinto Predador, 2019).

1949. Um homem de meia idade, de olhar mortiço é o actor escolhido para fazer de Sansão no épico de Cecil B. DeMille, Samson and Delilah (Sansão e Dalila, 1949). É Victor Mature que se passeará pelo filme como o grande e pouco perspicaz touro de coração doce, só tanga e músculos, como um He-Man dos tempos bíblicos. A certa altura, depois de dobrar a lança que o pretendente da sua amada lhe havia ofertado (e de ter atirado a caixa de madeira do presente para trás da varanda, com um baque bem sonoro, quebrando qualquer ilusão de grandeza verosímil do épico tecnicolor), o nosso herói conduzirá uma carruagem de dois cavalos a toda a velocidade em direcção a uma caçada de leão, com a insinuante Dalila (Hedy Lamarr) agarradinha a ele. É então que se dá o maravilhoso diálogo de arrepiar o cabelo dos contemporâneos:
Lamarr: Faster Samson, faster! / Mature: Hold tight to the rallie! / Lamarr: I hold tight to you! / Mature: Be careful! You’ll fall out! / Lamarr: No, I won’t. Semadar doesn’t love your strenght like I do. I love to feel the power of your arms! / Mature: I’d rather feel a wild cat on my back. / Lamarr: Will you tame me, Samsan? / Mature: I’ll use you for lion bate. / Lamarr: I don’t see any lion.
Que têm estes filmes em comum, afinal? Para já, as duas cenas terminam com uma luta entre homem e felino. Em Primal um jaguar branco, impecavelmente digital, movendo-se rapidamente na luta contra Cage. Em Samson and Delilah logo aparecerá um leão bem real, o da caçada, com quem Sansão (ou um duplo seu) se debaterá numa série de acrobacias que haviam de fazer as delícias do stunt man que dirigiu o filme de 2019 (Nick Powell conta apenas com 2 filmes na realização e 119 como stunt man, segundo o IMDB). As duas lutas são encenadas de forma bem diversa: a primeira procura elaborar sobre as façanhas do realismo com que o digital consegue mostrar o perigo e os movimentos do predador; a segunda, infinitamente mais lenta, procura disfarçar o facto de ter-se recorrido a um domador de leões verdadeiro e sublinhar a façanha do homem que acabará torcendo o gasganete ao pobre rei da selva. Resumidamente, em Primal a luta é um jogo de feira, um efeito para entusiasmar; já no filme de DeMille a luta procura-se real, e é o falhanço da sua seriedade o que dá vontade de rir.

Esta comparação permite perceber a distinção que Susan Sontag faz no seu célebre ensaio Notes on Camp (1964), procurando definir o conceito. Escreve ela que o camp é uma espécie de lente que bloqueia o conteúdo. Isto é, algo que é valorizado não pelo seu conteúdo sério, ligado aos valores da coerência, da moderação, da harmonia, mas sim pelo seu estilo, relacionado a um gosto pelo exagero, pelo artifício, pelo excesso. Mas a escritora americana faz uma distinção que nos permite talvez dizer que Primal é uma obra muito menos passível de ser considerada camp do que o épico de DeMille. Sontag diz que o camp está contra a seriedade do seu conteúdo, mas é sério no envolvimento com uma experiência teatralizada. Por isso, a ironia, a sátira, o comum “bad movie” não chegam para uma obra ser camp. O camp, na sua vitória do estilo versus conteúdo, é algo que procurou atingir a profundidade da emoção, a seriedade pela intensidade do seu glamour e pathos. Só que falhou. Assim, podemos compreender que Primal é um filme que nunca aponta à seriedade, e deve antes ser visto como um revisionismo irónico dos filmes de acção dos finais dos anos 80 e início dos 90. Já Samson and Delilah arrecadando 28 milhões para a Paramount só nos Estados-Unidos tinha essa ambição desmedida dos grandes épicos, do espectáculo que se compraz na sua intensidade. Isso é camp.
Nicolas Cage tornar-se-à ícone de um certo tipo de cinema paródia, um excesso grotesco.
E depois, como o templo que Sansão faz ruir no final, o épico de DeMille também ruiu num certo sentido de seriedade. O tempo fez-nos ganhar distância e sorrir diante de uma cabeleira comprida de Sansão, a mandíbula de burro com que este despachava dezenas de filisteus, frases como “consegues domar-me, Sansão?”. Contudo, porque não havia, por parte de realizador e actores, distanciamento nem ironia críticas dessas tentativas que o tempo revelou falhadas, Samson and Delilah permanece hoje uma obra esplendorosa – apesar e por causa – do seu camp. A tristeza, a queda, o remorso, a injustiça, o amor não correspondido, permanecem verdadeiros em todo o seu magnífico excesso estético. Mas quantos excessos hoje nos dão vontade de rir, sonhar, chorar? Poucos.

A dada momento os filisteus cegam Sansão. A metáfora consuma-se: é quando já não consegue ver que este enxergará melhor. Amigos e traidores. Vem à mente outra vez a ideia do camp como lente que ofusca para ver mais. E também, talvez, o camp como problema de distância (focal?). Por vezes, escreve Sontag, a proximidade das obras – a seriedade e importância dos seus temas – não nos permite ver o seu genial falhanço. O tempo pode mudar isso. O tempo liberta a obra da sua relevância moral, levando-a a reconhecer uma sensibilidade camp. O desejo de profundidade intensa, converte-se numa profusa libertação estética. Basta pensar no que o tempo faz com a banhinha que surge no abdómen de Nicolas Cage. Ele torna-se ícone de um certo tipo de cinema paródia, um excesso grotesco, já longe da sua glorificação de persona camp, da sua beleza superficial, do seu impecável casaco cobra em Wild at Heart (Um Coração Selvagem, 1991), da sua barba por aparar e suados pêlos do peito em Moonstruck (O Feitiço da Lua, 1987) ou mesmo as olheiras e a visão esgazeada em Leaving Las Vegas (Morrer em Las Vegas, 1995).