Terrence Malick volta a olhar para o passado, mesmo que como forma de falar sobre o presente, e volta a ser feliz, mesmo que o assunto que aborda seja grave. Depois da sublime experiência autobiográfica com The Tree of Life (A Árvore da Vida, 2011), Malick adaptou a sua linguagem poética a situações contemporâneas, que resultaram recentemente em filmes menos entusiasmantes, em que essa linguagem parecia estagnada, condenada a uma repetição e esticada até à exaustão. Mas com este novo filme, com o regresso a uma narrativa mais linear e menos abstracta, Malick volta a encontrar uma história que lhe permite potenciar todas as possibilidades dessa linguagem na transformação do quotidiano em sublime, na exteriorização dos tumultos interiores, e que eleva novamente esta visão do cinema como forma elegíaca de representar uma vida.

Malick sempre se mostrou disposto a arriscar, a explorar os limites de uma forma estética, de uma representação fragmentada da realidade como aproximação à fragmentação da memória. Esta é também uma forma de representar como esses momentos recordados se fixam na nossa criação pessoal de uma mitologia dos momentos que acumulamos ao longo da vida, que sobrevivem assim na nossa mente. Com The Thin Red Line (A Barreira Invisível, 1998), redefiniu o seu cinema após um longo interregno, aproximando-se de uma experiência sensorial, num apurado trabalho de montagem, de olhares sobre detalhes e sobre a natureza, onde procurava um significado maior do que o que era visível. Sobre as imagens, um texto quase sempre em voz-off de divagações líricas, e sobretudo, sobre a outra característica dominante do seu “novo” cinema, o tema das dúvidas do coração e da mente, sempre lado a lado com uma fé que questiona a natureza do homem.
Se o estilo visual e contemplativo de Malick tem sido amplamente criticado nos últimos tempos, também é verdade que com os seus filmes mais recentes como Knight of Cups (Cavaleiro de Copas, 2015) e Song to Song (Música a Música, 2017) essa estética tinha sido levada ao limite e parecia esgotada, quase uma paródia de si mesma, porque simplesmente não funciona sem uma história que a suporte – sem isso, é apenas vazia, uma habilidade técnica, um devaneio. Porém, com este novo filme, voltamos a encontrar uma adequação simbólica da forma ao conteúdo: os momentos fragmentados e as pequenas elipses encontram paralelo num homem fragmentado, tal como o seu interior, dividido e estilhaçado pela dúvida; e a imersão sensorial, prova de mais uma proeza de Malick (e do belíssimo trabalho de som e de banda-sonora), acompanha também o seu estado de espírito, que tenta reter as memórias a todo o custo, mesmo que como pedaços intangíveis.
Há um pintor, numa igreja, que teme o que possa acontecer à verdade, mas que ainda não encontrou a coragem necessária para a pintar – essa mesma coragem que Franz procura na religião mas que encontrará no amor.
O filme começa com uma assombrosa sequência, uma montagem de imagens de arquivo, a preto-e-branco, que situam o período temporal em que decorre a acção: um avião nos céus encobertos, multidões nas ruas a sinalizar a passagem de carros militares com a saudação nazi, coreografias de soldados a marchar com tochas no escuro, intercalando imagens de Hitler, a ameaça que escurece o futuro. A história que se segue, baseada em factos reais, acompanha um homem austríaco e a sua família perante uma decisão, talvez a maior escolha do século passado (e muito actual, ainda): o que fazer quando se instala a dúvida sobre se aquilo a que todos à nossa volta aceitam como normal – do que uma maioria decide seguir – nos parece fundamentalmente errado, um equívoco trágico? O que fazer para contrariar um movimento com essa força, especialmente se qualquer oposição pode colocar em causa a nossa segurança, sobrevivência mesmo? Será preferível sofrer uma injustiça, ou praticá-la? E onde encontrar a coragem para seguir o que acreditamos?
Como o filme explica, durante a Segunda Grande Guerra, todos os homens austríacos chamados para o exército eram obrigados a jurar lealdade a Hitler. Franz, o protagonista do filme, vive uma existência pacata e feliz com a sua família na sua quinta, numa pequena aldeia no meio das montanhas austríacas; o resto do mundo uma miragem distante – “parecia que nenhum problema poderia chegar ao nosso vale… vivíamos acima das nuvens”. Os primeiros momentos sublinham essa felicidade despreocupada, da forma a que Malick já nos habituou, com pequenas elipses e uma câmara a deslizar solenemente num embalo sensorial. Mas o mundo exterior ameaça afinal intrometer-se: ouvimos o ruído de um avião a sobrevoar o vale, e Franz é chamado à recruta militar.
Quando regressa a casa, a dúvida sobre a sua participação na guerra começa a crescer, como um mal-estar que o apoquenta. Apesar de viver numa aldeia isolada nas montanhas, longe dos horrores da guerra e sem conhecimento do extermínio levado a cabo pelos nazis, consegue sentir que algo de errado se esconde para além daquelas montanhas, que algo maior do que ele próprio ensombra o seu futuro, e que talvez só as suas convicções, por muito que anónimas, podem fazer alguma diferença. Na recruta assiste a um filme com imagens da guerra, que pretendem mostrar o avanço do exército alemão, mas que revelam – na verdade – os horrores da guerra, os cadáveres e a destruição; é o cinema, o poder daquelas imagens (tão eficaz também para, na sua propaganda, impulsionar as massas para o lado oposto), que deixam uma impressão forte em Franz. Esta é talvez uma das mais importantes ligações entre imagens e acções dos últimos tempos – como se Malick desenhasse uma linha directa entre o que um jovem Franz descobre, indefeso perante o poder do que vê naquela tela, e o rumo que decide tomar a partir daí.
Esse embate violento com as imagens da guerra (seria a primeira vez que via um filme?), encontram um aliado nos fundamentos religiosos de Franz, um homem de fé, mas acima de tudo, alguém que procura fazer sentido do mundo. São esses fundamentos que levam Franz a questionar se participar numa guerra, assassinar pessoas inocentes que defendem a sua terra, é pouco coerente com o seu cristianismo. Mas a Igreja, cúmplice silencioso, não o ajuda. Antes de ser um caminho de convicções, é um caminho de incertezas, tão presentes também no cinema de Malick (recordamos o soldado pacifista em The Thin Red Line, ou a versão adulta a questionar a sua vida em criança, em The Tree of Life).
Há uma personagem, um velho pintor numa igreja, que parece até ser um duplo de Malick no filme (ou pelo menos do papel de um artista): conta que ajuda as pessoas a imaginar o passado através de imagens de sofrimento, que procura criar compaixão, mas que estas vêm o que querem; que teme o que possa acontecer à verdade, mas que ainda não encontrou a coragem necessária para a pintar – essa mesma coragem que Franz procura na religião mas que encontrará no amor.
A partir de certo momento o filme, que é na sua maioria contado através de cartas entre Franz e a sua mulher, torna-se numa história de amor, sobre um abraço prolongado, sobre um gesto. Ao longo do filme, várias pessoas aconselham Franz: “não fizeste o mundo como ele é, também não o podes mudar”, “vinte séculos de falhanços… que diferença faz?”…mas Franz chegará à sua decisão, mesmo contra o lhe dizem dos dois lados, contra o que parece óbvio para uns e outros. No final, uma citação ajudará a colocar tudo em contexto de forma admirável. São aqueles momentos, em que Franz olha para a relva no chão e lembra-se da quinta, ou que no frio aperta a aliança no seu dedo e lembra-se do calor da sua mulher, ou que olha para o céu e imagina as nuvens por cima da sua casa, são nesses fragmentos-imagens de recordações que sobrevive a sua memória, como se a qualquer momento ele estivesse já a olhar para o passado. Quando sabemos o fim, são esses pequenos momentos de felicidade, de corações trémulos, que restam, que dão significado a tudo – e Malick volta a mostrar de forma deslumbrante como lidar com esses pequenos momentos que fazem a diferença: “agarro-me a uma memória do que conheci antes.”
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