Faz um mês que Anna Karina partiu para outras bandas. Já sem o choque da sua despedida, inesperada (79 anos), e já com a consciência do que levou a que a actriz não tenha podido acompanhar o público português aquando da retrospectiva que a Cinemateca Portuguesa lhe dedicou em Maio de 2019, é o momento certo para recordar as emanações afectivas que as imagens do cinema deixaram em três colabores do À pala de Walsh. São gestos fátuos de aproximação a um corpo que não conhecemos, mas que a “presença real” do cinema fez – efemeramente – surgir diante de nós, na intimidade da sala de cinema. O cinema arde diante dos nossos olhos, aquece-nos as mãos e toca-nos o rosto. Anna Karina alumiou-nos, e continua a aluminar-nos. Mantenhamos a chama acesa.
Anna Karina permanecerá intensa e subtil na sua forma de ocupar o espaço, de olhar a câmara – inconfundível olhar de câmara tão interpelativo, e ela tão evocativa a preencher os planos, a extravasar deles numa figura de definição sensível e aberta. Encarnou a velocidade da Nouvelle Vague, imprimiu-lhe uma leveza forte, luminescente, com uma corrente de filmes: libertária, naïve, enigmática, alegre, triste, apaixonada, e tão magnética que deixa um lastro de filmes que foram além do núcleo Godard, e um rasto de memórias de mulheres que, “Sous le soleil exactment’’, cantam. Ela cantou, ela dançou, escreveu, realizou. O imaginário recolhe um corrupio de imagens e é muito difícil fixar um filme. A vibrante Angela que estampa a cor da paixão e o jogo do desejo (Une femme est une femme); a dramática desenquadrada Nana e um olhar que chora luminoso e aberto (Vivre sa Vie), a naïve e tocante Odile, entregue ao emblemático Madison no café, e à desenfreada corrida no Louvre (Bande à Part); a beleza trágica e pecaminosa da sedutora Irmã (La Religieuse); a enigmática e destrutiva Marianne errante de amour fou convulsivo num filme-‘’campo de batalha’’ (Pierrot le Fou); Natacha a vítima de olhar penetrante, poética, entregue ao ambiente noir e experimental de uma parábola de amor futurista (Alphaville), actriz permeável à alta sensibilidade da película…
Anna Karina fixou a sua imagem, entregou-se com a paixão dos bravos. Brava e constante à representação ‘’sincera’’, será justa e profundamente “presença eterna da imagem filmada” (Robbe-Grillet).
Carlota Gonçalves
Perdoem-me o lugar comum: quando penso em Anna Karina, o primeiro curto-circuito que o meu cérebro produz é em relação às imagens de um certo filósofo do cinema. O clique “musa de Godard” é inevitável. E isso faz-me divagar sobre a própria ideia… Vejamos, a palavra “musa”, com origem na mitologia romana, traduz-se num “génio ou entidade inspiradora”. Por outro lado, significa também “mulher amada” (privilégio feminino uma vez que não existem musos, por isso os homens não têm direito a tal estatuto nas artes; quando muito, são também musas). Ora Karina não foi para Godard apenas uma destas duas formulações, mas ambas: um concentrado. Desde que a sua feminilidade se apresentou ao mundo em Une femme est une femme (Uma Mulher É Uma Mulher, 1961) – que outro título poderia assinalar melhor essa entrada? – o cinema de Jean-Luc assumiu uma jovialidade sem par, uma linguagem que parte dos olhos e do eyeliner de Karina. Ela é o rosto que a câmara venera e a doçura melancólica que nos embriaga.
Quando, nesse filme, canta as palavras que Godard (obviamente ele mesmo embriagado de paixão) escreveu, não está mais do que a verbalizar com melodia a sua natureza sedutora: “On se demand pourquoi/ Tout le monde est fou de moi/ Ce n’est pas compliqué…”. Anna Karina foi, por excelência, a Mulher-dialecto-de-cinema. Carne e espírito. Lágrimas e sorrisos.
Inês N. Lourenço
Desde a morte de Anna Karina que algumas imagens me têm rondado o espírito, como assombrações benignas; espectros visuais que, de algum modo, parecem ter deixado um lastro que até então desconhecia, mas que só agora, com o peso da morte, se dão a ver ao cinéfilo assoberbado pelas múltiplas imagens que o constroem. Essas imagens provêm de Pigen Og Skoene (“A Rapariga e os Sapatos”, 1959) de Ib Schmedes, o primeiro trabalho de Karina para cinema. O filme abriu a retrospectiva que a Cinemateca Portuguesa organizou em redor da actriz em parceria com o IndieLisboa. A curta fazia-se seguir de Vivre sa vie (Viver a sua Vida, 1962) – que vi, nesse dia, pela primeira vez em sala – mas foram as imagens do pequeno filme (quase inocente) de Schmedes que me ficaram na memória. Acima de tudo uns pés amputados pelo enquadramento, que percorrem ruas e praças. Se, nessa altura, “a rapariga nascida em Copenhaga em 1940, criada nos primeiros anos de vida pelos avós maternos num país sob ocupação alemã em anos de guerra, respondia pelo nome de Hanna Karin Blarke Bayer” (como informa Maria João Madeira no texto então partilhado), não consigo deixar de me lembrar dela não pelo nome que a tornou conhecida (dado por Coco Channel), nem pelo rosto que deixou meio mundo apaixonado, mas antes são os seus pés que recordo.
Pode parecer coisa de fetichista. Não é, ainda que o fetiche seja coisa que me alegra amiúde os dias. Antes, o que me surpreende é que a minha memória recente de Anna Karina advém de um recurso estilístico: a sinédoque; o tropo que consiste em tomar a parte pelo todo. Uns pés que anunciam tudo o resto, como que ícones de toda uma cinefilia que estava por vir e de uma vaga nova da qual ela nada sabia, nem nada adivinhava. Mas em boa verdade, a começar por algum sítio, que seja pelos pés: o fétido ponto de contacto com o solo ao qual todos regressamos. Bonitos pés, Anna, que belo perfume nos deixaram.
Ricardo Vieira Lisboa