Dezembro é o último mês do ano e com ele vêm as listas dos melhores títulos da temporada, e a desenfreada estreia de filmes que querem aproveitar a disponibilidade natalícia, as férias, o décimo quarto mês (para os que o têm) e a vaga de fundo das resoluções do ano que se inicia. Portanto, e como é natural, não conseguimos acompanhar tudo o que foi estreando na recta final de 2019 [ainda assim, leia aqui sobre Tommaso (2019) de Abel Ferrara, Zombi Child (A Criança Zombie, 2019) de Bertrand Bonello, Bacurau (2019) de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles ou ainda Dylda (Violeta, 2019) de Kantemir Balagov]. Serve esta edição dos Comprimidos Cinéfilos para pôr em dia a dose anual de Ken Loach (para não virarmos todos liberais), um cheiro tuga da Ira Sachs e o entretenimento político de Rian Johnson. Tome cada comprimido como se de uma uva-passa se tratasse e intercale com goles de champanhe.
O destino do protagonista começa logo a ser traçado na primeira cena do filme, quando este assina um contrato que não é um contrato, para começar o seu próprio negócio de entregas mas que na realidade está ao serviço de outra empresa – vicissitudes da “nova” economia. Nessa primeira cena, uma entrevista de emprego, Ricky descreve as suas diferentes experiências de trabalho, uma vida de sacrifícios e sem descanso, que perante um vislumbre de independência financeira o empurra para o que parece ser uma aliciante mudança, mesmo perante termos que parecem esconder outros significados, como “zero hour contract” e “collaborator” – antes de começar a receber, Ricky paga para trabalhar. Este é um dia-a-dia cada vez mais comum, que Ken Loach filma de forma metódica, dedicando tempo aos diferentes procedimentos e regras que Ricky tem de seguir, como quase se tratasse de um documentário. Se os primeiros tempos parecem promissores, aos poucos, o desgaste, a falta de segurança laboral e os horários cada vez mais extenuantes que o afastam do resto da família começam a revelar um preço demasiado elevado.
O filme aborda preocupações sociais recorrentes na carreira de Loach, e aproxima-se em particular do filme anterior I, Daniel Blake (Eu, Daniel Blake, 2016), no retrato do desespero de uma classe trabalhadora que não sabe o que fazer para simplesmente sobreviver de forma digna, cada vez mais abandonada pelo Estado e pela sociedade. Porém, esse filme anterior era ainda assim um filme agridoce, que permitia alguns momentos de redenção ou de solidariedade e apoio múto entre pessoas na mesma situação. Tudo aqui é muito mais agoniante, muito mais duro, sem rede de segurança, como se isso ainda fosse possível. Toda a família de Ricky acaba por ser envolvida numa espiral negativa da degradação da sua condição, e o espaço para uma qualquer salvação parece desaparecer entre paredes que se fecham: a frustração da mulher, o desamparo da filha mais nova, a rebeldia do filho. A qualidade áspera das interpretações dos actores, toscas e sem filtros, manifestado também nos diálogos expressivos, na sua forma de recorrer a chavões e linguagem crua, porque estas personagens não conseguem expressar o que sentem (e por isso, os poucos momentos de afecto são ainda mais desoladores pela sua efemeridade), colocam o filme num plano de vulnerabilidade mas também de um brutalismo imediato que é assim mais seco e desolador. É uma realidade que é aqui retratada como infelizmente normal e banal, que se torna apenas notável por repetir-se sem que nada mude, e que pelo menos Loach, perante o filme, não nos deixa olhar para o lado.
João Araújo
Como filmar um país estrangeiro? Essa é uma pergunta que se levanta, amiúde, àqueles que desejam dar a ver um local que, não sendo o seu, resultou de uma descoberta pessoal que se quer partilhada. É portanto uma operação que passa pelo olhar subjectivo daquele que vindo de fora se sente integrado (independentemente de essa integração ser de facto, ou aparente). Há portanto o risco do exótico, do cartão postal, do cinema como forma de turismo (e isso é tão mais evidente, quanto mais as capitais europeias apostam nas Film Commissions que favorecem a produção de filmes nas localidades respectivas – como ferramenta para potenciar o próprio turismo). Um dos modo de evitar essa redução do filme à mais fina das superficialidades passa pelo dispositivo meta-referencial: o filme dentro do filme. Este esquema de distanciamento formal reforça a natureza representativa do cinema e, como tal, subtrai o peso ético que um olhar exterior deposita sobre o que vê (outro esquema recorrente é a ironia – para não referir os filmes da dupla tributação, meta-irónicos). Um exemplo desta opção meta-referencial é A Religiosa Portuguesa (2009) de Eugène Green: o cineasta fez um filme sempre paredes meias com o turismo, mas que encontra na rodagem dentro da rodagem e na actriz como personagem a saída airosa para enveredar pelos seus costumeiros debates sobre a fé, o amor e a fé no amor. Lembro-me desse filme, não só porque a produtora portuguesa é a mesma deste Frankie (2019) – O Som e Fúria -, mas porque se estabelecem paralelos entre Green e Ira Sachs no modo como ambos fazem turismo e o evitam em simultâneo.
A graça maior de Frankie passa pela forma como filma Sintra, a sua mata, a sua vila, os seus monumentos históricos e as suas praias com uma espécie de enfado. Essa sensação advém, naturalmente, na narrativa, dedicada aqui a uma actriz (a Frankie do título, interpretada por Isabell Hupert a tentar ser minimalista) que convoca toda a família – que vem a contragosto – para umas férias em conjunto que são, também, uma forma de despedida. Ela tem cancro e decidiu não continuar com os tóxicos tratamentos: o ambiente é pesado (trilhado por vínculos antigos, amores interrompidos, coitos interrompidos e todo esse emaranhado de convulsões emocionais que definem uma família). E lá ao fundo, Sintra: brilhante e alegre, pululante de segredos e aventuras – que nenhum deles quer descobrir. A personagem de Carloto Cotta, guia turístico infinitamente interrompido que procura despejar o seu conhecimento para a sua audiência de desinteressados, é sintomática desta estratégia de filmar um país estrangeiro tentando contrariar o olhar turístico – mas que nunca chega a propor um olhar alternativo (porque a própria relação com Portugal não permite coisa diferente). Essa ousadia é curiosa, mas não deixa de se esgotar rapidamente (revelando aquilo que pretendia esconder – que este é um filme que se passa em Sintra mas que se podia passar noutro sítio qualquer, não fosse uma estratégia de co-produção euro-pudim – falado em várias línguas, com actores e técnicos de cada país financiador). É um filme delicado (com certeza), tocante (a espaços), cheio de considerações profundas sobre o que é amar (como todos os filmes de Ira Sachs), mas não deixa de haver aqui um despropósito na própria natureza do projecto (ou, pelo menos, na própria natureza de como este acabou por ser realizado).
Ricardo Vieira Lisboa
Rian Johnson é um realizador que parece encarar o cinema como uma arte da prestidigitação, aliás, é o próprio que se refere aos múltiplos plot twists que compõem Knives Out como truques de cartas em que o segredo está na “emotional misdirection” [que se poderia traduzir por distracção emocional]. Pois bem, se isso não havia já ficado mais do patente no então subvalorizado The Brothers Bloom (Os Irmãos Bloom, 2008) – sobre dois irmãos con artists [trapaceiros/ golpistas] – ou na lúdica matriosca de viagens no tempo que era Looper (Looper – Reflexo Assassino, 2012), esta incursão pelo género do policial de mistério ao estilo “Agatha Christie” revela, para os mais desatentos, a inteligência de Johnson, senão como realizador, pelo menos como argumentista (mestre da manipulação que sentimos como desafio). De facto, se este filme é particularmente sagaz na voltas e reviravoltas que dá ao novelo narrativo, se constrói personagens sempre no limite da caricatura aproveitando-se dos (estereó)tipos para melhor os desmontar, se faz as devidas vénias ao género e brinca alegremente com as expectativas de quem já desvendou muitos mistérios semelhante no cinema, o grande trunfo do filme, e que Johnson esconde à vista de todos, é a argúcia do seu comentário político sobre o que é a América hoje, em particular, sobre o que é a América de Donald J. Trump.
Knives Out passa-se numa mansão de um milionário que fez fortuna com a escrita de romances policiais [piscadela de Johnson a Sleuth (Sleuth: Autópsia de um Crime, 1972) de Joseph L. Mankiewicz – outro filme de argumento]. O escritor aparece morto na manhã que se segue ao seu aniversário e os suspeitos são aqueles que estiveram na festa de aniversário: a sua família (de sangue e não só). Enquanto Benoit Blanc (Daniel Craig) procura solucionar o quem-matou-quem-em-que-sala-e-com-que-objecto, o verdadeiro jogo de Cluedo faz-se sobre a conservação de poder e do dinheiro de uma classe privilegiada (em que todos, directa ou indirectamente, vivem à conta – para não escrever à mama – da fortuna do paizinho, enquanto escarnecem da preguiça dos emigrantes que “invadem” o país – does it ring a bell?). Ora conservadores, ora liberais cheios de culpa mas bem agarrados à sacola, o filme escalpeliza as várias personagens e as sua perversas lógicas de concentração da fortuna. Afinal, o verdadeiro assassínio não se fez com o jorrar do sangue de uma carótida saliente, antes com o trabalho emigrante, dedicado e honesto. A inversão que o filme opera no final, é, por fim, o último e definitivo plot twist, aquele que anuncia uma nova América. Um plot twist conceptual que entende que esse arranjo narrativo pode servir uma reflexão sobre a (actual) mudança de paradigma social.
Ricardo Vieira Lisboa