Desde Flags of Our Fathers (As Bandeiras dos Nossos Pais, 2006) – com evidentes intervalos no percurso para outros projectos que não se enquadram nesta categoria – que Clint Eastwood tem assumido um papel de cronista da América, onde a partir de factos verídicos da história do seu país se foca numa ou mais personagens que, não sendo mais que homens comuns, passaram, diante de eventos dramáticos onde deram prova da sua coragem, a serem vistos comummente como heróis pela sociedade americana. Sejam os soldados que ergueram a bandeira em Iwo Jima em Flags…, o atirador-furtivo de American Sniper (Sniper Americano, 2014), o piloto de sangue-frio de Sully (O Milagre do Rio Hudson, 2016), o trio que impediu o atentado terrorista em The 15:17 to Paris (15:17 Destino Paris, 2018)… até mesmo, de certa forma, J. Edgar (2011). Todos estes filmes apresentam em maior ou menor grau uma meditação do heroísmo nos Estados Unidos, podendo ser real ou fruto da fabricação dos media e dos livros de história. A grande pergunta levantada pelo cinema de Clint Eastwood dos últimos anos: “o que é o herói americano?”
Mas não é só no indivíduo em que Eastwood se foca. Associado a este mosaico de figuras reais surgem por vezes as instituições americanas, cuja influência no percurso das personagens passa pela exploração e dissolução da identidade (o Ira Hayes de Flags… que, mesmo não o querendo, se via forçado a assumir o papel de herói de guerra pelo seu governo, a fim de acarretar fundos) à pura antagonização (a NTSB, decidida a provar o erro de pilotagem de Sully). Dentro delas, ou contra elas, a relação do indivíduo com as instituições leva a uma quebra da estabilidade no espaço privado, à dúvida sobre os princípios éticos daquilo que é falaciosamente defendido como o interesse nacional, e a uma descrença na total probidade do sistema. Como se para Eastwood os verdadeiros ideais americanos se encontrassem nas pessoas e não nas organizações que têm o dever de as proteger.
Magnífico filme e um dos melhores Eastwoods dos últimos anos.
Dito isto, Richard Jewell (O Caso de Richard Jewell, 2019) continua a progressão dessa faceta de historiador no cineasta, com a personagem homónima, um segurança venerador das figuras policiais e salvador de vidas ao ter descoberto uma bomba nos Jogos Olímpicos de Atlanta, contra a corrupção nas instituições autoritárias (neste caso, o FBI) e o vampirismo mediático. Ao mesmo tempo, nessa sinergia insidiosa entre autoridade e meios de comunicação, determinada em destruir a reputação de Jewell a partir de suspeitas infundadas, em alimentar a dúvida e o medo com base numa investigação enviesada e negligente, Eastwood fala uma vez mais da discrepância entre imagem e realidade, da venda de retratos desonestos ao público que possam ser capitalizados ao extremo, da necessidade das pessoas de crerem em representações simplistas dos factos e dos seus participantes, da sede ingénua de tanto ser criado um herói para adoração como um vilão para linchamento. Em suma, da construção e manipulação da opinião popular.
Lancemos então a pergunta: o que é o heroísmo para Eastwood com Richard Jewell? Algo, parece-nos, reminiscente dos protagonistas de Frank Capra, alguém moldado por valores simples e um carácter renitentemente incorruptível, uma inocência quase infantil que é o alicerce de um código moral que tem tanto de antiquado quanto de íntegro. E, como nos protagonistas de Capra, é essa simplicidade e pureza ímpar que o coloca contra a potência do sistema cínico que hipocritamente pretende representar a bandeira em que tem tanta fé.
Mas mais do que isto tudo, o novo Eastwood é um filme sobre uma amizade, a do protagonista e do seu advogado precatado (extraordinário o que Sam Rockwell faz com a sua personagem, onde basta a sua expressão facial sisuda para transmitir o cepticismo, amargor e desencanto que os anos de experiência lhe trouxeram e a que Jewell está ainda imune). É com um encontro entre os dois que o filme começa e acaba, e desde o começo que Eastwood chama a atenção para a equipa improvável, mas forte, que eles fazem, como naquela cena em que o advogado apanha Jewell numa máquina de jogos Arcade e, após um breve momento de conversa, junta-se a ele para começarem a jogar lado-a-lado. Daquela máquina de jogos à sala onde confrontam pela derradeira vez o FBI aliar-se-ão as convicções nobres ao know-how técnico, a vontade dos simples à prudência dos experientes.
O que nos leva a outro ponto: o de ser um filme extremamente humano, bastante dedicado a explorar as relações entre as personagens, seja a já referida amizade entre os dois homens ou o amor filial que Jewell nutre pela mãe. Desafiamos o leitor a citar um realizador americano actual que fosse capaz de dedicar tanto tempo naquele momento em que o protagonista se zanga com ela e depois vai para a sua porta pedir-lhe desculpa (“ela teve orgulho do filho durante três dias. Depois tiraram-lhe isso.”, dirá depois). É algo tão simples e ao mesmo tempo tão bonito, tão cuidado e tão respeitoso para com os sujeitos que filma. Ou então a maneira como gravita em torno da presença física de Paul Walter Hauser, com todos aqueles pequenos detalhes de mãos levantadas até atrás da nuca, de olhares doces, de andar lento, quase ao ponto de deixá-lo condicionar a posição da câmara (aqueles contra-picados, que tanto transmitem a ideia da autoridade que Jewell julga incorporar, como lhe atribui um efeito cómico benevolente). Mesmo a forma simples como se despede da jornalista inescrupulosa de Olivia Wilde, com uma lágrima após ouvir o discurso da mãe de Jewell, como se Eastwood soubesse que não necessita mais do que essa lágrima para mostrar o arrependimento. É também isto o que o faz ser um grande cineasta, a atenção e compreensão que demonstra para com as personagens, assim como a habilidade de se servir do meio cinematográfico de maneira pessoal, económica e precisa para transmitir as transformações que elas sofrem, confiando o suficiente no espectador para as entender.
De resto, que mais dizer? Que a cena da explosão está construída com um suspense insignemente inquietante, com todos aqueles profissionais a fazerem o seu trabalho fulcral sob uma pressão mortífera? Que nem o Mr. Smith de James Stewart soltaria de maneira mais memorável o discurso corajoso que ouvimos no clímax? Que o ritmo criado pela montagem de Joel Cox é tão bem conseguido que no final perguntamo-nos como foi possível terem passado mais de duas horas de filme? Poderíamos continuar com as interrogações, mas basta isto para provar que Richard Jewell, estreado logo na primeira semana deste ano, coloca em alta fasquia as expectativas cinematográficas que reservamos para 2020. Magnífico filme e um dos melhores Eastwoods dos últimos anos.