Numa boa entrevista dada ao crítico do Jornal Público, Jorge Mourinha, o realizador Bertrand Bonello diz uma coisa bem interessante acerca do seu filme anterior Nocturama (2016): “a minha ideia era usar um filme de género para fazer passar uma reflexão política sem impôr um discurso ideológico”. Recorde-se que este acompanhava um grupo de jovens burguesinhos franceses que resolviam cometer um conjunto de atentados terroristas em Paris, para se manifestarem contra as maleitas do sistema capitalista. Mas voltemos à sua frase e, descartando a dimensão ideológica, atente-se na utilização das expressões “usar um filme” e “fazer passar”. O filme ressentia-se precisamente disso: chegava-nos à tela como um objecto “usado”, como “instrumento de passagem” de uma dada ideia sarcástica, de comentário político acutilante.
Com Zombi Child (A Criança Zombie, 2019), outra vez com a jovem geração – que é como diz, um instrumento para pensar o futuro – acontece precisamente o mesmo. A ideia é interessante, uma vez mais. Por um lado, a zombificação de uma dada faixa etária, não como mera pulsão passiva do consumismo e da política (esse é já hoje um estafado shortcut para a figura ideológica do zombie, depois de tantos a seguir a Romero), mas sim, como esclarece o cineasta, para um limbo entre um mundo e outro, entre a vida e a morte, entre sistemas que incorporam e que isolam. Por outro lado, ainda faltava à carapaça vazia do zombie alienado, controlado, explorado, ligá-lo à escravatura e controlo colonialista. Bonello irá filmar no Haiti, em noite americana – entre a luz e a escuridão portanto -, os zombies a trabalhar nas plantações de cana de açúcar. E irá, sobretudo, fazer do reacordar dos mortos, dos zombies, uma apologia simbólica do movimento descolonizador e de recuperação de uma memória perdida.
Bonello é melhor a ter ideias para filmes do que a fazer filmes. As premissas abstractas têm toda a pertinência da contemporaneidade, mas depois a narrativa explode-lhe nas mãos. São filmes mortos-vivos que deambulam entre o mundo vivo das ideias e o mundo zombificado do pathos das suas personagens.
Mas há mais: é uma jovem privilegiada, branca, francesa, estudante de um colégio interno (imagino aquele espaço nas mãos de Argento!) que recorrerá aos serviços do voodoo, piscando o olho à questão da apropriação cultural. E há aulas onde os professores falam da responsabilidade colonial francesa e onde se pede aos estudantes que reflictam sobre os efeitos da Primavera Árabe. Entretanto há sequências decorativas, há deambulações haitianas ao som de batuques exasperantes e ratazanas devoradas. Bonello procura, a custo, unir o Haiti dos anos 60 e a França actual, procura, no fundo, resgatar da inanidade uma narrativa pela qual passará tudo, um fio condutor para o que de interesse há a ver.
Talvez por isso se possa avançar uma comparação abusiva, tomando Zombi Child e Nocturama como exemplos. Bonello é melhor a ter ideias para filmes do que a fazer filmes. As premissas abstractas têm toda a pertinência da contemporaneidade, mas depois a narrativa explode-lhe nas mãos. São filmes mortos-vivos que deambulam entre o mundo vivo das ideias e o mundo zombificado do pathos das suas personagens. Algo que acontecia inversamente com o limbo dos zombies de Tourneur. Quem queria saber o que significavam além do sobrenatural, dos tambores e da noite?
Interessante que os artistas têm vindo a tricotar um padrão de obras em que o cinema vem depositando nas mãos dos mais jovens as legítimas angústias da geração Greta Thunberg. Mas quase sempre sem conseguir inverter esta hierarquia entre a angústia do statement e o mundo ficcional que o acomoda. Nesse sentido, Zombi Child pertence a esta família, da qual também fazem parte obras recentes como L’heure de la sortie (A Hora da Saída, 2019) de Sébastien Marnier (estreado por cá em Setembro de 2019) ou Monos (2019) de Alejandro Landes, vencedor de melhor filme no último festival de Londres.
Uma das frases finais do filme de Bonello fica a ecoar no espectador. Diz o homem zombificado, agora a regressar à vida: “Terminou. Já não sou um escravo. E nunca mais serei um.” O que o pobre cinéfilo deseja é que essa desejável libertação não pressuponha nova escravização. Desta feita, a do cinema.