Do mês de Janeiro resgatamos três filmes que são aqui elogiados e que na altura da sua estreia não tiveram direito a um destaque próprio: Ricardo Gross escreve sobre os novos caminhos de Todd Haynes em Dark Waters ( Dark Waters – Verdade Envenenada, 2019) e o regresso a um cinema político americano dos anos 1970; João Araújo escreve sobre a descoberta de uma talentosa realizadora com The Farewell (A Despedida, 2019); e Bernardo Vaz de Castro faz uma defesa do cinema romeno recente e de alguns dos seus realizadores, como Corneliu Porumboiu e o seu La Gomera (A Ilha dos Silvos, 2019).
Faz tempo que Todd Haynes deixou de estar onde não o esperaríamos encontrar, e o seu cinema passou a dar a sensação de nascer de projectos e vontades exteriores ao realizador. Trabalhou em séries e documentários para televisão, limou as arestas da criatividade fazendo dos seus filmes obras de prestígio, e reencontramo-lo em Dark Waters recuperando na forma e no espírito o cinema liberal americano dos anos 1970. Já não se via um filme como Dark Waters talvez desde 2007, o ano de Michael Clayton (Michael Clayton – Uma Questão de Consciência) de Tony Gilroy, produzido, entre outros nomes, por George Clooney e Sydney Pollack (um histórico daquele período liberal). As histórias de ambos também têm em comum processos em tribunal que reclamam avultadas indemnizações de gigantes da indústria química, que lucraram milhões tendo lesado as comunidades que era suposto servirem.
Dark Waters tem na ficha de produtores o nome do actor Mark Ruffalo, que protagoniza o filme. A história reconstitui acontecimentos reais descritos num artigo do New York Times. Desde as primeiras imagens, que documentam uma situação porventura ficcional ocorrida décadas antes e que serve apenas de preâmbulo, uma vez que as figuras que dela fazem parte não voltarão a aparecer, assistimos a uma abordagem no tipo de imagem (cores e grão) e escala de planos, que remete para um cinema de outro tempo: o de Pollack mas também o de Alan J. Pakula, Martin Ritt ou Jerry Schatzberg. A ameaça anuncia-se pela atmosfera criada, antes de virmos a acompanhar a escalada das denúncias e das diligências processuais que o filme de Todd Haynes sinaliza com retratos humanos de gente comum e sem maniqueísmos.
A sensação que o filme deixa é de que situações como aquela que é mostrada resultam dos perigos da negligência descontrolada que relaciona realidades em tudo estanques até que a gravidade da situação as faz comunicar. Enquanto o nosso mundo se fechar num cada vez maior número de mundinhos, o cinema que desperta e faz ver as razões e as responsabilidades de todos será sempre importante. Dark Waters é cinema político competente, que apresenta as marcas do seu já classicismo, no espírito e na forma.
Ricardo Gross
Pode parecer no início apenas mais um filme do cinema indie americano, com os cenários de Nova Iorque, a presença de uma atriz-comediante em ascensão e os diálogos rápidos, mas na verdade The Farewell (A Despedida, 2019) é um filme algo diferente (no panorama americano) pelos riscos que corre: falado maioritariamente em mandarim, sobre um tema sombrio e sobre uma cultura específica, bastante discreto e sem grandes fogos-de-artifício, baseia-se acima de tudo na sua capacidade de criar empatia com estas personagens numa situação peculiar. Uma frase antes de começar o filme prepara o caminho: “based on an actual lie”. O filme acompanha uma jovem rapariga americana de ascendência chinesa, Billi (uma interpretação digna de nota de Awkwafina), que mantém pelo telefone uma relação próxima com a sua avó que vive na China. Quando Billi descobre, através dos seus pais, que a avó sofre de uma doença terminal e que lhe resta pouco tempo de vida, o seu primeiro instinto é regressar a casa da avó… só que esta não sabe da doença, já que a família prefere esconder-lhe a sua condição. Sob o pretexto de um casamento, Billi e outros familiares encontram-se para uma celebração que é na verdade uma despedida. A Billi pedem-lhe que aprenda a esconder as emoções, a acomodar a sua tristeza tal como os seus parentes próximos fazem, e fica claro o confronto geracional e cultural que o filme pretende abordar – ao mesmo tempo, ancorando-se emocionalmente na forte relação entre avó e neta, complicando a resolução – é o velho e o novo, o oriente e o ocidente em conflito, mas também em harmonia.
Lulu Wang revela um olhar observacional astuto, na forma como enquadra determinadas situações, usando muitas vezes um plano médio fixo, que ora preenche o vazio com a família numerosa, ora evidencia uma escala em que nos sentimos perdidos, ora foca-se em detalhes desconcertantes, que parecem deslocados. Explorando uma alternância de tom entre o agridoce e o cómico triste, em toda a sua estranheza e familiaridade comum, encontra o balanço para uma obra sóbria e ao mesmo tempo comovente. É um filme que evoca a sensibilidade dos primeiros filmes de Ang Lee, e em particular as dinâmicas familiares de Yin shi nan nu (Comer Beber Homem Mulher, 1994) – também aqui é à mesa que se revelam as diferenças entre as várias personagens, sobre a forma de encarar a vida, as diferenças entre uma nova China e a tradicional, entre respeitar as tradições e encontrar um rumo próprio. The Farewell é também sobre sentir-se entre dois lugares, entre dois momentos de indefinição e (re)descoberta pessoal. Esta é uma obra muito segura de si, em que cada enquadramento afirma uma complexidade de registos e uma forma curiosa de olhar o mundo, que revelam uma realizadora a seguir com atenção.
João Araújo
Após uma clara saturação da hegemonia francesa no panorama cinematográfico europeu, filmes de outras latitudes começaram a surgir. Aqueles que mais rapidamente se impuseram foram o cinema grego e romeno, porém a promessa de um rapidamente se extingui ao contrário da imensa vitalidade do outro. Enquanto a nova vaga de cinema grego se impunha através dos seus enfants terribles como Tsangari ou Lanthimos, o cinema romeno proliferava de um modo coeso, imensamente mais interessante do ponto de vista formal e sobretudo através de uma massa crítica que pela primeira vez olhava para o passado comunista e o tentava entender não só enquanto passado, mas igualmente agente do presente. Cristi Piui “inaugura” com a Moartea domnului Lăzărescu (A Morte do Sr. Lazarescu, 2005), Corneliu Porumboiu filma um ano depois A fost sau n-a fost? (A Leste de Bucareste, 2006), Cristian Mungiu chama a atenção ao vencer a Palma de Ouro em Cannes com o seu 4 luni, 3 saptamâni si 2 zile (4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias), Radu Jude dá início a uma das filmografias contemporâneas mais interessantes com Cea mai fericita fata din lume (The Happiest Girl in the World, 2009) e Andrei Ujică – que apesar de ser ele quem verdadeiramente inaugura a reflexão do cinema romeno sobre o passado comunista logo em 1992 a meias com Harun Farocki no extraordinário filme Videogramme einer Revolution (Videograms of a Revolution, 1992) – parece encerrar este capítulo do passado comunista com o colossal Autobiografia lui Nicolae Ceausescu (Autobiografia de Nicolae Ceausescu, 2010). Este enquadramento parece-me essencial, porque apesar de uma certa artificialidade que os jargões encerram, sobretudo quando cineastas com linguagens tão díspares entre si formam uma suposta “Nova Vaga”, houve um terreno comum que todos eles procuraram de forma directa ou indirecta trabalhar nos seus filmes. Porém, quando esta premissa se esgotou e os realizadores olharam para o que restava do presente sem traumas, tentando extrair unicamente uma imagem de uma classe média romena, moldada pelos costumes europeus, o que ficou foi somente uma imagem insípida de um presente banalizado e comum a tantas outras linguagens, sendo o filme Marti, dupã Crãciun (Terça, Depois do Natal, 2010) de Radu Muntean o mais visível dos exemplos.
Contudo, nem todos os realizadores caíram no marasmo contemporâneo e três exemplos absolutamente distintos entre si – Puiu, Jude e Porumboi – estabeleceram linguagens e perspectivas que levaram a “uniformidade” do cinema romeno a um outro estádio e a um outro modo de relação com o passado e o presente. Enquanto o magnífico Sieranevada (2016) de Puiu, observava o presente romeno de modo quase documental, Jude vai procurar no passado uma outra Roménia, não a Roménia comunista sobejamente trabalhada por todos, mas a Roménia antissemita e apoiante do nacional socialismo – Tara Moarta (The Dead Nation, 2017) e Îmi este indiferent dacă în istorie vom intra ca barbari (I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians, 2018) – enquanto Porumboiu parece ser a terceira via. Mesmo antes de La Gomera, Porumboiu em Comoara (O Tesouro, 2015), parte da vida quotidiana romena para encenar uma meta-narrativa sobre a própria história Romena desde a ascensão do comunismo até à implementação do actual sistema capitalista europeu. Nenhum outro realizador soube, na minha opinião – e atendendo à cada vez mais rara distribuição comercial em Portugal de filmes romenos, salvo as raras excepções que aparecem nos festivais, poderei estar rotundamente enganado e algum filme tenha feito anteriormente algo de semelhante ao conciliar ambos tempos. Não se tratam apenas de indícios de um outro tempo no tempo presente, mas antes a coexistência de dois tempos sobre um único tempo. Porumboiu é de tal modo imaginativo, que há semelhança a Resnais, quando estabelece dois níveis de sentido, jogo que é fomentado pela própria linguagem. Através de uma clara inconcidência entre significado e significante, Porumboiu explora e perverte o sentido daquilo que nos é dado a ver enquanto adquirido e do que se pode esconder por detrás. Desde Politist, adjectiv (Polícia, Adjectivo, 2009) que Porumboiu procurou tornar incoincidente a definição da palavra e o sujeito/coisa por detrás dessa palavra, sendo o dilema moral que o polícia enfrenta a disrupção do sentido que o comissário absurdamente procura encontrar estanque no dicionário através dos termos «consciência» e «polícia». Este jogo adquire uma dimensão ainda mais absurda quando a linguagem perde a “materialidade” das palavras e se converte em puro som. Em La Gomera, Porumboiu parte de uma linguagem composta por assobios especificamente usada pelos habitantes das Ilhas Canárias, para encenar um thriller que revisita o cinema clássico americano – talvez o filme mais óbvio seja North by Northwest (Intriga Internacional, 1959), não apenas pelos múltiplos episódios “bondescos”, mas sobretudo pela troca constante de identidades enquanto a trama amorosa paralelamente se desenrola – até que deste reste somente os elementos mais paródicos do género. Do noir ao western, o filme cavalga por entre elementos que nunca chegam a ser remakes, mas antes falsificações. Talvez o momento mais brilhante seja precisamente quando Porumboiu utiliza o disparar da arma no filme projectado e que, apesar da ilusão que há deste tiro estar contido no próprio filme, não encontramos dele sinal.
Bernardo Vaz de Castro