Poderia ter sido simplesmente um objecto banal, tal como foi Lady Bird (2017), semelhante a tantos filmes indie “sensíveis” que por Sundance fazem furor, essa terra solarenga de cinema tão alternativo que virou mainstream. Porém, já a primeira longa-metragem de Greta Gerwig revelava a sua tendência encapotada para o moralismo bafiento de cartilha hollywoodesca. Não é por acaso que a história da rapariga artista termina numa igreja, dando a estocada final à sua rebeldia através da reconciliação com Deus. A grande perversidade deste cinema é libertar as mulheres através dos mecanismos que as aprisionaram. Por duas vezes Gerwig tenta construir a imagem da mulher emancipada para no final jogá-la para dentro de uma Igreja ou pior, casá-la. Será no mínimo irónico – e profundamente auto-reflexivo do seu cinema – que, tal como a personagem principal do seu mais recente filme, termine dizendo que se é para vender a sua “mulherzinha” ao casamento, então tem de receber melhor!
Se já o cinema de Ida Lupino era conservador na década de 50, mesmo que esta tenha tocado em temas até então tabus no cinema americano como a violação ou o divórcio, o cinema de Greta Gerwig em pleno século XXI é simplesmente anacrónico. Invoco Ida, porque não querendo menorizar a sua importância história – apesar do claro empolamento de que esta tem sido alvo nos últimos anos, pois a forma (parca) poucas vezes fez jus ao conteúdo – também ela resolveu a sua agenda progressista através dos velhos clichés pelos quais as mulheres eram subjugadas. Se à pergunta de que será possível traçar na constelação, que vai de Ida a Gerwig, uma cartografia feminina do cinema americano, aceito essa proposta de bom grado, mas certamente que pensá-la como uma cartografia de agenda progressista feminista dificilmente posso consentir.
Classe, sexo ou cor são questões por completo apagadas, tornando Mulherzinhas num filme “apolítico”, onde o bem reina sobre todas as cabeças e mesmo as alfinetadas são momentos inofensivos mas necessários ao quadro da imagem “progressista”.
Mas o que há afinal de tão mofento em Little Women (Mulherzinhas, 2019)? Em primeiro lugar, talvez não seja inteiramente culpa de Gerwig, o texto era já velho mesmo antes de ter sido publicado. Nem Cukor, nem LeRoy conseguiram fazer dele algo que fosse além do pastelão americano, cheio de grandes “performances” (é de assinalar a minha profunda ironia no que toca a este aspecto e que parece transversal a todas as adaptações) e o produto ideal da classe burguesa para educar as suas “mulherzinhas” e não desviá-las do bom caminho do casamento, da caridade e da feminilidade. Se Louisa May Alcott tivesse lido o seu contemporâneo Flaubert, talvez houvesse menos Bovarys por este mundo fora fruto precisamente desta literatura nefasta que tanta cabeça feminina atafulhou de arquétipos e mitos. Apesar das pretensões shakespearianas, Alcott nunca foi uma Brontë – em boa verdade nunca foi além do cordel e nem mesmo o espírito de uma condessa de Ségur teve.
Contudo a decisão de adaptar ou não um texto, em última análise, é algo que cabe ao próprio realizador e acredito que esta decisão esteve longe de ser uma imposição. E mesmo que fosse uma imposição, perpetuar deliberadamente um cliché de 160 anos é algo que apenas posso interpretar como fruto de uma agenda ideológica clara e inequívoca. Se os dois primeiros casos de adaptação ao cinema a que me refiro são fruto de um sistema clássico americano e realizado por homens – mesmo que um deles tenha feito mais tarde o seu verdadeiro “mulherzinhas”, refiro-me a Cukor e ao seu esplêndido Rich and Famous (Ricas e Famosas, 1981), que longe deste cânone soube captar as nuances da natureza feminina – o mesmo não poderá ser dito tanto de Gerwig como de Gillian Armstrong (cineasta que em 1994 também adaptou o romance). Ambas as realizadoras olham para estas “mulherzinhas” e carregam na tónica “inhas” através da menorização do papel da mulher, propondo como chave da sua emancipação a vivência de todos os lugares a elas destinados, e através de uma clara perversão que inverte o aguilhão da imposição em livre-arbítrio. Gerwig e Armstrong, ambas com a distância de quase 30 anos, fazem em dois momentos chave da história feminina filmes profundamente redutores e que destoam no tempo e nas exigências presentes dessas mulheres. Há uma redução patética dos problemas das mulheres, fazendo das suas reivindicações momentos passageiros e abdicáveis quando o casamento ou procriação surgem no horizonte. Assim a escritora pode acabar como professora de província casada, a pintora pode acabar como burguesa rica casada, a actriz como mulher a dias casada e bom… diremos que a irmã pianista foge de um destino bem mais fatal!
Mesmo formalmente o filme repisa todos os clichés possíveis do género, sem nunca os reinventar ou tirar dele quaisquer lições. Talvez o momento mais gritante é quando o pretendente se ajoelha perante a irmã pintora, num plano de mau gosto tal que só num filme da Disney encontramos equivalente. Em boa verdade, o filme comete todos os erros possíveis do género, desde os fatos de “época” de aspecto lustroso, saídos do charriot para o corpo dos actores sem uma marca de uso (confesso que a dado momento o meu aborrecimento era tal que reparei nas solas imaculadas dos sapatos de Timothée Chalamet), à música constante (sempre diegética, como manda a tradição), aumentando o pastelão interminável que estas duas horas e quinze minutos são.
No entanto, o filme não se limita unicamente a recriar o conto de fadas, ele recria o próprio “ser feminino”. Não há apenas um trabalho de delimitação da mulher através do que é dito, mas é sobretudo através dos gestos, das performances das actrizes, que ele adquire o seu lado mais retrógrado. De Meryl Streep a Saoirse Ronan, há um inventariado de “movimentos femininos”, onde cada achaque equivale a um “ui” e um “ai” suspirante, cheio de delicadeza e bravura resiliente. A dado momento a mãe (Laura Dern) diz à filha escritora (Saoirse Ronan) que há 40 anos que doma a impetuosidade do seu carácter, e talvez por isso só consigamos ver destas mulheres paródias da própria condição feminina. Entre a mãe devota aos pobres – e que pobres! a casa e as roupas não poderiam ser mais mirabolantes, fruto do trabalho de uma dressista que deve ter visto tantos pobres na vida quanto Raymond Rousel viu nativos do além mar – a tia solteirona que só pode ser solteira porque é rica e a empregada boazinha que vive em harmonia com os patrões; não há momento algum no filme em que possamos vislumbrar uma centelha de conflito (o mais irónico é que este é situado historicamente durante o período da Guerra Civil). Classe, sexo ou cor são questões por completo apagadas, tornando Mulherzinhas num filme “apolítico”, onde o bem reina sobre todas as cabeças e mesmo as alfinetadas são momentos inofensivos mas necessários ao quadro da imagem “progressista”. Tudo sai incólume da “crítica” deste filme, relembrando que por vezes sobre o ilusório manto do progresso se esconde o pior dos conservadorismos.