“I loved the idea of two creative people in love with each other, who care about each other, but because of something in them, that has to do with their creativity, cannot live together, cannot be together in their lives”.
Martin Scorsese
A dupla de produtores Irwin Winkler & Robert Chartoff, que iniciou uma parceria no fim dos sessentas e que se estenderia por 25 anos, começou por trabalhar à margem dos estúdios, a contratar para a escrita de argumentos jovens realizadores saídos das universidades da Califórnia e Nova Iorque, para depois selecionar os projectos para desenvolvimento junto das majors de Hollywood. Um dos projectos, “New York, New York”, sobre o período dourado das big band, interessara especialmente a Winkler, como se verificou posteriormente com a realização por aquele de De-Lovely (2004). Martin Scorsese, que tinha saído com alguma notoriedade da estreia de Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973), ouviu Winkler mencionar o projecto do musical numa entrevista e tê-lo-á agarrado na hora. Scorsese viu em New York, New York (1977) uma oportunidade para lidar com um legado, com as memórias de infância e juventude marcadas por uma saúde débil e divididas entre o quarto com vista para as ruas de Little Italy e o refúgio no cinema, onde os musicais do pós-guerra, frenesins fantasistas fabricados na exuberância dos estúdios, trespassados de cores e de códigos, ocuparam um lugar privilegiado. Um filme, então, que Scorsese desejava como uma combinação dessa herança, com a produção do tempo em que ele e os outros movie brats começaram a fazer cinema. Nesta premissa e no filme de Scorsese, associado a A Star is Born (Assim Nasce Uma Estrela, George Cukor,1954), angariamos material para esta e para a próxima crónica, esta parte mais inclinada para Scorsese, De Niro e Minnelli, a próxima para Cukor, Mason e Garland, mãe de Liza.
Uma chuva de pequenos papéis em Manhattan, era o V J Day, o Japão rendia-se e a II Guerra findava: Scorsese arranca com a celebração do artifício, um estúdio preenchido de figurantes e uma câmara em movimento, acelerada pela big band, que articula os festejos e os corpos que dançam, numa progressão hiperbólica que termina com pares de homens, num canto do plano, que se agarram e empurram, a estender a violência até ao fora de campo. Pelo meio, o boy meets girl: Jimmy (Robert De Niro), chegado da guerra, a tentar levar alguém para a cama, Francine (Liza Minnelli) a procurar suster os ímpetos dele, como fará ao longo de grande parte do filme. O espectador descobre com Francine que Jimmy é músico, numa audição num bar e pela primeira vez ela irá salvá-lo, ao colocar a sua voz suave e elegante, por cima da fúria do saxofone dele. Tal como em A Star is Born, será o primeiro exemplo de que as canções, e os números musicais, poucas vezes servirão o propósito de leveza e alienação da narrativa, para constituir, pelo contrário, um prenúncio para os conflitos conjugais a desenvolver:
If the nightingales / could sing like you / they’d sing much sweeter / than they do / ‘cause you brought a new kind of love / to me… / If the sandman / brought me dreams of you / I’d want to dream / my whole life through / ‘cause you brought a new kind of love / to me… / I know that I’m a queen / you’re a king / still I understand / that underneath it all / I’m a girl and you / you’re a man / I would work and slave / my whole life through / if I could hurry home to you / ‘cause you brought a new kind of love / to me…
Como referiu Scorsese, a ambição maior de New York, New York seria associar a composição de cada um dos planos ao propósito de expressar a condição humana dos dois protagonistas. Foi contratado para design de produção o catedrático Boris Leven, que tinha trabalhado com Robert Wise, George Stevens, Preminger e Siodmak entre outros, numa tentativa de repor técnicas e processos da velha Hollywood, que encontrou obstáculos, como na utilização do technicolor, que tinha sido usado pela última vez em The Godfather (O Padrinho, 1972). As figuras de Jimmy e Francine caminham sobre dunas de neve, envoltos por uma densa barreira de árvores esguias que escondem um céu alaranjado: apesar da abstração do estúdio, aliás devido à tensão de toda esta parafernália que compunha os planos, combinada com os diálogos apontados ao tenso reencontro do casal, esta cena resulta num dos exemplos maiores da ficção, quando o invisível, como uma extração das emoções dos personagens, se revela. Leven olhou para o estúdio como uma caixa negra, a preencher de ideias, uma realidade paralela com maquinações como as que fascinaram o jovem Scorsese, quando este descobriu que os carros estavam libertos de estradas e deslizavam no set, que aquelas roupas não pertenciam às pessoas e que eram actores e figurantes, rodeados de cenários e adereços, quem disputava a atenção de espectador, e que havia uma fora de campo, mais espaço para organizar, com luzes e gruas que moviam câmaras enormes.
A vontade de conflito, uma das assinaturas do italo-americano, coloca o par em disputa permanente, mas eles casam-se, em mais um acto impulsivo dele, como se tudo fosse uma criação artística, servida pelo excesso. A conjugalidade começa a fraquejar, quando é a voz de Minnelli que garante a continuação da digressão da orquestra liderada por De Niro, e este repreende-a num ensaio por ela dar uma indicação à orquestra: na ascensão dela, como anunciara o rouxinol da canção, ele força a sua condição de líder e de homem, ela cede, como uma rapariga mais preocupada em defender a relação. Será num corredor mal iluminado, com as duas figuras sombreadas pelo artifício do estúdio, que Francine anuncia a gravidez; a princípio abraçados, logo ficam em cenas opostas: para Jimmy, aquela gravidez é um embaraço, por dificultar a digressão da banda e contrariar o seu reconhecimento artístico; Francine recebe estes sinais como um embate, ela que ambiciona da vida outra amplitude, como mulher, mãe e cantora. É mais uma separação que é também um ponto de viragem: De Niro fica com a banda – mais tarde dirá que se não puder tocar, criar música, ele não serve para ela nem para ninguém, o saxofone é a coisa mais importante para ele – e Minnelli regressa à cidade, estamos a meio do filme, o espectador questiona se haverá finais felizes e começa a olhar para New York, New York mais como um melodrama do que um musical.
De Niro, a espreitar na porta, surge reflectido num espelho que duas mulheres tentam colocar na parede: se as saudades de Francine correm para ele, o regresso de Jimmy através da imagem exígua e distorcida, oferecida pelo plano, antecipa o esvaziamento da relação. A criação artística não pactua com a conjugalidade, como dizia Scorsese, e passamos a olhar para Minnelli como uma actualização da personagem de Judy Garland em A Star is Born, na necessidade de cuidar de De Niro, perante a sua dificuldade em impor-se fora de uma comunidade de músicos do Harlem, da mesma forma que Garland cuidara de Mason, vedeta em decadência acelerada pelo álcool e pelo êxito da jovem cantora que ele descobrira.
Winkler confidenciou a obsessão de Scorsese em rodar nos estúdios da MGM (como aconteceu), mas também em ocupar os estúdios de produção usados por Vincente Minnelli, como uma ode aos musicais do cineasta, mas também como uma vontade de possessão desses elementos que o cineasta estendeu a Liza Minnelli, filha de Vincente e Garland, como um produto do cinema clássico, pelo que, conforme lembram as crónicas, os dois se terão envolvido durante a rodagem e experimentado as dificuldades de uma relação tensa (como um filme fora do filme, um tema pessoal para o realizador e a gestão das vidas criativas do par), com cocaína pelo meio, uma adição que quase matou o cineasta depois da frustração pelo fracasso de New York, New York nas bilheteiras, que só conheceu a redenção quando De Niro lhe ofereceu um livro sobre Jack La Motta, do qual sairia Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980). Associado ao sufoco do estúdio, a essa ostentação montada perante o espectador, Scorsese e principalmente De Niro experimentaram o improviso em várias cenas, com muitas delas a exigirem a presença de técnicos e inúmeros figurantes no set, o que adicionou tensão na rodagem, num filme em que a violência se enuncia a cada sequência, como sintoma da tal fúria da criatividade, que encontra um bom exemplo na cena do bar que termina com Jimmy a espernear enquanto é empurrado ao longo de um túnel delimitado por barras de luz branca que criam um efeito de voragem, que arrastam a cabeça do espectador para disputas entre De Niro, Pesci e outros bons rapazes.
A composição de New York, New York, o tema, será o prólogo para o tom melancólico do que restará do filme, como uma ressonância do final crepuscular de A Star is Born na casa de praia de Malibu, e representará o canto do cisne da relação: Jimmy de tronco nu ao piano e Francine de roupão abraçada ao peito dele, uma luz madrugadora e horizontal ao par, que articula as palavras com a melodia. A canção, composta para Liza Minnelli e para o filme por John Kander e Fred Ebb, não teve na época o devido reconhecimento (não foi nomeada para os Óscares, por exemplo), tendo sido gravada dois anos depois por Sinatra, que se apropriou dela e a transformou num sucesso e no standard proporcionado pelo tempo. Assim nascia uma estrela, Francine assina um contrato para o lançamento de um disco e procura partilhar essa felicidade com Jimmy no bar do Harlem, mas ele, incapaz de lidar com o sucesso dela, impede-a de subir ao palco, através da cólera do som e dos movimentos do seu saxofone, um excesso, nos píncaros do melodrama, que continuará pouco depois no carro, quando Jimmy amaldiçoa a criança por ter interrompido a digressão da banda. A separação ocorre simbolicamente nessa mesma noite, pouco depois do nascimento de Jimmy, o filho que De Niro escolhe não ver, com a presença de cores frias a imporem ao melodrama uma gradação que substitui a disputa pela melancolia, como num fragmento do romantismo em que nascimento e morte coexistem.
No inicio dos anos 80, New York, New York foi relançado com uma duração de cerca de 160 minutos, quase meia hora a mais relativamente à versão decepada, distribuída após o falhanço da estreia, o que permite assistir à sequência integral de Happy Endings, cerca de 15 minutos de reverência, que Scorsese assume, a vários musicais – The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos, 1948), An American in Paris (Um Americano em Paris, 1951) – onde os números musicais, até pela sua duração, suspendem a narrativa e a sua carga dramática, enquanto procuram fazer uma síntese das personagens e das suas motivações. Antes do número musical, um breve reencontro do par – mais uma vez mediado pelo espelho, em que um olho de Francine ocupa metade do plano e Jimmy é apenas um rosto entre um emaranhado de várias figuras – não permite finais felizes, mas serve para vos convidar para a crónica do próximo mês, onde encontraremos o outro lado desta double bill: A Star is Born.