A primeira menção que encontrei à argumentista e realizadora inglesa Joanna Hogg e, por ordem de razão, ao seu último filme The Souvenir (2019) foi nas páginas da revista do Expresso, na crónica de Pedro Mexia de início de Fevereiro deste ano, muito elogiosa. Estranhei nunca ter ouvido falar nem de uma nem do outro. Mal sabia eu que a minha ignorância assentava a esta obra arisca, tão singular que, por uma vez, Tilda Swinton – mãe na vida real e no filme de Honor Swinton Byrne, a actriz principal – faz de pessoa normal.
Saboreei o prazer da descoberta futura. Infelizmente, a quarta longa-metragem de Hogg (de que já se anuncia uma segunda parte) não teve nem terá, que se saiba, estreia comercial em Portugal. Tive de usar outros meios.
A câmara não assume apenas o ponto de vista da protagonista, toma-lhe a personalidade, as inseguranças, os receios, a forma de estar, assim como, lá para diante, a maturidade.
No centro de The Souvenir está o alter ego pouco velado de Hogg, Julie, tímida estudante de cinema, e a relação amorosa que mantém com o impenetrável Anthony, um diplomata languidamente dandy. Esse amor sorumbático, em que não se trocam carícias ou beijos, é desnivelado, a começar pelas idades: ela está tão perto dos vinte como ele de fazer quarenta. Anthony molda Julie a seu gosto, ensinando-lhe as virtudes da ópera (substituindo o pós-punk que ela preferia) e da sexualidade um tanto kinky. A dominação não é total, mas há uma boa dose de manipulação, um certo cheiro a gás.
Poder-se-ia dizer que o tema de The Souvenir é a masculinidade tóxica. E sê-lo-á até certo ponto. Para ser mais exacto, o filme versa sobre a toxicidade num sentido mais lato. Anthony é heroinómano. Dedica boa parte do tempo a drogar-se ou a tentar arranjar droga, pedindo constantemente dinheiro emprestado a Julie, quando não a rouba à descarada.
Em gente endinheirada (ou que já foi), de boas famílias, o dinheiro adquire, assim, uma importância perversa. Serve para pagar o seu estilo de vida acima das possibilidades, é certo. Não seria, contudo, mais certeiro escrever estilo de morte? O Anthony de Tom Burke – cujo lábio leporino lembra o lado maligno de Joaquin Phoenix – é descendente de uma figura recorrente na literatura inglesa, a do aristocrata refinado e decadente, Sebastian Flyte de Brideshead Revisited à cabeça. Fascinante, culto, romântico, ele entrega-se à corrupção do corpo com prazer estético, que, no fundo, não será mais do que um desejo de autodestruição.
À semelhança do norte-americano Whit Stillman, Joanna Hogg olha as classes altas com justeza, descobrindo-lhes as fraquezas, as falhas e também a humanidade, num registo a escapar-se ao famigerado realismo britânico (como seria o projecto de docu-ficção sobre os “pobrezinhos” que Julie nunca termina), por via da elegância formal e sofisticação narrativa.
Elíptico, ao osso, quase opaco, The Souvenir é tanto um filme de época (os anos 80 da Guerra Fria, dos ataques bombistas do IRA) como um filme de outra época (fora do tempo). A realização é pensada, meticulosa, precisa. De uma simplicidade requintadíssima (passe o oxímoro). Joanna Hogg trabalha os não-ditos com a mesma delicadeza que aplica aos não-vistos (quantos acontecimentos ficam fora de campo, desvendados unicamente na banda sonora). O formalismo de Hogg não é académico, antes abertamente autobiográfico, pessoalíssimo.
Tudo é uma questão de enquadramento. Literalmente. Ao início, Julie, inocente e frágil, aparece nos limites do plano, tentando fugir-lhe. O misterioso Anthony enjeita a câmara de outra forma: dá-lhe as costas, esconde o rosto, conservando a ininteligibilidade. Numa cena, é tão-só um lugar vazio à mesa de jantar, enquanto um amigo revela os seus vícios. Julie e Anthony só se mostram à objectiva (e ao convencionalismo do campo/contra-campo) nos raros momentos em que se abrem um ao outro.
A câmara não assume apenas o ponto de vista da protagonista, toma-lhe a personalidade, as inseguranças, os receios, a forma de estar, assim como, lá para diante, a maturidade. Aos poucos, Julie vai ganhando o centro, reclamando o seu devido lugar na imagem. No penúltimo plano de The Souvenir – um longo travelling (que, curiosamente, filma outro longo travelling, de um filme dentro do filme) – ela é o ponto culminante. E fixa o espectador olhos nos olhos, destemidamente vulnerável.