Zui hao de shiguang (Três Tempos, 2005) é um dos melhores filmes do mestre de cinema de Taiwan Hou Hsiao-hsien. A Cinemateca Portuguesa passa-o na rúbrica “O que quero ver” e é, de facto, uma obra que se deve querer ver – ou rever. Como disse um dos críticos do New York Times aquando da estreia: “This is why cinema exists”.
Hou Hsiao-hsien era já uma figura consagrada quando Zui hao de shiguang foi apresentado ao mundo, em Cannes, no ano de 2005. O filme não ganhou a Palma de Ouro para que estava nomeado – o que terá desapontado Hou –, mas tal não afastou admiradores. Por exemplo, Barry Jenkins citou-o como inspiração para Moonlight (2016). Esta é, sem dúvida, uma das obras máximas de Hou, que se pode apreciar sem conhecimento dos seus trabalhos anteriores. No entanto, o tríptico evoca também elementos da sua filmografia até então, podendo mesmo ser descrito como um filme-síntese.
O reconhecimento da importância desse “melhor tempo” só é possível fora dele: seja olhando para trás quando esse tempo já passou, seja olhando de fora, com o nosso olhar de espectador que vê as possibilidades que as personagens nem sempre descortinam.
O filme é composto de três partes passadas em anos diferentes. Entre os elementos unificadores encontramos os actores Shu Qi e Chang Chen. Ela renova a colaboração com Hou depois de Qianxi manbo (Millennium Mambo, 2001) – o que se repetiria em obras seguintes do realizador. Chang Chen, memorável figura central de Guling jie shaonian sharen shijian (A Brighter Summer Day, 1991), de Edward Yang, entre vários outros filmes asiáticos, trabalha aqui pela primeira vez com Hou. Ambos reencontrariam o realizador em Nie Yinniang (A Assassina, 2015). Todos os segmentos correspondem a três histórias de amor entre o par, relações que procuram transcender os constrangimentos das suas circunstâncias. Os anos e algumas deixas sugerem períodos importantes da história de Taiwan, mas as referências a esta são mais subtis que noutros filmes do realizador.
Unindo os três segmentos temos também a ideia de comunicação escrita. São cartas, mensagens de telemóvel ou outras missivas escritas, físicas ou virtuais, que ligam as personagens e lhes (e nos) fornecem informação, sempre fragmentada, sobre o seu passado e o seu presente, ou que projectam para o futuro. Este último, contudo, permanece vago e de realização duvidosa, e é o agora que importa ali. Quando aquele homem e aquela mulher se encontram e, naqueles momentos, não há mais nada no mundo.
Como quase todos os seus trabalhos, a excelência final não é somente produto do génio fílmico de Hou, mas de uma combinação de talentos. De referir Chu Tien-wen, autora ou co-autora da maioria dos argumentos dos filmes de Hou; Liao Ching-song na montagem; o compositor Lim Giong, e o director de fotografia Mark Lee Ping-bing, também colaborador de Wong Kar-wai. O trabalho de luz e cor deste último é essencial na composição dos ambientes de todas as partes.
Apesar da tradução para línguas europeias, os títulos de cada segmento não repetem a palavra “tempo”, mas sim a palavra “sonho”. De certa forma, podemos associar isto ao tom do filme – de evocação, não de reconstituição. A preocupação central não será a de recriar o passado de forma realista, mas sim sugerir uma sensação de nostalgia por momentos fugazes, por possibilidades (talvez) não concretizadas.
O título original também não inclui o número “três”. Zui hao de shiguang quer dizer “o melhor dos tempos”, bem mais aberto a interpretações. A intenção terá sido filmar fragmentos de memórias de tempos que não voltam mais. O superlativo também induz à pergunta: melhor(es) para quem? Fica igualmente a ideia de que o reconhecimento da importância desse “melhor tempo” só é possível fora dele: seja olhando para trás quando esse tempo já passou, seja olhando de fora, com o nosso olhar de espectador que vê as possibilidades que as personagens nem sempre descortinam.
O primeiro segmento, “Um sonho de amor” (lian’ai meng) passa-se em 1966. A militarização de Taiwan – frente importante da Guerra Fria na Ásia – é sugerida pelos deveres militares da personagem de Chen, um recruta que parece passar as licenças em salões de bilhar onde trabalham jovens mulheres. Sabemos – pelas cartas que vemos e ouvimos – que esteve envolvido com uma delas. E será num desses salões, que encontrará Xiumei/May (Shu Qi).
A cena de abertura é paradigmática do melhor do filme: o uso meticuloso da luz, os gestos (falsamente) espontâneos, a sugestão do estado de graça de estar-se apaixonado, o uso criterioso da música. Os dois protagonistas cruzando-se em torno de uma mesa de bilhar onde as bolas dançam ao som de “Smoke Gets in Your Eyes”. Intrigantemente, o que se joga nessa primeira cena é bilhar às três tabelas, que não é o mesmo jogo que vemos em cenas subsequentes. Trata-se de um sonho? De um futuro que é explicado só depois, quando se mostra o momento em que se conhecem? A progressão do tempo é elíptica e o contexto histórico evocado por meias palavras, roupas e canções. Estas importam, mas não importam mais que os momentos em que os dois protagonistas estão juntos.
Este segmento percorre boa parte de Taiwan. De Kaohsiung, metrópole do Sul, a Dounan, terra no centro, sendo a capital Taipé, no Norte, mencionada como o local da base militar. Tirando as travessias marítimas (e o rio principal em Kaohsiung chama-se precisamente Rio do Amor) – momentos importantes de cruzamento e desencontro – quase tudo o que vemos são os espaços fechados dos salões de bilhar. Há um paralelismo subtil com o bordel do segundo segmento: o espaço feminino é um de confinamento. Embora Xiumei permaneça móvel, transitando de salão em salão por boa parte da ilha, raramente vemos o movimento dela. É sobretudo a ele que vemos no exterior, ora de bicicleta ao sabor do vento, ora seguindo pela estrada ao som de um tema famoso da música popular taiwanesa (“星星和我心”), com a distância percorrida sendo assinalada pelas tabuletas com os nomes das localidades. No entanto, também ele está limitado pelos tempos e espaços impostos pelo seu serviço militar.
Quando, finalmente, se reencontram, é já tarde. Vemos os néones do salão brilhar no lusco-fusco. Permanecem em silêncios cúmplices, disfrutando o agora, numa expectativa serena sem a urgência que sabemos existir. Ele tem de voltar à base dali a umas horas, e resta-lhes partilhar a espera por um autocarro nocturno, enquanto chove. Chega-se a um destino nessa espera: o imenso grande-plano das mãos que se aproximam enquanto se ouve os Aphrodite’s Child cantar o verso I need an answer, love, de “Rain and tears” (na verdade, de 1968). Qualquer que seja a resposta para eles, ela fica sugerida, mas não mostrada.
“Um sonho de amor” abre, tal como o segundo segmento, com um candeeiro. Como se o filme fosse agora trazer para a luz um passado esquecido. Curiosamente, é também assim que começa Guling jie shaonian sharen shijian. As rimas com Edward Yang estão lá: “Smoke Gets in Your Eyes” era um tema importante em Kongbu fenzi (The Terrorizers, 1986). Também é interessante notar aqui a centralidade do momento fugaz de amor impossível, algo que talvez associemos mais ao cinema de Wong Kar-wai. Há ainda referências aos primeiros filmes de Hou na fase do Novo Cinema Taiwanês como Lian lian fengchen (Dust in the Wind, 1986).
A segunda parte – “Um sonho de liberdade” (ziyou meng) – recua a 1911, em vésperas da revolução republicana na China. Estamos agora em Dadaocheng, uma zona de Taipé, mas não vemos a rua, apenas salas de um só edifício. Aí, num bordel semelhante aos de Haishang hua (Flores de Xangai, 1998), assistimos aos breves encontros do Sr. Chang (mesmo apelido do actor) com uma das cortesãs. Ele é um activista político, camarada de um Sr. Liang, que tivera de fugir para o Japão depois do falhanço de um movimento reformista – provavelmente uma referência a Liang Qichao, figura importante da fracassada “Reforma dos Cem Dias” em 1898.
A cortesã está confinada ao espaço da sua vida e trabalho, onde as perspectivas de sair são cada vez mais limitadas. O Sr. Chang luta pela liberdade política, por uma Taiwan livre do colonialismo japonês e uma China livre de pressões imperialistas. Ela anseia pela liberdade individual possível: que ele salde a sua dívida para com a “madame” e possa sair dali, tornando-se concubina, prática que ele desaprova. Ela parece perceber os projectos dele, que menciona várias vezes, mas ele é incapaz de compreender realmente o desejo de libertação dela e como está ao seu alcance torná-lo possível. Nunca vemos o mundo lá fora onde ele se movimenta (no máximo, as escadas por onde sai). Apenas vemos o quotidiano dela, limitada às fronteiras da casa. A recriação de época pode sugerir beleza e esplendor, mas é um segmento sobre prisões – diríamos, também, sobre como uns estão mais presos do que outros.
“Um sonho de liberdade” está filmado quase como uma película muda. O único som diegético são duas cenas de performance musical, e nunca ouvimos os diálogos das personagens, que são (d)escritos em intertítulos. Essa opção tem ecos óbvios de Beiqing chengshi (City of Sadness, 1989). Aí, a personagem de Tony Leung Chiu-wai é muda, porque o actor de Hong Kong não falava taiwanês. Em Zui hao de shiguang foi a dificuldade de Shu Qi e Chang Chen dominarem as deixas com a autenticidade linguística temporal e local que terá ditado o uso de intertítulos. Há aqui também piscadelas de olho a Ozu, a quem o filme anterior de Hou Hsiao-hsien [Kōhi Jikō (Café Lumière), 2003] homenageara: designadamente, um plano de um pote de chá solitário.
Se a primeira parte acabara com um reencontro de horas contadas e a segunda numa separação sem data de regresso, o terceiro começa e termina com o par pela estrada fora. Estamos agora em 2005 no trânsito de Taipé, um ano depois de renhidas eleições presidenciais – um tempo histórico cujo clima de animosidade Hou terá ponderado abordar, mas que ficou ausente da versão final.
A cidade está cinzenta, no céu, nos viadutos e prédios. É um território de alienação urbana, uma Taipei story como a que Hou Hsiao-hsien protagonizara para Edward Yang duas décadas antes (Qingmeizhuma [Taipei Story], 1985). As luzes artificiais e rotina hedonística trazem à mente Qianxi manbo ou o anterior – menos visto – Niluo he de nü’er (Daughter of the Nile, 1987).
Zui hao de shiguang fecha com um “sonho de juventude” (qingchun meng), o amor desenfreado de Jing (Shu Qi) e Zhen (Chang Chen – a personagem tem o mesmo nome que ele, 震, apenas romanizado de forma diferente). Ela é cantora, ele é fotógrafo; a voz dela é efémera, as imagens dele fixam o tempo que passou. Tal como os segmentos anteriores, este é um de beleza extraordinária no seu desalento – entendível em qualquer cidade do mundo, mas com uma aura que, de certa forma, é, simultaneamente, muito própria de Taipé.
Desta feita, as mensagens não são cartas que demoram dias a chegar, mas sim SMS cujo imediatismo causa expectativas perigosas (evidente na escolha drástica da namorada dela, impaciente com a falta de respostas). Sabemos que Jing tem uma série de problemas de saúde porque nasceu prematura – fora de tempo. E a autodescrição no seu site como sendo sem passado e sem futuro, apenas com um “presente faminto” reforça essa ideia da primazia do agora. Tal como as personagens dos segmentos anteriores, sabemos pouco de onde Jing e Zhen vieram, e sabemos ainda menos para onde vão. Mas, ao contrário dos outros pares, o futuro não lhes importa. Habitam um presente permanente, qual metáfora para Taiwan no seu frágil e incerto statu quo.
Zui hao de shiguang (Três Tempos, 2005) passa na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema dia 3 de Fevereiro, às 19h.