Estamos juntos, mas afastados. Estamos unidos, mas separados. O que nos pode ligar? Um corte ou outro que junta aquele plano a outro plano. O cinema é como nós: feito de imagens que se colam, e tornam narrativas inteiras coerentes e entretidas, por força do corte, das separações. Os cineastas portugueses aproveitaram o momento quando puseram online várias das suas produções? Quer dizer, nunca se viu aproveitamento tão generoso. Dar cinema, pela primeira vez porventura, tornou-se equiparável a um acto salvador – como dar sangue ou dar roupa. Eis uma forma de resgate – contra o vírus corrosivo do tédio e a poluição do terror dos jornais – que muito nos diz.
Já vai extensa a lista de filmes que nos foram oferecidos como quem lança uma bóia para nos salvar de um certo afogamento existencial. Os nossos editores walshianos reuniram aqui apenas dez filmes (para o respectivo visionamento, basta clicarem no título) – a escolha obedece a afinidades antigas e não a hierarquias de qualidade. A cada filme citado – cada um aponta para os demais que juntámos neste post da nossa página de Facebook – quisemos oferecer uma pequena crítica. É uma forma de dizermos, muito humilde e simbolicamente, que à celebração dos filmes queremos associar uma celebração da crítica. Estamos juntos.

Água Forte (2018) de Mónica Baptista
Uma composição sensorial e imersiva, esta é uma viagem a um local que parece parado no tempo, mas que permanece intemporal. Uma voz feminina lê um texto mitológico sobre a origem do mundo e dá o mote para um documentário-meditação sobre a presença dos elementos primitivos, como a água e a flora, e a coabitação com os nativos cujos retratos pontuam o filme. A câmara furtiva segue um barco a deslizar pelas águas calmas de um rio, como se este fosse como os anéis que revelam a história de uma árvore, num movimento que embala e nos conduz ao interior, físico e metafísico. Por fim, ao som de um cântico ancestral, a tela dá lugar a uma sequência de imagens, que surgem elas próprias como um rio que reduz o campo de acção ao essencial, desloca-se para um território poético e convoca a imaginação de cada um. Filmado em 16mm e revelado à mão, este é um filme artesanal que marca o regresso de Mónica Baptista ao Curtas Vila do Conde, depois de ter exibido outros filmes, como Diário (2011) e Territórios (2009).
João Araújo

Água Mole (2017) de Alexandra Ramires (Xá) e Laura Gonçalves
Documentário de animação construído sobre entrevistas recolhidas em Trás-os-Montes e Alto Douro que retratam um mundo rural em desertificação. O achado do filme está, exactamente, na forma como transforma o seu material de origem testemunhal num objecto que ondeia entre personagens ao som da música tradicional, numa cadência contagiante. É, simultaneamente, capaz de tomar à letra as palavras dos entrevistados em divertidos gags visuais que se fazem sempre na inteligência da literalidade que antecipa as expressões populares – em particular, o modo como o filme transforma a típica figura do careto numa sinopse da tradição e como daí estende um discurso sobre a preservação cultural.
Ricardo Vieira Lisboa

First Light (2014) de Mariana Gaivão
Pequeno retrato de intimidade sobre um nascer de dia aos olhos de um rapaz. Filme a preto e branco e sem diálogos, vive dos sons e sombras dentro de uma casa, para criar uma atmosfera hipnotizante em pouco tempo, embalando o espectador na duração precisa de cada plano. De fotografia exemplar, evoca uma melancolia contemplativa e acaba no exterior com um plano que surge como o rugir de um novo dia.
João Araújo
Lacrau (2013) de João Vladimiro
Lacrau pauta-se por uma série de dizeres que intercalam as imagens, um deles é: ‘Se o Lacrau visse e a víbora ouvisse não havia quem escapulisse’ e é aqui que se encontra todo o motor do filme. Vladimiro parece estar mais interessado nas pedras e nas plantas e nos animais do que nas gentes, ainda que as filme também, mas como se fossem pedras ou plantas ou animais. Há um desejo de conferir vida ao inanimado e de simplificar o complicado, o humano; ou seja, de conferir características aos animais e retirá-las aos humanos. Daí que se filme através de folhas ou galhos de árvores como que em busca de um filtro natural para as construções humanas ou, por outro lado, as pedras são filmadas como se fossem gente – com covas como olhos e cabelo de musgo. Vladimiro está vidrado nos elementos, vemos a morte de um porco só acompanhado pelo som do crepitar de uma fogueira ou conhecemos as ruas de pedra ao som do cair das gotas. Lacrau é uma sinfonia natural sobre o que ainda resta de natureza no nosso mundo, porque os abutres andam a rondar.
Ricardo Vieira Lisboa

Maria do Mar (2015) de João Rosas
Se não é algo inovador, recorre de modo inventivo à fórmula de um olhar adolescente sobre o mundo adulto à sua volta, para deslumbrar com uma série de gags visuais. Retrato de um fim-de-semana passado entre amigos numa casa de praia, o filme assume o ponto de vista do elemento mais novo, e do seu olhar platónico em relação a uma das raparigas presente. Próximo do universo de Rei Inútil (2013) de Telmo Churro ou dos filmes de João Nicolau, utiliza de forma inteligente a composição dos enquadramentos como setup de piadas, com pequenos quadros que encerram humor na forma como apresentam a realidade, e imaginação na apropriação do olhar da personagem – como por exemplo, quando vemos algumas personagens a dançar numa festa, mas do lado de fora da janela, sem a música, e o comportamento dessas personagens torna-se mais ridículo. Se algumas das situações parecem demasiado encenadas para resultarem em humor, como um número de magia que tenta parecer improvisado mas fruto de estudo prévio, revela uma ideia coerente e consciente do que quer dizer.
João Araújo

Menina (2016) de Simão Cayatte
Simão Cayatte, que havia realizado uma das melhores curtas-metragens de 2015, Miami – sobre a qual escrevi aqui -, traz um drama de época que desperta, como poucos filmes da história do cinema português, os fantasmas do Estado Novo. Menina (2016) não fala de uma “ascensão”, mas, bem pelo contrário, de uma “descensão”, degrau a degrau, à “vida dupla” de uma sociedade que se alimenta de muito insidiosas aparências. Não vou estragar o que a história do filme vai habilmente desvelando da vida de uma típica “fada do lar” do Estado Novo. Digo apenas que este é um filme implacavelmente – e impecavelmente – construído.
Luís Mendonça

O Que Arde Cura (2012) de João Rui Guerra da Mata
João Pedro Rodrigues é o protagonista do O Que Arde Cura (como já era Guerra da Mata o protagonista de Parabéns!, ambos arquitectos, ambos de ressaca, ambos no seu dia de aniversário, mas as aproximações entre os primeiros filmes de ambos os realizadores não se ficam por aqui…) e é essa a questão. O corpo de João Pedro Rodrigues é a chave para se perceber o filme. Há um plano que consagra esta visão: Rodrigues conversa ao telefone com o seu ex-amante e deixa de haver quarto (só negro), ele gira em torno de si próprio e a câmara em torno do seu corpo. Só há um corpo de um homem ao telefone, completamente só, em contacto com o outro (que nunca ouvimos nem vemos) e depois – de repente chamas – o incêndio do Chiado entra-lhe no corpo; arde de tristeza e abandono, e depois ardem as memórias. Nada disto faria sentido com outro corpo, com outro actor que não o parceiro de Guerra da Mata. Há como que uma purga emocional, uma desparasitação da relação.
Ricardo Vieira Lisboa

Penúmbria (2016) de Eduardo Brito
Uma ficção a fingir ser documentário, Penúmbria é um habilidoso e imaginativo exercício visual. Penúmbria é também o nome de uma cidade num local à beira-mar não identificado, que é, aqui, apresentada como uma cidade fantasma, abandonada pelos seus habitantes depois de concluírem que seria impossível continuar a viver ali. O filme torna-se também num documentário sobre arquitetura, sobre a acção do Homem sobre a natureza, dada a sucessão de vinhetas que exibem, como se fossem ruínas, edifícios abandonados e ruas sem vida. Enquanto uma voz explica a história deste local e dos seus habitantes fugidos, e a desolação preenche este espaço deixado vazio, há ainda lugar para um último gesto de humanidade.
João Araújo

Placenta (2018) de Paulo Lima
Neste Placenta a natureza é um fabuloso catálogo de ruídos evocadores: o piar longínquo do mocho, o coaxar da rã, os diversos piares dos pássaros da manhã, uma avioneta ao longe. O assobio do vento ou o ranger de uma porta. Um mundo natural que isola os seus protagonistas. Lima procura entrar no mundo do maravilhoso e do onírico. Lembram-se das sequências em que as irmãs de El espíritu de la colmena (O Espírito da Colmeia, 1973) de Erice vão ao bosque? Aos poucos, neste passeio mágico vamos encontrando, quase sem nos apercebermos, fiapos de narrativa, quiçá como a nossa-senhora-fada-adolescente vai encontrando indícios da presença de outras pessoas. Falei do som, mas importa falar do ritmo sereno de Placenta, um portal que dá espaço e tempo a um exímio controlo e precisão do gesto. Tudo somado, talvez não valha a pena acertar os sons e os gestos de Placenta pelo diapasão do simbolismo, mas antes acertar-nos com a sua cadência, como quem descobre um tesouro numa toca de uma árvore. Há que dizer que, em certo sentido, Placenta foi o grande filme do Curtas Vila do Conde 2018, a sua jóia escondida, aquela cujo brilho é mais precioso porque difícil de vislumbrar. E quem arrisca tocar o absurdo para poder filmar o sublime, merece o paraíso.
Carlos Natálio

Tragam-me a Cabeça de Carmen M. (2018) de Catarina Wallenstein e Filipe Bragança
“Eu não sou a Carmen, e nem a Carmen era a Carmen.” A mulher foi uma mulher, mas a personagem é um ícone. Marco fundamental no movimento tropicalista, então louvado, hoje reconsiderado à luz do calculismo que este manteve com a ideologia da ditadura e a mão quente dos EUA. E como renovar um símbolo sem cair no saudosismo, mas também sem esquecer a utopia da antropofagia cultural? Neste ensaio (no sentido reflexivo e teatral), a actriz procura encarnar o transcendente, as imagens procuram captar o quimérico, e a fragmentação traduz, afinal, o poder de uma ideia maior que uma pessoa. Esta Carmen é agora um “corpo impossível”, ferramenta de visibilidade queer e negra, de corpos indígenas e com limitações. E o filme que a re-constrói e re-significa é também esse cadavre exquis policromático, entre o processo da actriz e o do não-actor, entre Brasil e Portugal, entre o país e o pessoal, entre o mórbido e o lúdico.
Ricardo Vieira Lisboa