“Mal fui libertado do ventre da minha mãe, descobri-me enclausurado no meu próprio corpo. E logo tomei consciência que estava fechado num corpo que, por sua vez, estava encerrado numa casa, ela própria enclausurada num país.” Março, 2020, Portugal. Compreendemos. Identificação primária. As nossas cabeças, caixas dos nossos pensamentos, estão dentro de corpos cujas casas estão encerradas. Estados de emergência presos a uma justificação: entre o “ainda não” e o “já vai tarde”, entre o odor do autoritarismo e o odor dos mortos potenciais, dos corpos ainda não encerrados. A citação pertence à voice over de um filme extraordinário, Boro in the Box (2011), um biopic de uma bio fantasmática, de um cineasta polaco morto: Walerian Borowczyk. O autor, um tresloucado genial chamado Bertrand Mandico.
O filme é de uma experimentação como doença que cura a alma. Estruturado em abecedário, como muito fez Borowczyk ao longo da sua obra. Especialmente nas curtas, exemplos: L’encyclopedie de grand-maman en 13 volumes (1963) e Le dictionnaire de Joachim (1966). O set up do filme de Mandico é que Borowczyk tem sempre cabeça de caixa. Uma caixa de madeira que é embalada no berço, para dentro da qual a mãe envia esguichos de leite. Uma caixa que é uma lanterna mágica, uma câmara de cinema. Borowczyk tinha uma cabeça de câmara. Encerrado nessa dimensão da fantasia e da criação. Tal como o cinéfilo que hoje se encontra fechado. Fechado fora das salas de cinema.
Identificação primária. Uma caixa como antídoto contra o cisne negro da modernidade. Carpenter já tinha previsto o cerco social de tudo isto. Akerman já tinha relatado a angústia mental da janela aberta e da porta fechada. Cronenberg e Buñuel, por sua vez, entram pelo filme de Borowczyk adentro. Por um lado, a câmara feita órgão de pêlos e visco. Por outro lado, o olhar de peephole que não sofre a ferida aberta, além do voyeurismo como modo de vida. E basta pensar nos filmes de Borowczyk para pensar num fetichismo erótico que parte dos espaços fechados, dos quartos e dos buraquinhos que olham. O cinema por dentro dos corpos, por dentro dos quartos, por dentro das casas. Até por dentro do tempo.
No meu pequeno apartamento a clausura não tem charme. Apenas, quanto muito, intelectual: como uma torre que decide todos os dias rodear-se de ramos de flores. Foi dessa clausura que espreitei Docteur Jekyll et les femmes (Dr. Jekyll e as Mulheres, 1981). Uma obra também ela de fechamento: um grupo de convidados vem celebrar o noivado do Dr. Henry Jekyll (Udo Kier) com Fanny Osbourne (Marina Pierro). E ficam ali numa casa de campo, que parece um castelo, onde vão ocorrendo misteriosas mortes. Conta-se que o que teria inspirado Borowczyk fora menos o conhecido romance de Robert Louis Stevenson, mas o facto de a mulher deste ter queimado a primeira versão, por não ter suportado o seu conteúdo. Um filme portanto incendiado pelo obsceno, por aquilo que só se pode ver aos bocadinhos. Faz sentido: o euro horror, o fantasma de Sade, as pilas majestosas de relance, a nudez e o sangue. Tudo faz confundir o operático com o chocante. Como um filho nascido da união entre Argento e Visconti.
Contudo, para mim, o efeito máximo era aquele que tentava transmitir: uma clausura anódina e sanitária (a minha) que observa através do funil do cinema uma clausura romântica e perversa (a de Jekyll e dos seus convidados-vítimas). Uma clausura que liberta. Uma faceta interessante da adaptação (não a melhor que já vi, essa é do mestre Rouben Mamoulian) relaciona-se com esse tempo. No espaço da mansão, as cenas vão decorrendo com um certo desligamento entre elas: um ataque seguido de um momento de conversa com outras personagens, uma ida ao laboratório do Jekyll. Como se por dentro do tempo e da sua linearidade ocorresse a libertação. Como até na conhecida cena final de união apaixonada entre o casal – agora transformado – numa montagem eisensteiniana. As lambidas de feridas sangrentas, os sintetizadores de Bernard Parmegiani, os planos tremeluzentes, a luz pastosa e brilhante, os desfoques, as desacelerações. Clímax do aparelho. Libertação pela técnica. Cinefagia. Dá fome, dá tesão, que se lixe, Kant.
Nesta versão de Borowczyk ficou célebre a cena do banho. Dr. Jekyll coloca um pozinho na água da banheira que torna a água avermelhada. Banha-se, orgiasticamente, tirando a roupa, como em estado de possessão. Até que se submerge inteiramente. Por uns momentos a água acalma com o movimento e de lá sairá, Mr. Edward Hyde (Gérard Zalcberg), renascido, que potenciará a morte e o caos. Se é verdade que a mise-en-scène do realizador polaco brinca com a ideia de reflexo e duplo (ver imagem acima), não é menos verdade que optou por dois actores para as suas personagens que partilham o mesmo corpo. A escolha por não manter Kier para os dois papéis talvez tenha que ver com a dignidade da diferença. Pouco importa?
Num interessante livro do historiador israelita Yuval Noah Harari, 21 Lessons for the 21st Century (2018), num capítulo dedicado ao valor da humildade, o autor associa o nascimento do monoteísmo à origem do preconceito. Posto em modo simplista: “o meu deus é que é verdadeiro e o meu é melhor do que o teu”. Aplicando esse raciocínio ao filme de Borowczyk: “quem pode dizer de que lado está o verdadeiro e derradeiro personagem que vale a pena acarinhar?”, parece querer dizer-nos. Ou, estendendo a premissa. Havia um conjunto largo de pessoas que idolatravam o “deus da mobilidade”, que rezavam sob o paradigma do movimento e da deslocação. Obrigadas a parar – trancadas no corpo, na casa e no país (no pensamento, porque não?) – quem poderá dizer que quando submergirem dessa banheira o veneno não os terá transformado de forma decisiva? Emergir um outro, e depois, tocados pelo veneno, sair cá fora, renovados, purificados. Por enquanto, da janela os pássaros ouvem-se. E cantam como nunca.