Estamos juntos. Desta feita, reunimo-nos para fazer uma lista “o que fazer durante esta quarentena”. São tudo sugestões – filmes, livros, música – com a missão de enriquecer o tempo que os nossos leitores têm em bem higienizadas mãos. A quarentena walshiana quer fazer deste período uma celebração da cultura e do conhecimento. Alinha?
Fritz Lang entra directo na espionagem em Ministry of Fear (Prisioneiros do Terror, 1944). E lá entramos nós também. Numa tenda de feira prediz-se o futuro e uma narrativa atmosférica estende-se num campo de mistério, suspense e tensão – tudo muito apetecível. Filme adaptado duma novela de Graham Greene, que cria uma onda imaginária de feiras, adivinhação, bolos, espiritismo, conspiração, numa cadeia de acções que se valem à medida da intriga. O cenário da 2ª Guerra Mundial, numa Grã-Bretanha sob ameaça com agentes nazis infiltrados, atira-nos para dentro deste caldeirão algo noir, conduzidos por um atónito alvo à solta, Ray Milland, entregue a um périplo meio real, meio onírico – aí está o grande valor do filme. O olhar atmosférico de Lang abre e fecha portas, dilata o tempo, concentra momentos recortados por gestos, olhares, rasgos de luz, soberbas sombras e planos ofegantes. A ver ou rever e ainda temos o livro que podemos ler.
Carlota Gonçalves
Em Chabrol se met à table, Laurent Bourdon teve a genial ideia de analisar a filmografia completa de Claude Chabrol olhando para a comida – o que se come, como se come, com quem, como é trinchado um pato assado, como é preparada uma lampreia à bordalesa, como um naco de carne é presenteado em jeito de bouquet de flores. Numa pequena entrevista introdutória, o próprio Chabrol afirma encarar o acto da refeição, em que todos se sentam à volta de uma mesa, como momento de inelutável honestidade e revelação, momento em que caem todas as máscaras.
Esta parece ser a altura ideal para saborear este livro. Por um lado, a sua leitura permite-nos matar saudades dos tempos de pré-isolamento e mergulhar num mundo de proximidade social, de jantares, almoços, saídas, encontros, em que a comida é pretexto e personagem. Por outro lado, e uma vez que o livro apresenta no final uma resenha das receitas mencionadas, temos a possibilidade de, havendo os necessários víveres, ir até à cozinha praticar um pouco de gastronomia cinéfila.
Daniela Rôla
Vou ser glutão e aproveitar o tempo de antena conferido pelos caríssimos anfitriões desta casa para recomendar não um, não dois, não três, mas quatro dos meus livros de cinema de cabeceira. Com excepção de alguns mais conhecidos e fáceis de arranjar por cá – as entrevistas crítico-histórico-biográficas de Truffaut a Hitchcock, os haikus teóricos de Bresson, as mil e uma noites fílmicas compiladas por Steven Jay Schneider – são estes quatro os livros que recomendaria a qualquer um que tivesse o tempo e o interesse de explorar a sétima arte para lá da sala escura (agora que esta nos está justificadamente vedada).
São quatro pontos cardeais para a construção de uma bússola cinéfila sólida, quatro naipes de um baralho para o jogo imprevisível que é a visualização de um filme, quatro elementos capazes de ajudar na explicação da natureza enigmática, cativante e complexa que é o cinema. E, já que não sabemos por quanto estaremos enclausurados em casa, são também quatro estações de um ano imaginário. A serenidade primaveral com que Tag Gallagher estuda um dos maiores realizadores, o entusiasmo veranil com que os Cahiers du Cinéma fazem história, a melancolia outonal com que Peter Bogdanovich dialoga com os deuses sobre um tempo que acabou, a seriedade invernal com que cada um dos artigos no Film Theory & Criticism edifica meticulosamente as suas teses e teorias, todas estas características são diferentes tipos de abordagem a uma arte comum, igualmente lúcidas, igualmente apaixonantes. Peço o voto de confiança do leitor quando lhe digo que com eles o tempo até as salas se reabrirem passará, com toda a certeza, muito mais depressa.
Duarte Mata
Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture, and Film propõe uma interessante viragem no que diz respeito aos estudos cinematográficos, passando duma concepção óptica a uma háptica. Segundo a autora, o cinema não celebra somente a primazia do olhar, mas aproxima-o à arquitectura enquanto meio capaz de apreciar, compreender e conquistar a dimensão espacial. De resto, o cinema permite a passagem da imobilidade geométrica do voyeur, do olhar segundo a tradição da perspectiva artificialis, ao novo espectador voyageuse à conquista do movimento e dos lugares reais e fantásticos antes nunca alcançados.
Francesco Giarrusso
Para grandes males, grandes remédios, pois que, dizem os antigos, rir é o melhor remédio. Mesmo que, na tradição dos grandes cómicos do cinema, Pierre Étaix seja e, simultaneamente, não seja um “maluco do riso”. O humor é, pois claro, também um modo-de-olhar os homens nas suas obsessões e tiques, “taras e manias”, de um só golpe se podendo desmontar um comportamento perfeitamente “normal” da “vida em sociedade” e expô-lo na sua mais gloriosa patetice. Étaix fá-lo de uma tão graciosa e sofisticada forma que as referências que lhe são anteriores (Chaplin, Keaton, Tati) não passam disso mesmo, “referências”, jamais ofuscando o brilho e a singularidade da sua proposta. Em Le soupirant (O Apaixonado, 1962), uma das peças incluídas na colecção da Criterion Collection que a prudência aconselha a que se adquira e visione durante a quarentena, Pierre, jovem-adulto que vive quase-literalmente na lua (cfr. aquela fabulosa sequência inicial, um tratado de “artesanato” na con-fusão de escalas e cenários, novamente ensaiado na cena do barco em Yoyo), vítima de uma epidemia semelhante à nossa (o tédio), faz ouvidos moucos aos muito conservadores anseios dos pais para que se case.
Mais tarde, e depois de infrutíferas tentativas de engate nupcial, será vítima de uma outra epidemia, não menos semelhante à nossa: com os olhos colados na televisão da sala-de-estar de uma das suas pretendentes (soupirant, aqui, são uns e outros, o efeito é bumerangue), Pierre será acometido desse grande surto fantasmático que é a Imagem – e que é Stella (France Arnel), a chanteuse–femme fatale. La grande illusion: no princípio, era o fascínio. Sequência de antologia, uma das mais grandiosas já feitas acerca do poder e da sedução das imagens, da vertigem que o desejo que delas se desprende exerce em nós. Várias peripécias depois e eis Pierre no camarim de Stella pronto para, enfim, La grande désillusion: Stella é, imagine-se, mãe de um rapaz. Pierre pira-se enquanto o Diabo esfrega um olho. O jovem irreverente do início do filme é, afinal, tão conservador como os pais. À suivre…
Francisco Noronha
A minha recomendação para estes dias de quarentena é Xin nüxing (New Woman, aka New Women, 1935), um dos clássicos do cinema de Xangai dos anos 1930. Trata-se de um dos mais famosos e debatidos filmes chineses, realizado por um reputado cineasta da época, Cai Chusheng, e protagonizado pela icónica actriz Ruan Lingyu, estrela de cinema que, pouco depois da feitura do filme, sofreria um destino trágico idêntico ao da sua personagem. É um filme que aborda diferentes formas de limitação de liberdade que, infelizmente, continuam a existir e de que nos devemos lembrar nestes tempos ainda mais terríveis para tantas vítimas de violência doméstica e outras formas de opressão de género. A complexidade de Xin nüxing e as análises que o filme inspirou não cabem em poucas linhas. Por agora, fica a sugestão de o (re)descobrir, particularmente direcionada a quem se interesse por cinema mudo/de transição para o sonoro, estudos de género e história cultural da China republicana. Aqui fica o link no YouTube para uma cópia com legendas em inglês.
Helena Ferreira
Publicado originalmente em Portugal em 1961 (à época, apreendido pela PIDE), Reflexões de Um Cineasta de Serguei Eisenstein é um objecto peculiar. Chega-nos agora editado pela Bookbuilders, com essa mesma tradução do falecido realizador José Fonseca e Costa, a partir da versão francesa, e contém um universo teórico fascinante. Eisenstein, que estudara matemática e hieróglifos japoneses, organiza o seu pensamento criteriosamente a partir de memórias, personalidades notáveis e do seu próprio trabalho como cineasta. Nestes textos reunidos, que, entre outros “tópicos”, falam de Aleksandr Nevskiy (Alexandre Nevski, 1938) e Prokofiev, da montagem e da cor no cinema, da honestidade literária de Gorki e do infantilismo de Chaplin, ele imerge nos princípios da arte com um espírito de cientista maluco que faz oscilar a alma da letra entre uma noção prática das coisas e uma filosofia elevada ao quadrado. Como diz Fonseca e Costa na introdução: “estamos nos antípodas da técnica cinematográfica – com a sua terminologia arrevesada, acessível apenas a iniciados – para nos encontrarmos no puro domínio da consideração dos factores que concorrem para a expressão cinematográfica ou, simplesmente, para a expressão”.
Inês N. Lourenço
Sempre gostei muito de bibliotecas. Ou melhor, sempre gostei muito das “minhas bibliotecas”. Era Stephin Merritt quem, numa canção, apelava a que todos fôssemos fiéis aos nossos bares. Eu sempre tentei ser fiel à “minha” Biblioteca Municipal das Galveias ou à “minha” Biblioteca da Cinemateca Portuguesa ou à “minha” Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian… Uma fidelidade a várias amantes, portanto. Sempre me senti bem entre o silêncio e o cheiro dos livros. Contudo, a “minha” biblioteca tem pouco que ver com a biblioteca dele, do realizador e do seu filme. Falo de Ex Libris (2017) de Frederick Wiseman – resolvi, com o tempo que tinha em mãos, ver o filme numa edição recente comprada no mercado francês. Durante “somente” três horas e picos, mergulhamos numa autêntica aldeia universal e interdisciplinar dedicada à difusão de informação e conhecimento.
A Biblioteca Municipal de Nova Iorque é mais uma instituição que é escalpelizada pela câmara-mosca do documentarista americano – neste que é, quanto a mim, o seu melhor filme dos anos 10 deste século. Mas não é “mais uma biblioteca”, isto é, como uma daquelas que eu julgo tão bem conhecer. O que é mais espantoso aqui – para lá dos modos de funcionamento da instituição como esse super-organismo em que cada aspecto é pensado e debatido – é o conceito de biblioteca que podemos encontrar aqui e que escapa até aos nossos mais loucos sonhos e fantasias (todo o tipo de workshops, apresentações, aulas ou mesas redondas acontecem no seu interior, quase sempre com casa cheia). O filme de Wiseman dá-nos, assim, o tempo de uma instituição que acarinhamos e a possibilidade de esta ser muito mais do que alguma vez sonháramos – servem estas bem passadas horas para matar saudades e projectar novos standards quando sairmos desta heróica “prisão domiciliária”.
Luís Mendonça
Num cineasta político como George A. Romero é redundante falar em política, inclusive em Crazies (Guerra ao Vírus da Loucura, 1973), seu filme de horror sem gore evidente. Falar em epidemia, isolamento, estado de sítio, perseguição e morte aos que não usam máscaras leva-nos a recordar os tempos atuais. O tempo é cíclico e o do cinema, por vocação genealógica, permite-nos voltar para nós mesmos no espelho do monstro e encarar o nosso horror sem chance de remissão. [O leitor pode encontrar Crazies editado pela britânica Arrow Films.]
Luiz Soares Júnior
No final de janeiro passado, os irmãos Safdie colocavam cá fora um dos filmes mais aguardados destes novos roaring twenties: Uncut Gems (Diamante Bruto, 2019). Daniel Lopatin é um nome que pode não soar conhecido aos ouvidos de muita gente, mas é uma figura importante nas criações recentes do universo Safdie. Conhecido sobretudo pelo seu projeto autoral como Oneohtrix Point Never, músico e produtor, Lopatin assina a banda sonora (já o tinha feito antes em Good Time), onde mais que uma composição musical a servir de bibelot, este novo trabalho parece funcionar como um contraponto, ou se preferirmos, um contra-campo sonoro.
Em Uncut Gems esta ideia torna-se ainda mais evidente quando a teia de sons de Lopatin parece permear tudo em redor, como um espécie de outro estado fílmico dentro do filme. É-nos possível aceder a um outro Uncut Gems, uma espécie de lado B, através da banda sonora. Lopatin usa o som e a composição musical para desconstruir, reavaliar e repensar a imagem, com apontamentos que parecem varrer e tratar de forma diferente os estados emocionais e psicológicos de Howard (Adam Sandler). É como se o próprio Lopatin fosse também ele um personagem, sem o ser verdadeiramente, tal a impressão deixada pela sua composição dentro do filme.
Nuno Gonçalves
O meu contributo passa por lembrar que a Mosfilm tem disponível, no seu canal do YouTube, dezenas de filmes em regime de acesso gratuito, diversos deles com legendas em português (do Brasil). O catálogo, cuja partilha foi iniciada há 8 anos, está em actualização, sendo disponibilizados novos títulos todas as semanas. Será importante referir que a Mosfilm é um dos mais antigos estúdios de cinema da Europa (foi fundado em 1920) e inclui no seu catálogo os principais filmes produzidos durante a vigência da União Soviética. Entre outras preciosidades, o canal da Mosfilm disponibiliza obras de Andrei Tarkovski (Solaris, Stalker, O Espelho, Andrei Rublev, entre outros), Sergei Eisenstein, Aleksandr Dovzhenko, Elem Klimov (Vem e Vê, por exemplo), Mikhail Kalatozov (Quando Passam as Cegonhas), Larisa Shepitko (Beginning of an Unknown Era), Nikita Mikhalkov ou do japonês Akira Kurosawa (Dersu Uzala). Mas valerá sobretudo aproveitar esta oportunidade para descobrir obras menos conhecidas, como as comédias de Leonid Gaidai (recomendo a mais célebre, The Diamond Arm), os épicos históricos de Sergey Bondarchuk (o obrigatório Guerra e Paz) ou a arrojada ficção-científica Kin-Dza-Dza! (1986).
Paulo Cunha
Em 1957, a União Soviética lançava para o espaço Sputnik 1, o primeiro satélite artificial, corpo não celeste, a orbitar a Terra. Nesse ano, Shirley Clarke e D. A. Pennebaker realizavam uma série intitulada Brussels Loops, encomenda estado-unidense para representação do país na Feira Mundial de Bruxelas, a Expo 58. Brussels Loops é uma obra experimental que transfigura as estradas, as ruas, as pontes, os campos e os gestos diários dos norte-americanos em curtas sequências, de entre dois a três minutos. Estas coloridas e por vezes abstractas unidades projectam-se ritmicamente umas a seguir às outras, como notas de uma peça musical maior que se contrapõem entre si.
Filme mudo, Brussels Loops funciona como antecipação visual do free jazz, que teve precisamente um dos seus expoentes em Ornette Coleman, protagonista de um filme igualmente ágil e brilhante de Clarke – Ornette: Made in America (1985). Criados nos anos da corrida espacial, os círculos de Bruxelas são americanos, mas podiam ser russos também, descendentes do experimentalismo soviético. Exercício sobre movimento e diferentes formas de rimar imagens, em dias de ficar em casa, estas vinhetas são uma encantatória janela sobre o visível, olhar circular sobre o mundo, como Sputnik quis ser. Brussels Loops está editado pela Milestone Films aqui, alguns excertos disponíveis que servem para dar uma ideia do espírito do filme podem ser vistos aqui.
Raquel Morais
Se um digno remake de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) fosse coisa possível, então The Green Fog (2017), realizado pela “tríade” Evan Johnson, Galen Johnson e Guy Maddin (que o disponibilizou para visualização gratuita no Vimeo), será opção certamente fiável e muito satisfatória. Composto inteiramente por excertos de filmes e séries de televisão, The Green Fog é uma homenagem à cidade de São Francisco mas, sobretudo e com uma fluidez lírica impar, recria o argumento da obra-prima de Hitchcock a partir de um obsessivo e inusitado conjunto de found footage.
Samuel Andrade