Estamos de luto. Morreu um dos maiores actores do nosso tempo. O privilégio foi inteiramente nosso. Vimo-lo em filmes de Bergman. Vou repetir: ele viu-nos em filmes de Bergman. Foram várias as obras-primas – seria impossível referir e homenagear todas estas participações… Mas não desmerecemos ainda a sua afirmação no star system de Hollywood: não é William Friedkin quem é destacado, mas Sydney Pollack, num dos grandes produtos da Nova Hollywood, constante da magnífica tradição do thriller de paranóia. A Sydow, esta homenagem. A Sydow, todas as homenagens possíveis.
Na minha cabeça – comentava isso à saída da memorável sessão de Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo, 1957) na Cinemateca Portuguesa, no passado mês de Fevereiro -, Max von Sydow é daqueles actores que sempre foram velhos. Por essa razão, afigurava-se-me sempre surpreendente verificar que este ainda se encontrava vivo – dos últimos resistentes da geração Bergman – e que o seu período dourado foi vivido na casa dos 20-30 anos. Na minha cabeça, Von Sydow sempre foi velho – um bocadinho como também acontece, para mim, com Chishû Ryû, o actor-fetiche de Ozu – e talvez aí resida a sua intemporalidade. Talvez a velhice eterna advenha deste negócio – deste jogo – levado a cabo em proximidade – a menos de um metro, durante mais de 15 minutos… onde é que já ouvi isto? – com a Morte (Bengt Ekero). Estará Sydow a jogar xadrez com Ela neste momento e, portanto, ainda entre nós assistindo ao impensável? É bem provável.
Da experiência de Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo, 1957), guardo o rosto e postura suplicante de Von Sydow e, ao longo da sua carreira, antes de se ter tornado vilão em alguns papéis do cinema americano, sempre o vi como o último dos desamparados. Este guerreiro que joga xadrez, adiando o inevitável, com a Morte, para depois assistir aos horrores de uma vida infectada pela peste, a loucura e a perdição, não é especialmente heróico. Ele é “frágil como o mundo”, não tem grande escolha – Bergman apoia-se nas suas costas para filmar um tempo sem horizontes, sem grande salvação sem ser na hora do lobo em que a Morte interrompe a ceia ou a reunião fraterna para levar quem tem de levar. O rosto suplicante corresponde a uma redentora desistência no fim, naquele final assombroso, em que toda a vida que nos espera para lá desta fica remetida para um contra-campo que não vemos. Xeque-mate, caro Sydow. E boa vida, meu jovem.
Luís Mendonça
A justeza de um título como Ansiktet (O Rosto, 1958) percebe-se quando deparamos com o seu referente: Max von Sydow. O actor que já então tinha jogado xadrez com a Morte em Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo, 1957) surge nesta “grande ilusão” de Ingmar Bergman como a face que concretiza o jogo da manigância. Ao invés das feições magras e despidas do cavaleiro, vemo-lo com um ar pitónico, adornado de barba e cabelo negro tão fake que brilha na sua matéria sintética à mínima aproximação da câmara. Ele é Albert Emanuel Vogler, um hipnotizador do século XIX, líder de um grupo de saltimbancos cuja magia será posta à prova, em Estocolmo, diante de um cientista cético e a sua plêiade de racionalistas engomados. Sem mais, Bergman opera no contraste entre ambas as partes; interessa-lhe simular a relação do artista com a sua audiência, ilustrar as dores do ilusionista, que não são mais do que as dores do cineasta.
Sendo o filme que realizou depois de uma série de títulos internacionalmente aclamados – entre eles, o mencionado Det sjunde inseglet e Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957) – este tantas vezes esquecido Ansiktet reveste-se de um sentido de reencontro místico. Bergman estava em fase de questionamento da condição do artista insatisfeito. E quem mais poderia encarnar essa sua secreta tortura? Max von Sydow, pois claro, semblante da dúvida ancestral, rosto de profundezas várias ao qual o realizador confiou a expressão dos seus próprios abismos. Vogler é o olhar exausto e envolto em trevas que não só domina este fabuloso quadro indefinido (comédia + drama + terror) como confere ao preto-e-branco gótico do director de fotografia Gunnar Fischer um gosto malsão. Usando muito pouco da palavra, já que o personagem finge ser mudo, a sua eloquência está toda concentrada no poder da fisionomia, essa constantemente a lidar com o incómodo da máscara do prestidigitador. Tão só um tremendíssimo Von Sydow.
Inês N. Lourenço
Naquela que é talvez a cena mais conhecida de Jungfrukällan (A Fonte da Virgem, 1960), de Ingmar Bergman, Max von Sydow (Töre) derruba, com o peso do próprio corpo, uma bétula. A violência com que contraria a verticalidade da árvore revela a ira silenciosa que, a céu aberto, dirige a deus. Corta com afã os ramos finos da bétula, num anúncio do confronto, também ele combate horizontal, que veremos momentos depois ter lugar a coberto do telhado de sua casa. No interior, vemo-lo despido das suas vestes e da sua fé, já só corpo, envolto nos vapores e sortilégios de Ingeri. Fustiga o próprio tronco com os ramos que recolheu, braços do opositor, com uma desenvoltura e vigor que contrariam os pequenos gestos de auto-mortificação a que o obscurantismo da mulher, Märeta, a entrega. Töre, imagem de uma virilidade digna, lava-se para descer ao inferno. O abate da árvore corresponde à temporária ruína da alma. A cena no exterior marca o início de uma sequência em que vemos a fé clara, desassombrada daquele homem, apoiada na confiança em que a graça divina tudo pode manter, dar lugar a um movimento inexorável de vingança, coreografia sem verbo.
Em Jungfrukällan, o primeiro vestígio que temos de Töre é a voz – ouvimo-lo rezar, guiando a casa, e é pelas palavras que conhecemos a sua crença, paradoxalmente ancorada no seu lado terreno. Töre nunca fala do diabo, não teme o profano, nem a vaidade da filha, Karin, que o diverte. O modo franco como circula por entre elementos e forças contrárias, o bem e o mal, decorre do seu sentido prático e de ser, como diz, um homem que só sabe fazer paz consigo mesmo através das próprias mãos. Se é pelas palavras que Töre se dirige ao céu no final do filme, enunciando a trégua, a sequência inaugurada pelo abate da bétula é muda, só interrompida por duas elocuções – o pedido de uma faca e um pedido de perdão. Em muitos filmes de Bergman, Sydow é, como outro actores, sobretudo ventríloquo. No papel de Töre parece ser sobretudo corpo e afirmação da sua expressividade.
Raquel Morais
No seio de uma carreira com mais de 70 anos de actividade, é inevitável destacar a variedade de sentimentos e realidades que Max von Sydow imprimiu no grande ecrã. Do estoicismo cristão de Jungfrukällan (A Fonte da Virgem, 1960) ao próprio “Cristo encarnado” em The Greatest Story Ever Told (A Maior História de Todos os Tempos, 1965), da exaustão física e moral perante a possessão demoníaca em The Exorcist (O Exorcista, 1973) ao impiedoso Ming de Flash Gordon (1980), da desolação emocional de En passion (A Paixão, 1969) à busca de uma vida melhor por intermédio da emigração em Pelle erobreren (Pelle, o Conquistador, 1987), o âmago do seu percurso artístico é, por si só, matéria para uma infindável dinâmica de análise, inspiração e permanente apreço.
Pessoalmente, o título que melhor demonstra a capacidade de metamorfose de Max von Sydow reside num dos meus filmes favoritos de Ingmar Bergman: Vargtimmen (A Hora do Lobo, 1968), drama de possante terror psicológico. No seu Johan Borg, artista plástico cujo passado conturbado assombra (tanto metafórica como literalmente) a sua vida conjugal com Alma (Liv Ullmann), Sydow é, alternadamente, romântico, inquieto, socialmente desajustado, violento, homicida e infiel. Um misto de estados de espírito que culmina numa das sequências finais do filme — a que o frame aqui destacado se refere —, onde Johan confronta o fantasma de Veronica Vogler, uma “insidiosa” paixão antiga, numa pura conjugação de assombro e erotismo. Neste momento, o ideal de masculinidade (e, num pormenor de “trivia”, Sydow era senhor de quase dois metros de altura) do personagem reduz-se a uma figura frágil, titubeante, impotente, fracassado… Numa só imagem, fica, também, devidamente comprovado o leque de registos que Max von Sydow sempre foi capaz de interpretar; não só em Vargtimmen, mas como em toda a sua filmografia.
Samuel Andrade
O filme que os cinéfilos mais depressa associam a Max von Sydow é Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo, 1957) de Ingmar Bergman, onde o cavaleiro por ele personificado joga uma partida de xadrez com a morte. Em Os Três Dias do Condor cabe a Von Sydow dar corpo à própria morte. O seu nome é Joubert, um ex-agente da CIA que se estabeleceu depois como assassino por contrato. Vemo-lo na abertura do filme de Pollack a chefiar o grupo de homens que irrompe pela American Literary Historical Society em Nova Iorque e mata toda a gente no interior. Muito calmo, dir-se-ia mesmo impassível, Joubert pronuncia as primeiras palavras para pedir que uma funcionária se afaste de janela, para que a rajada de metralhadora não cause estragos visíveis do exterior. Joubert é o tipo que pensa em tudo, e que tal como numa partida de xadrez, pensa por antecipação.
A minha escolha nesta despedida colectiva de Max von Sydow recaiu sobre o filme com ele de que mais gosto. Coincide com um filme de Sydney Pollack, um dos meus autores de cabeceira. Em 1975, Von Sydow já tinha feito O Exorcista (1973) de William Friedkin, mas acredito que muitos espectadores alheios ao cinema de Bergman tivessem tido o seu primeiro contacto com Max von Sydow neste Condor. Isto diz da importância de ele ter sido para tanta gente primeiro Joubert e só depois Von Sydow. A inquietação do espectador é maior face ao desconhecido, e uma cara desconhecida no papel do vilão, se interpretada por um grande actor, cria uma ocasião rara e muito eficaz. É deste modo que Joe Turner (Robert Redford) se refere a Joubert, quando ainda não sabe quem ele é: “a very tall gentleman, about 6’4’’, blond hair, strong like a farmer, not American, accent, country near Germany, maybe Alsace-Lorraine”. Irão reencontrar-se e farão uma despedida digna de cavalheiros que se respeitam e que respeitam o jogo da vida e da morte.
Ricardo Gross