Em Les Dames du Bois de Boulogne (As Damas do Bosque de Bolonha, 1945), o superlativo melodrama de Robert Bresson, a personagem de Élina Labourdette soltava à beira da morte, sob o apelo do amante que lhe implorava para lutar pela vida, uma pequena frase de resistência: “Je lutte”. Embora não voltemos a ouvir a frase directamente, escutamos ecos dela em quase toda a obra subsequente do cineasta francês. “Je lutte”, diz o rosto do padre ascético de Journal d’un curé de campagne (Diário de um Pároco de Aldeia, 1951) na sua enferma agonia diante da dúvida, da humilhação e da doença. “Je lutte”, murmuram as mãos do soldado audaz de Un condamné à mort s’est échappé (Fugiu um Condenado à Morte, 1956) na obstinação com que procuram o sopro do vento da liberdade dentro da claustrofóbica cela. “Je lutte”, diz o olhar inabalável da mártir santa de Procès de Jeanne d’Arc (O Processo de Joana d’Arc, 1962) na forma como confronta o tribunal inquisitorial que lhe prepara paulatinamente a execução na praça pública. Seja de que maneira for, e independentemente do desfecho que encontrem, quase todas as personagens de Bresson combatem, pugnam e resistem contra algo. Foi Jonathan Rosenbaum quem a disse pela primeira vez e queremos reiterar a afirmação: “’Je lutte’ é o lema bressoniano definitivo.”
Luta-se, e muito, em Lancelot du Lac (Lancelote do Lago, 1974). Na insane demanda colectiva pelo Santo Graal, nos treinos, duelos e exercícios medievais onde os cavaleiros praticam a arte da beligerância, na guerra civil provocada por Mordred pelo trono arturiano. Mas, acima de tudo, luta-se contra os próprios sentimentos. Lancelot é esse valente cavaleiro que tem de escolher entre a promessa de fidelidade feita ao rei e os votos de paixão soltos à rainha, e toma a escolha errada ao continuar o romance adúltero entre si e Genebra, tornando-o o catalisador fatídico da quebra da Távola Redonda. É o mais velho dilema do mundo. De um lado da balança moral de um homem está um líder, um deus, um código de honra e todas as causas nobres em que na sua probidade crê. Do outro lado, e apesar de tão simples que possa parecer, algo perfeitamente capaz de pôr em causa tudo isto e muito mais: o amor por uma mulher.
Nem espada na pedra, nem dama do lago, e sobre Merlin mais não teremos do que uma referência nos créditos de abertura. Em Lancelot du Lac os elementos fantásticos da mitologia arturiana são afastados para imperar uma versão íntima e realista da lenda, sublimada à sua essência moral e sentimental. Cabeça e coração, corpo e alma, dever e amor, todos estes conflitos ganham tangibilidade na forma como Bresson filma os seus cavaleiros, de rostos inexpressivos e corpos aprisionados em armaduras (é notável a presença constante do chocalho destas na banda sonora diegética), tornando-as peles metalinas representativas da crença nos códigos augustos de cavalaria e dos sacrifícios implicativos, símbolos de um estoicismo emocionalmente repressivo mas ideologicamente terso (daí a importância daquele grande plano onde Lancelot atira a armadura ao chão antes de abraçar Genebra, abandonando a resistência física e moral que até ali lhe mantinha) ao qual cabe mandatoriamente obedecer.
É talvez o filme mais negro, desesperado e niilista – a começar pela contundente cena inicial, com elmos ensanguentados, decapitações bruscas, cadáveres enforcados e pilhagens veementes – de uma das mais amadas fantasias. O mundo de Lancelot du Lac é um onde Deus está irado ou, no mínimo, silenciado, no qual a ruína dos bravos cavaleiros de Camelot surge como predestinada, algo vaticinado desde a primeira cena com uma idosa enigmática a afirmar para uma criança, “Aquele cujos passos ouvires, morrerá dentro de um ano”, a primeira de muitas afirmações fatalistas ouvidas ao longo do filme inteiro que ora sugerem o destino ominoso da Távola Redonda, ora indagam a impassibilidade de Deus. Há um plano que é capaz de sumarizar esta separação entre a terra e o céu, os homens e o divino, aquele no interior de uma igreja em que Lancelot entra para se ajoelhar e pedir auxílio sacro diante de uma cruz que Bresson insiste em manter desfocada. A minuciosidade formal e perfeccionismo austero do cineasta nunca permitiriam o desfoque da cruz a não ser de forma intencional, e por isso algo mais tem que ser concluído com esta opção estilística do recurso ao foco raso. Dizemos nós que, ao manter a cruz desfocada, o realizador sugere, por causa de Lancelot e da relação proibida com Genebra, a inalcançabilidade de Deus para os seus servidores, a irresgatabilidade dos últimos pela não intromissão ou simples ausência do primeiro, tornando inevitável a queda dos códigos de cavalaria e deste tempo de coragem, virtude e heróis. Aconteça o que acontecer, por maiores que sejam os números de orações, súplicas e vítimas, os céus não os acudirão. É o presságio do fim de um mundo o que Bresson filma.
“O ouvido é muito mais criativo do que o olho”, disse Bresson uma vez. Talvez esta crença da proeminência do som sobre a imagem nunca se tenha comprovado tão verdadeira como na cena do torneio, um dos apogeus da sua auto-entitulada écriture cinematográfica, do seu estilo espartano, metódico e extremamente racionalizado. Feito com recurso visual quase exclusivo da sinédoque (a parte de algo que representa o seu todo) e do fora-de-campo, Bresson filma cavaleiros em combate com a câmara focada em elementos individuais: os membros dos cavalos a ganharem velocidade, as pontas das lanças antes de rebentarem no arsenal do adversário, as reacções de inquietação da audiência no momento do embate, a queda bruta de cada cavaleiro no chão da arena. Pouco é mostrado, mas tudo é sentido. E é sentido graças ao espaço acústico, onde predominam os sons acutilantes das gaitas de foles e tambores enquanto a bandeira de uma nova ronda é hasteada, dos galopes soltos em linha recta rumo a um outro oponente, do abraço mortífero do aço do escudo com o ferro da lança, dos gritos infecciosos de choque e admiração dos espectadores. A forma ritualizada e dinâmica com que surgem estes elementos tornam o poder de sugestão gradualmente mais forte e, por consequência, o impacto fílmico que a cena total acarreta.
Uma breve história capaz de elucidar o nosso ponto. Perguntaram uma vez a Fritz Lang o porquê de não ter mostrado o que acontecia às crianças em M (Matou, 1931). Respondeu-lhes, “Porque desta forma faço o espectador meu cúmplice. Cada um imagina o pior que aconteceu àquelas crianças e sente um arrepio pela coluna abaixo, algo que não aconteceria se me tivesse limitado a uma possibilidade. Ao sugerir algo consigo uma impressão maior, um envolvimento maior do que se o mostrasse. Para resumir, uma coisa simples: uma mulher semi-despida é muito mais sexy do que uma completamente nua.” Não sabemos se Bresson terá alguma vez lido a argumentação de Lang, mas parece estar sincronizado com ela no que toca ao uso essencial da imaginação do espectador. Somos feitos cúmplices extremos pela audição, a violência no que está ocultado nas imagens é complementada pela nossa mente ao ser alimentada pelo som, e a “mulher” surge-nos com a pele exposta apenas o suficiente para fazê-la ser “a mais sexy“. O resultado deste jogo entre o que é mostrado e escondido, do dentro e do fora de campo, da precisão de relojoeiro em cada corte e elemento sónico, é não só um tour de force na sua obra que cristaliza ao expoente máximo as possibilidades artísticas que via no “cinematógrafo”, como também um dos mais excelsos momentos de montagem já elaborados. Num mundo justo, falar-se-ia do torneio de Lancelot du Lac nos livros de cinema, no espaço académico, nas conversas entre cinéfilos, com a mesma atenção, frequência e entusiasmo com que hoje se fala da escadaria de Odessa em Bronenosets Potemkin (O Couraçado Potemkin, 1925) ou do chuveiro de Psycho (Psico, 1960).
Não é dizer tudo sobre a violência sugerida que o filme contém. A última cena, que encerra Lancelot du Lac de forma circular ao terminar no mesmo espaço físico em que começou (a floresta), faz recurso dela como uma resposta à extremamente explícita e menos eficiente que a primeira contém, ascendendo a imagem ao nível do simbólico. Flechas letais atingem troncos arbóreos, cavalos selados troteiam sem dono, e cavaleiros golpeados surgem-nos imóveis em enquadramentos onde o único movimento fluido já é só o do sangue. Todas estas imagens sabemos que representam o fim de Camelot e dos seus valores. É por elas e pelo mórbido grasnar de um corvo (que tanto tínhamos ouvido nos encontros entre os dois amantes no celeiro, alertando-nos para o facto deste amor andar de mãos dadas com a morte) que o filme terminará numa nota cemiterial, com Lancelot ferido e estonteado, rodeado por uma pilha de cadáveres ainda quentes, a soltar apenas uma palavra: “Genebra”. Debrucemo-nos sobre ela. Alguns dirão que Bresson está a acusar a personagem feminina como a causa infame de todo o caos provocado. Outros que é apenas um murmúrio vão que aponta a futilidade de toda a guerra surgida. Provavelmente ambas as partes têm razão e, dado o pessimismo que acarretam os dois posteriores e últimos filmes do realizador, pode bem ser o que ele tenha pensado. Mas, tão importante quanto isto, e ainda mais em linha com a obra bressoniana, “Genebra” é também uma memória feita arremesso para se combater um último estertor. Uma espada esgrimida contra a inexorável gadanha, antes que as pernas falhem e o corpo caia sem vida. Uma pequena frase de resistência. “Je lutte”.