Momento inesperado da conversa que teve lugar após a antestreia do filme na Cinemateca, foi quando Albert Serra se referiu (com nostalgia?) às imagens documentais do Woodstock que mostram corpos semi-nus numa celebração de todos com todos, no sentido do abandono da consciência de si próprio e de uma entrega ao prazer festivo, e acima de tudo da imagem livre, espontânea e vulnerável (decorrente da exposição do corpo) que aquelas pessoas davam umas às outras, impossível no mundo actual formatado pelas redes sociais que nos tornaram demasiado vaidosos, competitivos e auto-conscientes, e auto-centrados também, ou não fôssemos o centro das selfies difundidas por tudo e por nada, que conduzem à partilha da nossa imagem quando previamente avaliada pelos próprios. Os filmes de Albert Serra podem dar a ideia de que ele se foca noutras realidades e pensa sobretudo sobre tempos muito antepassados, mas o realizador revela ter clara consciência da época em que vive, e podemos ver também na sua obra uma reacção contra o tempo presente marcado pela futilidade do ego e pelo efémero.
Em Liberté (2019) existe um bosque, a acção toda decorre numa única noite, e o conjunto de pessoas que dela fazem parte possuem identidades que não fixaremos (com a excepção do duque de Walchen interpretado pelo viscontiano Helmut Berger), e entregam-se à prática de jogos sexuais que vão da sugestão das formas intumescidas, até à explicitação dos fluidos e dos gemidos de dor e prazer. Serra filmou sempre o mesmo espaço, com três câmaras digitais, a diferentes distâncias dos actores, para que pelo menos a presença de uma delas escapasse à consciência dos participantes.
Serra acumulou 300 horas de material filmado. Nesse tempo necessário quebrou parte do poder dos actores de controlar a imagem que dão das personagens, e chegou a uma naturalidade do estar que chega a sugerir por momentos o comportamento animal. Quando os corpos cansados se espojam pelo chão, quando espreitam imóveis ou esperam o seu momento de tomar parte nos rituais de libertinagem, filmados por Serra como vultos cercados pela vegetação densa dos eucaliptos, parece por vezes que estamos a assistir a algo de semelhante com os documentários BBC com bichos no seu habitat natural. A inclusão de um plano muito belo de três cavalos, cuja estilização do movimento lhes atribuiu uma aura espectral, não seria necessária ao estabelecimento desta relação, mas reforça por outro lado a dimensão fantástica do filme. Fantástica no sentido de fantasia habitada por fantasmas e que é facilitada pela noite e pelo sonho.
O filme é uma experiência. É para ser experimentado no sentido mais íntimo e secreto.
Albert Serra coloca o seu filme, primeiramente uma experiência de palco levada a público na Alemanha, onde um crítico de teatro se lhe referiu dizendo que os actores pareciam perdidos em cena, do lado de um “cinema-instalação” onde, caso fossem outras as circunstâncias, poderíamos entrar, permanecer e sair quando nos aprouvesse. A nossa deslocação física tornaria ainda mais directa a relação que Serra procura fazer existir entre os que no filme assistem ou espreitam as práticas sexuais, e o espectador que voyeuristicamente orienta o seu olhar por entre aquilo que Serra lhe dá a ver, no todo ou em parte. Liberté usa o mote da noite e da libertinagem para criar uma tela viva, melodiosa e difusa, iluminada pela lua, com o omnipresente som do cricrilar dos grilos, com a beleza do texto poético falado em três línguas (francês, italiano e alemão), junto com os murmúrios dos que se oferecem ao cardápio sadiano, até ser madrugada.
O filme é uma experiência. É para ser experimentado no sentido mais íntimo e secreto. É um teatro de sombras. Não é um filme festivo (como o exemplo do Woodstock usado por Serra). A liberdade redunda na frustração e na impotência. A liberdade última afigura-se uma utopia que no filme de Serra só existe, jorro a jorro, gota a gota, vergastada a vergastada, até ser dia.