A Star is Born is almost an epic about the difficulty of a relationship between two people who are very creative, dealing with celebrity, dealing with their own creative fulfilment and satisfaction, and everything fighting against them. That film crossed between these things in a way that had production design that, at times, was quite realistic, in a way. It was a different approach. Almost a documentary epic, particularly the backstage sequences, and the studio sequences.
Martin Scorsese
O encontro de Norman Maine (James Mason) com Vicky Lester (Judy Garland) em A Star is Born (Assim Nasce Uma Estrela, 1954) de George Cukor acontece nos bastidores, quando Mason embriagado procura invadir o palco, onde Garland cantava na frente de uma big band. A extensa sequência induz um excesso de movimento e de cor, a traduzir a embriaguez de sucesso do protagonista que a todos empurra, por entre as luzes disparadas pelos fotógrafos que reiteram a desordem do comportamento de quem se diz adorado pelo público. Como a filha Liza fará com De Niro em New York, New York (1977) de Martin Scorsese, Garland será a única parede a suster Mason, que procura obstinado o centro do palco, sendo que a acção de Garland os arrasta para o canto, onde o movimento cessa e eles se olham, envolvidos pela sombra. Como adiantara Scorsese, um dentro e fora, os bastidores da realidade e o palco da imitação da vida, luz e sombras, êxito e ruína, uma elegia, que é também um documentário da Hollywood dourada. A sequência termina com Mason nos camarins a agradecer a boa conduta de Garland, “as legiões e os códigos que zelam pela nossa indústria também ficarão satisfeitos”, diz-lhe.

São dois mundos apartados que o par se esforça por juntar: apesar do sucesso e da veneração do público, Norman é um solitário que percorre noites e bares a engatar actrizes que se encontram sob contrato dos estúdios, um galã, com reputação de irascível, que não encontra satisfação no trabalho, nem fora dele; Garland e uns quantos músicos trabalham em bares e depois disso esgotam o cansaço na Sunset Boulevard a tocar até de madrugada, não dispõem de dinheiro nem notoriedade, mas são compensados pela música que fazem. Mason descobre o talento de Garland com a mesma estupefação com que De Niro abrandou a fúria do saxofone para ser salvo pela elegância da voz de Minneli. Garland canta encontros felizes, um amor sem igual e a tristeza da despedida e, como formulámos no artigo anterior, as canções são como um oráculo da narrativa, informação verosímil que nos é passada, como num thriller, que faz com que espectador saiba mais do que os personagens, que lhes conheça previamente o destino. Mason arrasta Garland para fora do bar para lhe dizer que ela é uma grande cantora, que sentiu um arrebatamento a ouvi-la, algo que só se experimenta num bailado, ou quando vemos um pugilista que se prepara para a estocada final. Ao fundo do par, as luzes da cidade, a anunciar o sucesso dela. Nessa noite, em que ele a desafia a deixar a banda, a aventurar-se no rasto do sucesso, Cukor cruza imagens do quarto modesto dela num pequeno hotel (mal iluminado, uma pequena cama) e os aposentos sumptuosos dele, com uma enorme leito e cortinados que abanam, e Mason a circular como um faraó, enquanto bebe. Ele consegue insuflar-lhe uma ideia de sucesso, que ela não almejara até ali: a promoção da carreira dela será uma forma de quebrar a insatisfação dele, resultado da sua estagnação e decadência.

Garland, no seu primeiro dia nos estúdios, fica no centro de uma espécie de consultório, rodeada de homens vestidos de bata branca, que lhe avaliam o rosto – o problema são as sobrancelhas à Dietrich e um nariz imperfeito – e a partir daqui o filme adquire uma nova camada, um jogo irónico, um comentário ao percurso problemático de Garland dentro e fora do show business e à sua dificuldade em impor-se num tempo dominado pelo star system. Contratada pela MGM em 1934, Garland teria, cinco anos depois, aos 17 anos, o seu primeiro grande triunfo – The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1938), que marcaria toda a mitologia em vida e depois do seu precoce desaparecimento, aos 47 anos. Pelo meio, muitos milhões facturados pela indústria de Hollywood, mas com Garland sempre diminuída, um patinho feio, de baixa estatura e com problemas de peso, a quem Louis B. Mayer apelidava carinhosamente de pequenina corcunda, com frequentes colapsos nervosos e algumas tentativas de suicídio, que a levavam a faltar às rodagens e com consequentes substituições em vários filmes, com cinco casamentos pelo meio, um deles com Vincente Minnelli, depois de se cruzarem no set de Meet Me in St. Louis (Não Há Como a Nossa Casa, 1944). A Star is Born, depois da dispensa da MGM e sob contrato da Warner, assinalou mais um regresso de Garland, depois de quatro anos parcialmente preenchidos com uma tentativa de recuperar um passado de vaudeville. Esther Blodgett, já baptizada, então, pelo estúdio como Vicky Lester, sai do tal consultório toda maquilhada, loira, com um nariz novo e Norman não a reconhece quando se cruzam num dos armazéns do estúdio. Mason arrasta-a para uma sala, retira-lhe toda a maquilhagem, desmonta o artificio, para lhe devolver a autenticidade, da qual ele afirma que o seu triunfo dependerá. Se esta cena é comovente, mesmo que a postura de Mason seja ambígua, entre um amante e um caçador de talentos, a cena seguinte, do primeiro encontro de Garland com o líder do estúdio, que assiste a um screen test de um western, é espantosa, ao encadear Vicky com as luzes da projecção, deixando a sua frágil figura perdida no espaço e em grandes dificuldades para encontrar a saída da sala. Voltamos à introdução de Scorsese, uma ficção que documenta Hollywood, que é também uma metáfora como modo de representação dos grandes estúdios, de actores e outros profissionais sob contrato, imersos numa ilusão que cria mundos e identidades, que oferece celebridade, para depois ofuscar, pois enquanto uns ascendem, outros são abatidos.

No primeiro filme de Vicky, a canção “I was born in a trunk” ocupa o centro, e a biografia de Garland volta a contaminar o filme, pois aquela letra parece narrar a infância dela, esperanças, sonhos e lágrimas, de uma vida árdua de itinerários em família nas profundezas da América, vaudeville de matinés, camarins e quartos de hotel, até ao sucesso, num trio com mais duas irmãs, The Gumm Sisters, depois The Garland Sisters, pois soava melhor em Hollywood, que as integraria em algumas produções, antes da contratação de Frances Ethel, rebaptizada Judy Garland. Histórias pessoais e autênticas no nascimento de uma estrela, um triunfo que o par parece capaz de partilhar, mas que um plano denuncia, quando Cukor coloca de um lado Vicky cercada de admiradores e jornalistas e no extremo oposto um Norman apartado. Apesar de parecerem exigir uma vida à parte de Hollywood, o pedido de casamento de Norman acontece nos estúdios, testemunhado por toda a equipa, enquanto Vicky gravava uma canção para um filme, um excesso que desmente a possibilidade de fuga dos holofotes.

Como sucedera na gravidez de Minnelli e na gravação do disco que remetera De Niro para a obscuridade em New York, New York, ao auge do sucesso de Garland o filme responde com o despedimento de Mason pelo estúdio, a sua decadência e o histórico de problemas com o álcool e as ausências nas rodagens deixam de ser admitidos, como um produto fora de tempo, que vê a sua validade expirada. Esta tensão, na gestão da relação e da celebridade, tem dois culminares, em duas cenas que se sucedem, uma no âmbito privado e outro público e que expõem uma rotura incurável: chega uma encomenda ao domicilio conjugal em Malibu para Vicky Lester e o carteiro pergunta quem ele é, Mason responde que é o marido, assine aqui, Mr. Lester, é a resposta do carteiro; já na pobre condição de marido da estrela, Mason chega atrasado e embriagado à cerimónia dos Óscares, interrompe o discurso de Garland, que acabara de receber o Óscar de melhor actriz, invade o palco, na sua obsessão de ocupar o centro, e enquanto pede emprego estica os braços e esbofeteia acidentalmente Garland, numa cena que se dispõe numa pilha de emoções, da humilhação e autocomiseração dele, à comoção da companheira e ao desprezo quase unânime da plateia, com o espectador há muito descrente dos musicais como espaços de divertimento e alheação, para se entregar às vivências e aos sentimentos do par: o melodrama busca a empatia.

Com Vicky disposta a abdicar da carreira para salvar Norman, na casa de Malibu, um tom melancólico começa a desenhar-se nos envidraçados, na relação de transparências de interiores sombrios e de um sol que se põe no Pacifico, uma luz branda e fúnebre a conferir solenidade ao desaparecimento da figura recortada de Mason, do homem de qualidades que ele fora, corrompido pela face sombria de Hollywood, e que só agora é desvendado por alguns personagens e pelo espectador.
Em Mulholland Dr. (Mulholland Drive, 2001) de David Lynch, uma mulher canta Llorando, Rita e Diane dão as mãos na plateia e partilham da comoção daquela canção, uma permuta de sensações que culmina com um espasmo electrificado da cantora, que desmaia, enquanto o choro da canção permanece e o anfitrião assinala “no hay banda” e desmascara a encenação o que paradoxalmente a amplifica. Pouco antes de Malibu, Vicky emociona-se no camarim com a esperança das palavras de um dos produtores, que garante que conseguirá um papel para Norman; no instante seguinte, Garland é chamada ao palco e já em cena, rodeada pelo aparato do estúdio, ouve-se a música e ela canta, em playback, transpondo para o dentro de campo o lacrimejar da conversa anterior, transições bruscas entre o dentro e fora, um paroxismo como uma ópera, em que no artifício se revela a verdade.