No passado dia 26 de Fevereiro, passou pelo palco do Museu de Serralves, depois de ter já ocupado o Teatro do Bairro em Lisboa, a performance da artista do Zimbábue nora chipaumire [assim mesmo, em minúsculas, como símbolo do seu desapossamento], inspirada pela figura, pela música, pelo carisma e pela presença da actriz Grace Jones. O nome do trabalho: 100% POP. Além do envolvimento cénico da performance (em que o público se coloca em roda, rodeado por sua vez pelos músicos que ocupam as extremidades do palco e rodeando a artista), que favorece uma intimidade e uma proximidade física com os intérpretes e de uma energia violenta que perpassa todas as palavras de ordem, acordes, rimas e movimentos (mais ou menos sincronizados), aquilo que mais me interessou em 100% POP foi tudo aquilo que correu mal (ou melhor, como a artista lidou com os factores desfavoráveis que cercearam as suas intenções festivas).
O propósito de chipaumire é o de construir uma festa desesperada, quase apocalíptica, em que só as convulsões musicadas dos membros, o suor e a interacção entre as gentes permite uma libertação de uma sociedade (e o passado, que a construiu) opressora. Se nada pode mudar, ao menos que se possa dançar. É um gesto belo – romântico até – de uma forma triste, mas nada cínico. Isto se o público quiser participar da festividade. E se este preferir manter-se imóvel, impávido e inane (no fundo, se não sentir como seu aquele frenesi)? Pois bem, nesse caso a alegria passa de opção a ditame. Uma espectadora resolveu sentar-se, quando todos os outros estavam de pé (posição que favorece o movimento que chipaumire procurava). “This is not a seating down party!”, explicou-lhe a performer – por palavras, quando não o fez por gestos, provocando-a, convidando a dançar. A besta permaneceu sentada, agora por orgulho, e isto deu origem a uma sucessão de enxovalhos vários por parte de chipumire (e bailarino coadjuvante) que envolveram desde o lançamento da race card (“Já sabemos que a Europa nunca pagará ‘reparações’, mas ao menos aguenta 60 minutos de pé!”) até ao literal espezinhamento (coreografado, claro). Consequência disto: ao fim de um quarto de hora, a performance perdeu meia-dúzia de espectadores, incluída a casmurra criatura – terminando com a proclamação, por parte da artista: “This is MY house!”. Este episódio revelou, a meu ver, duas coisas: o terror da alegria quando imposta, mas, mais importante, o poder produtivo do desconforto.
Focando-me no segundo, este desconforto teve o condão de transformar o que podia ser uma mera experiência alienante (não muito diferente de um bom concerto, ou de uma rave), num momento de violência. Uma violência que depois contaminou todos os gestos (levantar as mãos ao alto, de telemóvel em punho, como sinal de compreensão passou de um gesto simbólico a uma forma de tortura), incluindo a própria permanência naquele espaço – de pé -, tomada por uma forma de opressão. As coisas doem, as coisas custam, e como pode a arte fazer sentir essa dor e essa dificuldade? Se não de outro modo, pelo menos pelo desconforto. Esse parece-me ter sido o feito da performer: reagir (epidermicamente) à besta com uma bestialidade tão gozona quanto violenta (uma incómodo paliativo).
Como diz a certa altura uma das personagens alcoolizadas do bar – que acabará morta e despedaçada -, o riso e o vómito vêm do mesmo sítio, as tripas, e saem pelo mesmo buraco.
Chego, por fim, a Der Goldene Handschuh (O Bar Luva Dourada, 2019) de Fatih Akin, o mais recente título do catálogo de objectos audiovisuais não-identificados da Cinema Bold. Akin é um realizador improvável para um retrato asqueroso de um assassino em série. Depois do drama romântico de Gegen die Wand (Head One, 2004), do melodrama familiar Auf der anderen Seite (Do Outro Lado, 2007), da comédia culinária Soul Kitchen (2009) e do mais recente thriller de vingança Aus dem Nichts (Uma Mulher Não Chora, 2017), O Bar da Luva Dourada é surpreendentemente próximo do género de terror para um cineasta mais acostumado aos intrincados familiares e à integração (mais ou menos difícil) do povo turco na sociedade alemã. No entanto, e esse é o ponto fulcral de interesse, este seu filme está igualmente bem longe dos formalismos demasiado restritivos do terror, e é tocado pela mesma “comédia sisuda” que se lhe reconhecia em títulos anteriores. Há, de facto, um ou outro jump scare, que pela sua escassez e despropósito apenas acentuam a dimensão burlesca de todo o filme.
O Bar da Luva Dourada adapta o homónimo romance, bestseller na alemanha, escrito pelo humorista (e romancista) Heinz Strunk – que é co-autor do argumento do filme, juntamente com Akin. Nele descrevem-se, com pormenor vomitivo, os crimes de Fritz Honka: assassino em série que entre 1971 e 1975 matou em Hamburgo pelo menos cinco mulheres, as quais despedaçou e conservou em casa, deixando-as apodrecer por vários anos até os vermes infestarem o apartamento dos vizinhos de baixo. Face a isto, Akin tem, essencialmente, uma ideia de cinema que prossegue até às últimas consequências: pode a minha câmara permanecer serena defronte da truculência bárbara da minha personagem? Pode sim, e mais que isso, é esse olhar clínico (mas nunca cínico) que enche de humor negro todo aquele horror, trazendo ao de cima a dimensão cartoonesca daquele monstro.
Independentemente do rigor histórico da reconstituição que o filme procura afirmar no final (e do problema ético em transformar um caso real – mesmo que ocorrido há quase meio século – em comédia de horrores), o que fica é a decadência patética de todas as personagens que frequentam o bar que dá o título ao filme. Incomoda a violência destes retratos de homens e mulheres alcoolizados, com os seus cabelos sebosos colados às testas brilhantes, as suas unhas enegrecidas, os olhos raiados de sangue, os pensamentos toldados, as roupas coçadas e sujas de nódoas de bebida (quando não do próprio vómito ou mijo), os gestos interrompidos pela descoordenação motora e os tremores das extremidades provocados pela cirrose em estado avançado. A isto soma-se, claro, a violência, o assédio, a violação, a degradação física e psicológica, a tortura, o homicídio e a amputação (sobre mulheres). Só que Akin filma tudo isto com a graça de um Jerry Lewis, brincando com os enquadramentos, explorando a corcunda do personagem como que obrigando-o a caber dentro do quadro [veja-se o fotograma acima], usando os limites do fora-de-campo para antecipar as próprias amputações, divertindo-se com os sobre-enquadramentos, provocando o voyerismo do espectador (que tapa os olhos com as mãos, mas deixa uma frestas entre os dedos para conseguir ver o que se passa).
O excesso de violência e degradação, as paredes forradas de imagens pornográficas, a obesidade das prostituas de meia idade, o álcool que se bebe como se fosse água, os insultos desnecessários, a simples e pura crueldade, tudo isto surge forrado por uma fina camada brilhante que roça, muito ao de leve, o slapstick (género cómico dado à violência física e moral, logo a começar pelo nome que antecipa um excerto de porrada com um pau). Ou, como diz a certa altura uma das personagens alcoolizadas do bar – que acabará morta e despedaçada -, o riso e o vómito vêm do mesmo sítio, as tripas, e saem pelo mesmo buraco.
O Bar da Luva Dourada é uma das mais repugnantes comédias que vi nos últimos tempos, onde o cómico nem sempre se sente. Mas certo é que Faith Akin sabe o que pode o desconforto, especialmente aquele que nos faz rir por desespero. Ou como escreveu Flaubert sobre o Cândido de Voltaire: “Et ce qui me le fait chérir, c’est le dégoût que m’inspirent les voltairiens, des gens qui rient sur les grandes choses! Est-ce qu’il riait, lui? Il grinçait…” [E o que me faz apreciar esta obra é o nojo que os voltairianos me inspiram, pessoas que riem das grandes coisas! Ele ria? Ele chiava…].