Leigh Whannell é um realizador com um percurso improvável, que nada fazia adivinhar o resultado deste The Invisible Man (O Homem Invisível, 2020). Amigo de escola de James Wan, com ele desenvolveu as bases da série Saw, escrevendo o argumento e entrando nalguns filmes como actor. Depois do sucesso doutro serial de terror, Insidious, Whannell assinou, pelas primeira vez como realizador, o final da trilogia iniciada pelo amigo. E em 2018, libertado da sombra virtuosa de Wan [criatura mais que louvada nesta casa – I, II, III, IV], trouxe aos ecrãs Upgrade, filme de acção com tonalidade cómicas naquilo que o meu colega Carlos Natálio descreveu como “um filme que actualiza tecnologicamente a lógica de RoboCop (Robocop – O polícia do futuro, 1987) (…) [n]uma história de vingança não muito distante de Death Wish (1974).” Pois bem, defronte deste seu mais recente título, apetece dizer que a fórmula matemática que traduz este novo empreendimento regressa ao universo de Paul Verhoeven, através da sua revisitação do livro de H. G. Wells, Hollow Man (O Homem Transparente, 2000), combinado com a trama narrativa decalcada de Sleeping with the Enemy (Dormindo com o Inimigo, 1991) em tempos de #metoo [estratégia cada vez mais corrente do cinema de terror, veja-se, por exemplo, o recente Halloween (2018) de David Gordon Green]. Mas claro, reduzi-lo a isso é não admitir a profundidade do entendimento de Whannell sobre a potência do vazio como espoleta do medo.

A mudança de eixo narrativo da história do Homem Invisível, da tragédia do cientista amaldiçoado pela sua invenção (que era, já agora, um dos temas do anterior Upgrade) para a mulher amaldiçoada pelo dito cientista, altera a centralidade da “figura invisível” que dominava as anteriores declinações da história no cinema. Assim sendo, o drama do filme não se prende tanto com a metáfora da exclusão (vários leram em Wells uma parábola sobre a negritude), antes com a manifestação do trauma (uma mulher violentada por um marido manipulador e possessivo redescobre-se num mundo onde ele aparentemente – e esta é a palavra – já não está, encontrando no vazio a terrível evocação da sua presença). Se as ligações entre a República de Platão eram admitidas pelo escritor, através da re-interpretação científica da mitológica descrição do anel Giges (popularizada, nas últimas décadas pelas respectivas adaptações de Tolkien e J. K. Rowling), Whannell sublinha o substracto helénico da sua versão ao nomear a sua protagonista de Cecilia, do latim caecus, que descreve simultaneamente o “cego” e o “invisível”. Esta dupla natureza do nome da personagem principal do filme (extraordinariamente interpretada por Elisabeth Moss) trata, logo à partida, de concentrar numa mesma pessoa o inimigo e a ameaça: se ela não vê, de facto, o monstro dada a sua invisibilidade, é igualmente ela que gera nos espaços despojados a presença desse ser invisível através de um olhar traumatizado que faz surgir no nada as figuras ausentes.
Esse olhar confunde-se, naturalmente, com o olhar de uma câmara que, de diferentes modos, impõe presenças no vazio. Um deles passa pelo recurso ao plano subjectivo numa montagem da campo/ contra-campo. Estratégia tradicional, mas que aqui é levada ao limite da insanidade [a propósito, vários são os pontos de contacto deste filme com Unsane (2018) de Soderbergh]. Outra estratégia passa pelo desfoque e o trabalho sobre a profundidade de campo, como é evidente na imagem a cima. Aí a câmara conduz-nos o olhar para um canto vazio, enquanto “tudo” decorre com naturalidade em primeiro plano. James Wan especializou-se neste género de soluções primitivas (tintado pelo seu fascínio perverso pelas brincadeiras e brinquedos de criança), desde a aparição em desfoque do demónio em The Conjuring 2 (The Conjuring 2 – A Evocação, 2016), até ao canto do quarto onde habita o espírito maligno (e inacessível) de Insidious (Insidious – Insidioso, 2010). Nesse sentido, Whannell repete um conjunto de soluções já antes perfeitamente exploradas pelo amigo. No entanto, há uma que ganha especial destaque em The Invisible Man: a panorâmica.
O realizador parece estar mais interessado em retratar a arquitectura do que qualquer outra coisa. Ou melhor, como se cada um desses planos sobre o aparente nada fossem, afinal, subjectivas dos próprios espaços.
A primeira delas surge logo nos primeiros minutos do filme e resulta de um movimento para a esquerda que conduz o espectador de uma Cecilia que procura evadir-se (muda de roupa junto à cozinha) para um corredor vazio que conduz ao quarto do casal onde o marido jaz dormente; a câmara demora-se nesse acesso “vazio”, regressando à posição de partida. Essa rotação de mais de 90º em vai-e-vem – não muito distante do “terror” estrutural de Back and Forth (1969) de Michael Snow ou La Chambre (1972) de Chantal Akerman – instala uma condição enferma na ausência (ajudada, está bem de ver, pelo próprio título do filme e pelas expectativas por este geradas). Condição essa que resulta, por um lado, do fora de campo (o que acontece quando a câmara deixa de olhar o corredor?), mas mais que isso – e aí está a profundidade de Whannell – no questionamento sobre o que está em campo. Experiências formais destas já haviam passado pelo terror minimalista da série Paranormal Activity, mas aqui há, primeiro, uma elegância discreta no modo de filmar (e na imposição de uma distensão dos tempos próprios do mainstream) e, segundo, uma profundidade emocional que vai bem além do mero dispositivo gimmicky. Mas talvez aquilo que tem mais graça (no sentido de graciosidade) nesta opção de Whannell seja a forma como, no fundo, o realizador parece estar mais interessado em retratar a arquitectura do que qualquer outra coisa. Ou melhor, como se cada um desses planos sobre o aparente nada fossem, afinal, subjectivas dos próprios espaços.
Num extraordinário texto de Augusto M. Seabra, escrito a propósito de Os Canibais (1988) de Manoel de Oliveira, o crítico lembrava – citando uma passagem de um um outro texto de João Lopes sobre Aniki-Bóbó (1942) – o plano de José Augusto e Raquel, em Francisca (1981), que “não pode ser senão o ‘ponto de vista’ da lareira”. Acrescentando que essa é uma das recorrências formais na “gramática cinematográfica” de Oliveira, um “pan-optismo” onde “tudo o que existe e é visível (mesmo os objectos e os seres inanimados) é objecto e pode ser sujeito do olhar”. Cada um desses planos arquitectónicos de Whannell remete-me para este mesmo animismo subjectivo dos espaços. Algo que já se anunciava em Upgrade. Tanto o meu colega Luís Mendonça como o já citado Carlos Natálio reduziram esse filme a uma “tímida actualização” da “reflexão política e metafísica sobre o lugar da tecnologia na sociedade”. Se de facto o é, parece-me que, já aí, se dava a ver o fascínio arquitectónico de Whannell pelos décors. Lá toda a acção resultava do deslumbramento do protagonista pela casa futurista do cientista (diz ele à mulher, numa das primeiras cenas, “tens que ver a casa dele!”). Também aqui a moradia do casal doente (onde o filme começa e, não surpreendentemente, termina) é digna de semelhante fascínio. As formas modernistas do edifício são, evidentemente, uma piscadela de olho à construção de Frank Lloyd Wright para North by Northwest (Intriga Internacional, 1959) de Alfred Hitchcock: os mesmos avançados suspensos sobre um declive, as mesmas vidraças a dar para um vale, a mesma frieza (desta feita de betão) desolada das divisões espaçosas, a mesma estrutura labiríntica. Só que Whannell demonstra tanto interesse pelos espaços dessa estrutura modernista como pelos espaços vazios de uma suburbana moradia pré-fabricada. A sua câmara delicia-se a observar uma cozinha vazia onde uma frigideira frita abandonadamente umas tiras de bacon, sobre um quarto onde a roupa descansa nos cabides de um charriot despojado, ou por um alpendre nocturno que anseia, desolado, pelo correio da manhã seguinte. Os espaços e as suas tragédias.

Atente-se, no entanto, que nenhum desses momentos é tranquilo, pelo contrário. Whannell é mestre na construção de tensão a partir do nada. Cada um desses momentos arrepia pela dúvida que instala no espectador. Só que de uma forma absolutamente lúdica, como se sentisse o prazer do realizador em adiar, aos limites funcionais do género, a materialização do monstro (impondo a dúvida sobre a sua real natureza). E é aqui que The Invisible Man se reveste de inesperado comentário sobre a actual situação pandémica. Se também o vírus é um “inimigo” invisível, a sua presença é constantemente convocado – no nada – pelo olhar assustado de cada um de nós que não ousa já transpor a ombreira da porta (e quando o faz sente a pressão higiénica provocada pela suave histeria que sobre todos se abateu). Se é verdade que, como escreveu Susan Sontag, a propósito doutro vírus (o VIH), “as metáforas e os mitos (…) matam” e, mais, “o simples facto de nos abstermos de usar as metáforas não basta para as afastar. Têm de ser expostas, criticadas, desancadas, arrasadas.” Certo que a utilização constante de vocabulário militar a propósito do COVID-19 parece-me inaugurar um modo de encarar a presente situação que anuncia um estado de sítio eminente (ou pelo menos normaliza essa possibilidade).
Também é, no entanto, verdade que os modos de cada doença convocam outras estruturas, nomeadamente narrativas. Aliás, foi a própria Sontag quem, anteriormente, em A Doença como Metáfora, escrevera que “o cancro é antes de mais uma doença da geografia do corpo, ao contrário da sífilis e da sida, cuja definição assenta na construção de sequências temporais ou de fases.” Assim, o cancro remete, no cinema, para o filme de cerco interno [e não é por acaso que Sontag refere The Thing (Veio do Outro Mundo, 1982) do John “virólogo” Carpenter, no citado ensaio], a sida remete para um cinema fragmentado, onde o tempo é partido e repartido e, agora, o COVID-19 remete para o cinema do delírio e da evocação, onde a presença do “inimigo” é constante e inescapável (e o espaço da casa transforma-se em território de alucinação, tomado de uma identidade própria e ameaçadora). Se Whannell procurara fazer um filme sobre a emancipação feminina, acabou por produzir, involuntariamente, uma perfeita alegoria sobre o modo como o medo e o trauma podem ser máquinas de transfigurar o real – o que não podia ser mais premente, nos dias que correm.