Um capítulo do livro da vida, da história de um indivíduo é delineado por um início e por um fim. Uma fronteira delimita o antes e o depois, o “quem sou” e “quem fui”, e o “quem serei”. Os passos, as marcas fincam-se no espírito de quem o atravessa: uma evolução natural, gradual, que irradia para o alcance de outros que (nos) envolvem, que (nos) criam, que contribuem para a construção da diferenciação entre o passado e o presente, para a (constante) (re)estruturação do “eu”.

Olivia é o espírito, o corpo que atravessa (e dá nome a)o filme: Olivia é o ser que observamos, numa viagem pela identificação do querer (e, inevitavelmente, do ser), do sujeito. Um ciclo que se inicia (e que termina) com o cruzamento de duas almas destinadas à perdição: o desejo inalcançável agarrado até ao limite, colmata na fatalidade da quebra da ilusão e do toque brutal da realidade.
Olivia padece da inocência da idade, da ingenuidade do espírito que não controla a emoção e que se permite à exploração do desconhecido. Ao ser transferida para um novo internato, depara-se, em primeiro lugar, com a sua própria face, com o “ser” em construção. Uma observação cuidada: despindo-se de ornamentos exteriores, volta o rosto uma vez, outra vez, e outra, e outra, como que em busca de uma tradução da imagem que observa. Um espaço de reflexo interior superficial, o início de uma aventura de contornos de profundidade imensurável – uma tradução impossível.

O significado (também) está no espaço, que se amplifica numa arquitectura de indivíduos, de estatutos, de relações. O espaço reflecte o interior em potência visual e é nele que podemos encontrar dois pólos: as professoras e co-directoras mademoiselle Louise e mademoiselle Cara.
O desejo é infindável, mas a ilusão é quebrada pelo toque brutal da realidade. Uma realidade que marca o final de um ciclo, pelo início de uma separação (de parcial rejeição) que pontua o fechar de um capítulo.
Cara vive (da aparência) da opulência, confinada – voluntariamente – a um espaço carregado de elementos, de camadas, de objectos, numa carência constante pelo (nosso) olhar, que, sempre que entra nesse quarto onde o tempo parece congelar, procura uma neutralidade impossível. Uma imagem de ruído que nos impede de observar a real vulnerabilidade daquela – e daqueles – que se alimentam do afecto e da atenção que bebem, que extraem, que sugam dos indivíduos que os rodeiam. O espaço criado por cima do seu corpo, as vestes que o cobrem reflectem a ingenuidade de um espírito que não engrandece.

Numa descida ao patamar de baixo, que todos – estudantes, professoras, empregadas – partilham (a excepção! a bravura! desceu!), o contraponto é estabelecido com o outro pólo.

Julie é despida de elementos superficiais mas não respira: o vestido alcança todos os limites do corpo – tapa-os, esconde-os –, e aparenta ter um peso (quase) incomportável, de quem carrega consigo, nos seus trajes, a escuridão da sua prisão interior. Percorre salas em qualquer andar, sem receio – ou necessidade – de imposição de autoridade: o seu espaço é o espaço de todos (e o nosso também). A (certeza) da sua opulência resplandece das descidas (glamorosas, vagarosas) das escadas, em que somos temporariamente encadeados pela firmeza e pela segurança da postura do andar. A (certeza) da sua opulência advém das leituras à porta fechada para as suas alunas. A clareza da voz, a imponência do ser sentado no cadeirão, com uma faca que corta cada palavra, cada frase, cada emoção. Este é um espaço de encontro e é aqui que se inicia o intenso cruzamento de duas almas.
O significado (também) está em nós.
Olivia e Julie. Julie e Olivia. A semente é lançada, o fruto é criado. O (delírio) do fascínio pelo ideal, pela feminilidade autoritária transparece de todos os olhares que partilham o mesmo foco. O ruído visual, a infantilidade da necessidade do outro pólo permanece num canto esquecido. Um só foco: Julie. O desejo é evidente, a paixão crescente. Do toque, a turbulência. Do olhar, o frenesim. Do desejo, à impossibilidade do amor.
A resistência é imposta pela figura maior, que, por vezes, sucumbe à fragilidade que permeia os meandros da firme estrutura criada, da prisão que cresceu e que sufoca a cada passo, a cada momento. As paredes são gradualmente quebradas, até à entrada subtil num dos espaços nunca vistos: o quarto. Desprovido de elementos superficiais, somos relembrados do contraste com o primeiro pólo (sendo que rapidamente o esquecemos), e somos mais uma vez testemunhas da essência pura, da base que permite a incandescência do fogo que nos contagia a cada palavra, a cada gesto. Uma presença que incendeia todas as redundâncias, que não se apaga com a remoção das camadas do peso e que se apresenta, por breves momentos, na leve brancura das vestes da intimidade.
O desejo é mútuo, a vontade é comum. Dois pólos (re)nascem: a maturidade e a inocência são colocados frente a frente, numa viagem a alta velocidade. De seguida, lado a lado. De seguida, o toque (res)surge. Mas a inocência depara-se com a inevitável rejeição da maturidade: o fim de algo que nunca começa (e que teima em nunca acabar). O desejo é infindável, mas a ilusão é quebrada pelo toque brutal da realidade. Uma realidade que marca o final de um ciclo, pelo início de uma separação (de parcial rejeição) que pontua o fechar de um capítulo.
Este é o ponto de regresso ao início, em que o “quem fui” se distancia do “quem sou”. O impossível não o era: mas, para o avançar da história da vida, é necessário criar um ponto final (a certeza da comunhão momentânea satisfaz até as almas mais bravas). A edificação do ser foi feita a partir da (des)construção do interior daquela que se observava, no início, em busca de uma tradução. A resolução não é – nem nunca será – alcançada, mas a viagem vale mais do que a imagem, vale por mais do que uma vida, vale mais do que um filme – e assim permanecerá, sem cessar.