Cineasta experimental, Bruce Baillie é um dos nomes da vanguarda norte-americana do pós-guerra, entre outros como Maya Deren, Kenneth Anger, Stan Brakhage, Shirley Clarke, Gregory Markopoulos ou Jonas Mekas.

Realiza o primeiro filme em 1961, On Sundays, o mesmo ano em que cria o ainda em funcionamento Canyon Cinema, na baía de São Francisco, que passa alguns anos depois a funcionar em modelo de cooperativa, à semelhança de associações congéneres dessa década, como The Film-makers’ Cooperative, em Nova Iorque, ou a London Film-Makers’ Co-op, grupos que concentravam actividades de produção, distribuição e exibição, como forma de garantir a existência e visibilidade de uma produção fílmica que não se coadunava com o modelo comercial.
O historiador de cinema P. Adams Sitney, no seminal Visionary Cinema (1974), aponta Baillie como um dos exemplos mais produtivos da influência exercida pela primeira fase do cinema de Stan Brakhage, focando-se, no capítulo “The Lyrical Film”, precisamente nestes dois cineastas. A relação entre Baillie e Brakhage estender-se-ia para além do livro de Sitney, numa de correspondência de várias décadas entre dois artistas e amigos.
Na caracterização que faz do modo lírico naquele capítulo, sobretudo a propósito de Brakhage, Sitney destaca o papel do cineasta como sujeito do filme – centro de uma visão e consciência às quais tudo aquilo que o espectador vê, e o modo como o vê, está subordinado: “como espectadores assistimos à intensa experiência de ver destes mediadores” (1974: 160). Tão importante como aquilo que sê vê é a ideia de que no cerne deste cinema está a própria experiência de ver, tal como vivida por uma consciência particular.
Assim, mais do que considerar como centro do filme uma imagem estruturada através de leis rígidas de perspectiva (164), em que o exterior é soberano, trata-se aqui de uma visão fortemente enformada pela percepção subjectiva, um cinema que, alinhado com a prática de Brakhage, não surge apenas como expressão da interioridade, mas como, nas palavras de Sitney, uma forma de investigação acerca do confronto entre a consciência subjectiva e a natureza exterior, e a forma como a primeira constrói a segunda no interior do modo lírico (180).
Na definição de Sitney, não há, nestes filmes, heróis, no sentido de protagonistas alheios ao sujeito lírico, o que terá uma tradução interessante na vertente do cinema de Baillie que Sitney caracteriza como um estudo do heróico (180), mais evidente em filmes como Mass for the Dakota Sioux (1964), Quixote (1967) ou Quick Billy (1968), que reflectem sobre ideias de identidade e território estado-unidenses de forma ampla, contemplando não apenas a cultura branca, mas a sua relação com as culturas autóctones, relação muitas vezes traduzida num movimento usurpador, materializado no desenvolvimento tecnológico – os comboios e os caminhos de ferro, os motores e as auto-estradas, o imparável e violento avanço oeste adentro.
O que me interessa aqui aflorar a partir da teorização de Sitney relaciona-se com a adopção do modo lírico por parte de Baillie, que me parece original relativamente ao que aprendeu de Brakhage num aspecto particular. Se o modo lírico se define essencialmente na relação entre interioridade do sujeito e o mundo exterior, o elemento que mais complica essa relação é talvez o tempo, pela tensão constante entre uma ideia de linearidade temporal e a forma como o sujeito experiencia essa dimensão.
Contrariamente aos três filmes heróicos acima referidos, em que a construção do tempo tem um carácter totalizador, uma série de curtas-metragens que Baillie realiza em 1966 – Tung, Castro Street, Still Life e All my Life – dependem de uma outra lógica. Nestes pequenos filmes parece criar-se uma outra temporalidade, concentrada num momento específico. Ao invés de se procurar, através do recurso constante à justaposição de imagens associadas a diferentes espaços e tempos, a construção de um corpo que transcenda a discrição e brevidade de uma série de momentos, o que se cumpre é a expansão de um único momento ou objecto (como no caso de Castro Street), simultaneamente transitório e fixado – numa entrevista de 1971 à Film Comment, Baillie caracteriza precisamente o momento, a par do corte, como os constituintes do núcleo do trabalho de um cineasta.
A dicotomia entre a infinitude de um momento e o seu carácter transitório encontra a sua expressão mais perfeita no filme de Baillie All my Life.
Esta concentração num momento particular relaciona-se com a caracterização que Sitney faz de um dos primeiros filmes de Baillie, Mr. Hayashi (1961), enquanto eco das aspirações de Deren e Brakhage a criarem obras inspiradas na tradição japonesa do haikai (180). Sitney comenta Mr. Hayashi em função daquilo que diz ser o carácter breve, menor e ocasional da curta-metragem, em que a câmara acompanha um jardineiro japonês durante uma pequena porção do seu dia, a relação entre este homem e a natureza tornada central. A caracterização feita por Sitney ecoa os seus comentários acerca do que diz ser um filme-haiku de Deren (24) – Meditation on Violence (1948) –, que a cineasta descreve da seguinte forma: “O filme começa no meio de um movimento e termina no meio de um movimento, de modo que o filme corresponde a uma porção de visão sobre a vida, com a vida a continuar antes e depois, até ao infinito” (Deren, “Notes, Essays, Letters”, in Film Culture, 39, 1965, p.18.)
Tung, filme de seis minutos que Baillie caracteriza como o retrato de uma amiga ao acordar, é um perfeito exemplo da importância dos elementos centrais dos dois parágrafos anteriores – momento e movimento – movimento esse que se relaciona directamente com o gesto do corte no contexto da montagem fílmica, porque se o corte é, simultaneamente, a interrupção do movimento natural, isto é, tal como existente na natureza, é também o que permite a construção do movimento, por assim dizer artificial, que constitui o cinema.
Ao breve movimento do corpo da rapariga, que ecoa as danças das tribos Sioux, referência ou assunto recorrente em outros filmes de Baillie, sobrepõem-se imagens que poderíamos tomar como vultos arrastados de árvores observadas através de uma superfície de vidro, como as sombras turvas que vemos no primeiro entreabrir de olhos do dia, ou vislumbres de vegetação que talvez rodeiem Tung no seu quarto. O movimento da rapariga é multiplicado numa imagem negativa, sequencialmente repetida, um instante tornado potencialmente infinito.
A propósito de Still Life, comenta Baillie: “ser é tido como transitório; tudo está no infinito processo do devir”. O conceito de impermanência, central para a tradição do haikai acima referida, aí aprendida através do contacto com o mundo natural, onde cada elemento existe em constante mutação, onde vida e morte, nascimento e degradação coexistem, é indirectamente recuperada aqui pelo cineasta: Still Life, a natureza-morta, simultaneamente imutabilidade e transformação, vida quieta, ainda vida.
A dicotomia entre a infinitude de um momento e o seu carácter transitório, enquanto elemento perecível de um todo maior, este abismo entre dois extremos contidos na mesma coisa, encontra a sua expressão mais perfeita no filme de Baillie All my Life. Esses quase três minutos, os segundos que definem a duração da música de Ella Fitzgerald que dá título à curta, são um movimento panorâmico da câmara ao longo de uma cerca rodeada de rosas, com um movimento ascensional rumo ao céu no final. Que toda uma vida possa estar contida num passeio de Primavera, que seja ao mesmo tempo passageiro e eterno, é um dos mais belos presentes que Baillie nos deixou.

Tung, Castro Street e All my Life fazem parte de um conjunto de cinco longas-metragens disponibilizadas numa versão digitalmente remasterizada no canal YouTube de Bruce Baillie, onde também é possível encontrar Mass for the Dakota Sioux (1964), Quixote (1967) e Quick Billy (1968). Mr. Hayashi (1961) também se encontra online. Forma triste de ver filmes feitos em suporte analógico, em 16mm, aqui fica a referência, antecipando melhores projecções. O site de Baillie, perdido no arquivo da internet, tem coisas boas também.