No que a autobiografias diz respeito, há muito que Hollywood e os livros de memórias nutrem uma especial e sumarenta relação. Neste género literário, foi levado a estampa algumas obras fascinantes, tais como as recordações de Louise Brooks (Lulu in Hollywood), a tormenta de Christina Crawford com a sua mãe adoptiva Joan (Mommie Dearest) ou o auto-retrato de Robert Evans enquanto ator e produtor cinematográfico (The Kid Stays in the Picture).
Essa dinâmica, aliás, conheceu redobrada tracção na última década, período em que foram editadas autobiografias de Anjelica Huston, Stephen Fry, Rose McGowan e, muito recentemente, John Boorman.

Nesse âmbito, o presente ano de 2020 (talvez como panaceia para a “atmosfera virulenta” que se vive) permite-nos abrir Apropos of Nothing, a autobiografia de Woody Allen. Mais do que um livro de memórias, este revela-se um corolário de desabafos, confissões, factos e opiniões, por uma das personalidades do cinema norte-americano menos consensuais dos últimos 30 anos, e debitado com a mesma vivacidade sarcástica e ansiosa que caracterizam muitos dos seus personagens no grande ecrã.
Apropos of Nothing é tudo menos “a propósito de nada”, visto que Woody Allen, literalmente, não deixa pedra sobre pedra em relação à sua vida. Allan Königsberg, nado e criado em Brooklyn, cresceu com fascínio pueril por livros de truques de magia e banda desenhada, um interesse precoce por filmes vintage – em adolescente, era capaz de percorrer Nova Iorque, do Bronx até Flatbush, para apanhar as melhores sessões –, o sonho de profissionalização na Major League Baseball e sem qualquer ambição cultural ou artística.
Curiosamente, é incrível a quantidade de vezes que me descreveram como ‘intelectual’. Esse conceito é tão falso como o monstro de Loch Ness, pois não possuo um único neurónio intelectual no meu cérebro. Iliterato e desinteressado por tudo o que fosse matéria escolar, cresci como o protótipo do lerdo que se senta em frente da televisão, cerveja na mão, um jogo de futebol aos altos berros e um cartaz da Playboy colado na parede.
Segundo ele, foi o seu sentido de humor nato que o levou a enveredar pela escrita – uma qualidade que se revelava, já então, em estrita relação com o cinema.
Eu era o espertalhão que, na sala de cinema, improvisava piadas em voz alta durante um momento intenso ou romântico do filme, desconcertando quem as conseguisse ouvir. Recebi tantas ordens para me calar como gargalhadas.

A sua primeira experiência como realizador, What’s Up, Tiger Lily? (Que Há de Novo Gatinha, 1966), e posterior carreira cinematográfica, surgiu graças à boa vontade daqueles com quem colaborou naquela fase da sua vida profissional, e não só.
E foi assim que comecei a fazer filmes. Trabalho árduo, algum talento, muita sorte e a importante contribuição de muitas pessoas.
Das várias memórias expostas, as referências a interacções que Woody Allen manteve com alguns nomes fundamentais do cinema e da literatura são particularmente curiosas.
Estávamos no teatro para ver a audição de Diane Keaton. Entra, então, uma rapariga magra. Deixem-me pôr a coisa nestes termos: se o Huckleberry Finn tivesse sido uma mulher muito bonita, era ela que estava agora no palco. (…) Ela foi excelente. Grande em todos os sentidos. Costuma-se falar da personalidade que consegue iluminar uma sala, a dela iluminava uma avenida.
Aprendi tudo sobre técnica de realização graças a dois mestres (…): Ralph Rosenblum, um talentoso montador, e tudo o resto com Gordon Willis. O Gordon sabia tudo. Cheguei a vê-lo ao telefone, em linha com a sede da Kodak em Rochester, e a dizer-lhes o montante exacto de nitrato de prata que deveria ser aplicado na película.
Jantei com Ingmar Bergman e tivemos uma data de conversas telefónicas em que falámos pelos cotovelos. Ele tinha as mesmas inseguranças que eu, como a de chegar ao set e, subitamente, entrar em pânico por não saber onde deveria colocar a câmara.
Naquele filme [Hollywood Ending (2002)], tive de despedir Haskell Wexler. Sempre o considerei genial atrás da câmara, mas achei-o infantil, irritante que nem uma criança, e percebi desde muito cedo que se íamos ter discussões filosóficas antes e depois de todas as cenas, iríamos levar mais meses do que o previsto para terminar o filme.
Certa noite, quando estava de saída do restaurante, sou interpelado por quem? Sim – Tennessee Williams. Ele estava lá a jantar com amigos. Já tinha bebido alguns copos e interpelou-me para me dizer que sou um artista. Olhei em redor para ver se, realmente, estava algum artista atrás de mim, mas não, ele estava mesmo a falar comigo.
E, inevitavelmente, há a relação com Mia Farrow. Os pormenores dessa ligação, tanto amorosa como profissional, ocupam uma parte substancial de Apropos of Nothing. Nesse segmento, é detalhada a diferença de ambiente e humores do primeiro – A Midsummer Night’s Sex Comedy (Uma Comédia Sexual numa Noite de Verão, 1982) – ao último filme – Husband and Wifes (Maridos e Mulheres, 1992) – que fizeram enquanto casal, a presença dominadora de Farrow junto dos seus filhos biológicos e adoptivos (entre eles, Soon-Yi Previn, a sua actual companheira) e as acusações de assédio sexual levantadas sobre Woody Allen, em 1992 e reavivadas com o movimento #MeToo.

Neste particular, Allen questiona o absurdo das alegações, reitera a sua inocência (baseada, sobretudo, nas conclusões a seu favor de duas investigações levadas a cabo em 1993, as quais estão disponíveis para consulta online) e, sendo este um livro de memórias, disseca os sentimentos, e o comportamento errático demonstrado por Mia Farrow, durante aquela relação de 12 anos. Tudo sem sombra de ressentimentos nem declarados revanchismos.
Em retrospectiva, deveria ter estado mais atento a qualquer situação suspeita? Quer dizer, quando se está a namorar com esta mulher de sonho, e mesmo notando algo de suspeito, uma pessoa olha para o lado. E lembrem-se, não sou o tipo mais perspicaz que já conheceram, sobretudo no que toca a assuntos que envolvam o Cupido.
A ideia dela de crescimento era fugir e casar. Mas a rapidez com que ela fez aquela proposta, e a irritabilidade que demonstrou quando lhe disse não estar receptivo, deveria ter-me dado pistas suficientes de que estava a lidar com uma pessoa muito mais complicada do que a imagem da linda e frágil super-mãe.
Agora que olho para trás, e para a minha experiência cinematográfica com a Mia e, exceptuando quando tudo acabou durante a rodagem de Husband and Wives, tenho de dizer que foi muito interessante e com muitos altos e baixos criativos.

Em última análise, Apropos of Nothing é uma obra confessional, a espaços melancólica e quase resignada do homem e do autor, feliz com a sua vida e carreira artística. Após uma filmografia de quarenta e nove títulos, ao longo de cinquenta anos de actividade, é apenas lógico que Woody Allen tenha uma ou outra conclusão.
Como resumiria a minha vida? Muita sorte. Escapei de muitos erros estúpidos por pura sorte. Do que me arrependo mais? Deram-me milhões para fazer filmes, tive controlo artístico total e nunca fiz um grande filme.
Quanto ao presente texto, e depois de ler Apropos of Nothing, resta a certeza que Woody Allen nunca terá dele conhecimento. Não apenas pela barreira linguística (é patente que não estamos perante um poliglota) mas, acima de tudo, pela sua atitude em torno do que outros prosam sobre a sua pessoa:
Desisti de ler sobre mim há décadas e não tenho interesse em elogios ou análises do meu trabalho. Isto soa a arrogante, mas não é. Não me considero superior nem indiferente, tampouco tenho uma opinião elevada sobre o meu produto. Aprendi com Danny Simon a confiar apenas no meu julgamento e não gosto de desperdiçar tempo precioso com algo que, facilmente, pode ser uma distracção.