Olhamos para o catálogo da plataforma portuguesa de streaming Filmin – parceira do À pala de Walsh – e fazemos as nossas escolhas pensando no momento actual e respondendo a um desafio auto-imposto: fugirmos aos grandes títulos e surpreendermos.
Se penso numa casa como um espaço de abrigo, o mundo não deixa de ser um muito mais emocionante abrigo global, porque cheio de descobertas e incertezas. O nosso confinamento temporário tirou-nos essa possibilidade de ir por aí “ao deus-dará”, rumar de forma incerta, descobrir criativamente o espaço. É o que faz de forma maravilhosa esta pequena ficção de Ico Costa, filmada em Inhambane. Uma das personagens procura uma mulher, Nafta. Essa busca é apenas a centelha ficcional de uma procura muito mais vibrante: a câmara não pára de trabalhar para insuflar-nos os sentidos de novas coisas. Cores fortes, o interior atravancado de autocarros (que não conhecem distanciamento social), a partilha de desejos e palitos (que não conhecem distanciamento social) ou o bulício de mercados e bailes (que juntam as pessoas, como uma banalidade que nos sabe hoje a miragem). Nyo Vweta Nafta mostra-nos pequenas encenações da vida na cidade moçambicana, mas sempre ancorada neste desejo documental de furar a higiene e o confinamento da construção artificiosa. Quem o viu não vai mais esquecer aquela descida progressiva de uma esplendorosa baobá. Não estamos apenas com os jovens que apanham frutos para vender, uns sonhando com café (o vício dos ricos; a “ritalina” da produção) outros com cerveja no tasco. Estamos com Ico Costa na descida, símbolo de um filmar e ouvir o verdadeiro, o que cresce das terras, cá em baixo: as gentes.
Carlos Natálio
Camille e Sullivan são dois adolescentes que se amam, mas esse amor será interrompido porque Sullivan, em busca de uma verdade interior, planeia iniciar uma longa viagem pela América do Sul. Um mero amor de adolescentes, inconsequente, que aqui mais não seria do que uma etapa de uma banal educação sentimental. Ou um amor de Verão num filme de Rohmer. Mas a história do filme irá trocar-nos as voltas. Porque, em lugar da aparente inconsequência do amor de juventude a que o título alude, aquilo que vamos descobrindo é a dor profunda do amor de uma vida. E assim se vai desenhando uma incursão pelo peso da memória em tudo o que rodeia Camille. Como se os edifícios, a paisagem ou os objectos ganhassem uma patine própria em virtude daquilo que foi uma prévia experiência amorosa, uma patine apenas visível para a pessoa que amou, não podendo ser descortinada por um seu novo amante. Há em Camille uma honestidade desconcertante que o próprio filme parece abraçar, não procurando redenções milagrosas, mas aceitando os pequenos milagres que se atravessam no caminho. Certamente, um dos momentos mais luminosos na filmografia de Mia Hansen-Løve.
Daniela Rôla
Para períodos conturbados, um filme sobre um tempo de incertezas, ou melhor, sobre uma figura à deriva, que personifica as inquietudes e indefinições do seu tempo. O filme decorre em Budapeste há mais de cem anos, em 1913, no período anterior ao despoletar da Primeira Guerra Mundial, entre uma aparente prosperidade e uma frágil paz social que esconde os extremos perto da explosão, reféns de um qualquer rastilho. Irisz Leiter chega à cidade à procura de emprego numa famosa loja de chapéus. De nome Leiter, a loja tinha afinal pertencido aos seus pais quando Irisz era criança, e esta regressa agora a tentar descobrir o seu passado, e acima de tudo à procura do seu irmão, de quem está separada desde então. Recorrendo a um estilo visual singelo que Nemes já tinha explorado com o seu filme anterior, Saul fia (O Filho de Saul, 2015), esta é uma alucinante experiência subjectiva na qual a câmara acompanha Irisz e o seu olhar lancinante de forma intransigente, colocando-se ao seu lado enquanto ofusca tudo em redor. Através de um carrossel sensorial e de pequenas coreografias estonteantes, é como se o chão estivesse constantemente a fugir-lhe dos pés, numa sensação partilhada com o espectador, num retrato deslumbrante sobre um momento assombroso.
João Araújo
Apesar do actor Hippolyte Girardot aparecer como co-realizador, Yuki & Nina (2009) é essencialmente um filme de Nobuhiro Suwa. Somos introduzidos numa narrativa sobre afectos, desenrolada entre as paredes de uma casa familiar: um casal e uma criança. Ele é francês (interpretado pelo próprio Girardot), ela é natural do Japão. A filha, Yuki, divide-se entre os dois, sobretudo quando a separação se afigura inevitável. A forma como Suwa constrói a tensão doméstica é magistral – já o era no brilhante M/Other (1999) -, porquanto a sua câmara é apropriada pelo espaço onde filma. Suwa explora as divisões como princípio da relação entre as personagens, mas acima de tudo desperta nas pequenas rotinas todo o potencial dramático necessário para imergir o espectador na história, ou melhor, para o “familiarizar” – verbo certeiro – com a casa, com as personagens, com os seus conflitos interiores, os seus silêncios e implicá-lo nas “explosões/implosões” à mesa. Tudo, por norma, é captado num único plano, que leva ao limite a co-habitação com os actores no tempo e no espaço. Depois, os silêncios, as pequenas conversas e gestos – de ruptura, mas também próprios de um sentimento puro de amizade, de Yuki pela extrovertida Nina – dominam esta história plena de gravitação emocional e imbuída de um lirismo tão gradual e tão fino que acaba por passar quase imperceptível. Delicadeza, arte e magia – eis os condimentos desta viagem à infância, lugar primeiro do cinema.
Luís Mendonça
É sobre o dinheiro que Lola de Brillante Mendoza gira – em para muita gente precária, é também sobre isso que giram os dias que agora correm. Um conto moderno sobre a perversidade da pobreza. Note-se: o filme começa com uma das avós a comprar a vela que colocará no local do assassinato do neto, avó essa que não tem dinheiro para o enterro, são os vizinhos que ajudam a pagar o funeral, é uma burocrata camarária que com um telefonema cobre as dívidas da família, a outra avó rouba os clientes para poupar algum, viaja quilómetros para pedir dinheiro a familiares e depois de estes apenas de lhe oferecerem verduras e ovos, esta vende tudo o que pode às pessoas que encontra na estação de comboios, esta mesma senhora penhora a televisão (a qual exibe constantemente programas do estilo do Pre€o €erto em €uros), pede dinheiro emprestado aos agiotas de bairro para pagar a libertação do neto. Há mesmo uma cena que é magistral: uma das senhoras deixa cair umas notas ao chão, num dia de chuva, apanha-as. Cena seguinte: a velhinha em casa, pendura as notas molhadas na corda da roupa. Porque o dinheiro não é luxo, é comida e roupa, é sobrevivência. Por isto, o aparecimento de peixes no lago, já para o final do filme, é um milagre; porque milagres são aqueles acontecimentos que salvam vidas. Lola é um filme brilhante por tudo isto: por retratar uma população paupérrima sem uma pinga de voyerismo, por o fazer sem cedências nem condescendências e com um realismo ácido. E acima de tudo isso, Brillante Mendoza constrói um melodrama cheio de segundas leituras e simbolismos fortíssimos, numa feroz crítica ao sistema judicial do seu país, que nos faz deslizar por uma espiral de desencantamento (sem nunca cair no decadente). Porque há sempre a possibilidade de um milagre.
Ricardo Vieira Lisboa