I know you don’t get chance to take a break this often
I know your life is speeding and it isn’t stopping
You take my shirt and just go ahead and wipe up all the
Sweat, sweat, sweat
Lose yourself to dance(…)
Everybody dancing on the floor
Can’t do any more anymore
Everybody on the floor
Yeah, come on (lose yourself to dance).
Daft Punk – Lose Yourself to Dance
Tony Manero, nome de personagem e título do filme de 2008, realizado por Pablo Larraín, na primeira parte de uma trilogia que o cineasta dedicou ao seu Chile dos anos 1970, sob a ditadura armada de Pinochet, que prosseguiria, então, com Post Mortem (2010) e No (Não, 2012), com o actor Alfredo Castro como corpo condutor. Eram os tempos, estes da primeira década deste século, onde sopravam ventos renovados da América do Sul, outros corpos e personagens escapistas, de piscinas lamacentas e personagens sem cabeça, no topo norte da Argentina em La Ciénaga (O Pântano, 2001) de Lucrecia Martel ou o fervilhar da cidade do México e o sexo a quebrar a estratificação das classes em Batalla en el Cielo (Batalha no Céu, 2005) de Carlos Reygadas.
Sabia que o general Pinochet tem olhos azuis? É a última coisa que uma idosa diz antes de ser agredida e assassinada com brutalidade por Raúl Peralta, o protagonista, que antes a ajudara após um assalto na rua. Ele leva-lhe a televisão, que depois trocará por uns ladrilhos de vidro, que servirão de palco improvisado, a iluminar a sua réplica da performance de Tony Manero, de Saturday Night Fever (Febre de Sábado à Noite, 1977, John Badham), interpretado por John Travolta, a que nos dedicaremos no artigo seguinte. A câmara móvel de Larraín, com enquadramentos deliberadamente incertos e negligentes quanto ás diagonais tradicionais, persegue o vai e vem sôfrego de Raúl, de Santiago para os arrabaldes, numa predilecção por lugares rudes e sujos, um clandestino sempre disponível para a rua, para o desenrasque, como uma ratazana que colhe os despojos. Se as acções de Raúl expressam crueldade e alheamento, as suas emoções ficam entregues aos visionamentos reiterados de Saturday Night Fever, onde devolve, numa sala deserta, os diálogos de John Travolta, um envolvimento total, material, que o leva a roubar a cópia do filme e a examinar os frames com o seu corpo debruçado sobre a película.
Raúl não alinha com a oposição clandestina, na sua resistência, na sua inquietude, ele assume o seu único propósito: abandonar o corpo à febre da dança.
Raúl partilha a casa com três mulheres, de três gerações, da matriarca à neta, cujos corpos lhe são oferecidos, e os favores sexuais exigidos, em troca de dormida e de um trabalho de coreógrafo num boteco apenso à habitação. Como cadelas com cio, a expressão é da matriarca, as mulheres procuram-no e falam em fugir dali, no futuro. Raúl responde: que futuro? E mais uma vez ele alinha-se com Travolta, que a princípio recusa uma fuga do bairro operário de Brooklyn, da família católica, do emprego na loja de materiais, o seu único futuro é a noite de sábado, no night club 2001 Odyssey (curioso nome, futurista). A habitação é, então, uma cápsula desse presente, com espaços escuros e desarrumados, uma compartimentação caótica, onde as actividades se associam e a intimidade é recusada, como Larraín explana na cena em que o banho de Raúl, num espaço que comunica com a cozinha, é observado por todos. Filme entregue ao corpo, ao corpo de um homem de 50 anos, urgência dos corpos, no apelo à gula inicial do sexo com uma rapariga mais jovem e principalmente na disponibilidade e na pujança exigida pela dança, mas também na falência dos corpos, de Raúl, que constrangido diz a idade quando responde ao inquérito do concurso de televisão, ou quando partilha o leito com a mulher do meio, que lhe diz – porque o Tony do filme nunca envelhece, enquanto que você, pode ficar velhinho. Os corpos quebram, então, os das mulheres que invejam o cio das mais jovens, de Raúl que, apartado do mundo e dos outros (algo que partilha com os personagens dos filmes com que abrimos este texto), não consegue concretizar todos os movimentos do disco-sound, do corpo pujante de Travolta.
Há tanques que patrulham as ruas para fazer obedecer ao recolher obrigatório, a podridão do regime parece passar ao largo, mas surge com ecos tão pontuais quanto reveladores, envoltos na tal privação de futuro. Nos ensaios, Raúl recusa o que é tradicional, na música e na dança, para demonstrar à sua trupe como se faz, um criador sugado pela sua obsessão (que reproduz como um mantra os diálogos de Saturday Night Fever), até que o palco cede sob os seus movimentos, as tábuas estão podres, diz Raúl, como se fosse possível quebrar a podridão de uma sociedade, de um regime terrífico. Raúl não alinha com a oposição clandestina, na sua resistência, na sua inquietude, ele assume o seu único propósito: abandonar o corpo à febre da dança.
Na sequência final, no concurso de imitadores da televisão, quando D. Henrique, o popular apresentador, pergunta a Raúl o que ele faz, qual é a sua profissão, ele responde: isto, o espectáculo! Ele já não imita John Travolta: ele é Tony Manero.