You were like him, you were like me
Everybody wanted to come and look at the monster
I get that you were worried but you gave me an heart attack
My heart is stone
Only Lord has known I’ve suffered through tot much
When I drink, I drink too much
When I love, I love too much
“Never Again”, de jonatan leandoer96
O universo cinematográfico de Caroline Poggi e Jonathan Vinel não é propriamente uma novidade por terras lusas: são habitués, sobretudo a norte, cuja a obra enquanto curta-metragem tem pontuado nos últimos anos com regularidade no festival Curtas Vila de Conde. Mas foi na edição de 2019 do festival IndieLisboa, que a dupla de realizadores viu o seu trabalho agraciado com uma retrospectiva integral (filmes feitos em conjunto e individualmente), incluindo a estreia da primeira longa-metragem, Jessica Forever (2018). Volvido um ano, é com surpresa (boa, diga-se) que vemos aparecer no catálogo da plataforma Filmin este objecto raro. Passo a esclarecer: há um sentido de liberdade intrínseco no trabalho de Poggi e Vinel, um posicionamento que se verifica vital para que possamos compreender determinadas escolhas e caminhos, que são desde logo um repensar o cinema. O que à primeira vista pode parecer subversivo, ou denotar uma certa tendência millennial (estética e tematicamente falando), sobretudo no que pende para um uso de injeções de violência ou de grafismo alusivo ao mundo dos vídeo-jogos, não passa de uma armadilha, pois o que está bem claro no trabalho desta dupla são ideias bem depuradas.

Quem é Jessica? Jessica pode ser uma rainha, uma encarnação de Joana d’Arc, uma deusa, uma mãe. Interessa saber quem é? Pouco. Mas mais à frente no filme vamos ouvir dizer: “Jessica é um milagre”. E talvez seja. Talvez seja algo extraterrestre, celestial, um ser dotado de um sexto sentido. Num mundo sem tempo e de lugar indefinido, onde órfãos vagueiam sem conhecer salvação, Jessica é essa casa que parece resgatar aqueles que a sociedade decidiu apelidar de monstros e que, segundo a lei, devem ser eliminados. Jéssica é a resistência. É uma figura serena, de discurso parco, como de alguém que parece ter em si a experiência da idade, ainda que seja pouco mais velha que as suas “crianças” adoptadas. Aliás, as crianças de pequenas não têm nada. São jovens como ela, mas isso mais uma vez, pouco importa, como também não importa o passado de cada um. São acima de tudo uma família, a que escolheram, onde aprendem a ser melhores e ninguém fica para trás. São um grupo de guerrilha, sabem defender-se para conseguirem sobreviver mais um dia num mundo que não os quer ver, e é Jessica quem os comanda. Num certo sentido lembram discípulos, e é na comunhão entre eles que o filme começa a tecer os seus contornos para cedo percebermos que Jessica é, acima de tudo, uma ideia.
É difícil a posição em que nos deixam os realizadores, entre o amor e a rejeição. Mas uma coisa é certa: este filme vibra.
A nossa atenção é rapidamente desperta: um rapaz que rompe pelo quadro, a correr desenfreadamente, acaba a lançar-se contra o vidro de uma janela que cobre a face de uma casa de subúrbio. Jessica Forever apresenta-se assim, sem meias medidas, como um buraco negro, e nós a estrela, somos engolidos. Parece um suicídio. No entanto, não é. É alguém a tentar esconder-se, a proteger-se. Jessica sabe e parte ao seu encontro. Reúne as tropas. O órfão – que mais tarde vimos a saber chamar-se Kevin – é recolhido e levado para o esconderijo do gang. Regressamos à mesma casa, em que momentos antes testemunhámos um resgate, e que agora é invadida por um enxame de drones. São a lei, a modernidade que sobrevoa a terra sem identidade e que assume o controlo total. São o inimigo, uma classe sem rosto, o capitalismo.
Jessica Forever aposta em ser um retrato íntimo da juventude mergulhado nas águas da ficção científica, ainda que sem ser ficção científica propriamente dita. O isolamento social, a violência, a problematização da juventude, são tudo elementos que constituem a matéria de um enredo minado por um subtexto de luta e resistência, com a devida fúria de viver na oposição. É aí que reside o cerne do filme de Poggi e Vinel, ao desenvolverem o crescimento destes jovens, as suas perdas, a sua intimidade, a sexualidade, a tentativa de serem compreendidos e de compreenderem o mundo à sua volta.

Importa aqui talvez lembrar um manifesto, um tanto quanto poético, intitulado Flamme (Chama), publicado em 2018 pela dupla de realizadores a par de outros dois nomes (mais que emergentes), Bertrand Mandico e Yann Gonzalez, nos Cahiers du cinéma, onde proclamam por um lugar no cinema feito para sonhadores, monstros que choram e crianças que ardem. Um cinema prazeroso que se consome a si mesmo, que se faz desejar, que se revela. É desse mesmo jeito, de uma de ideia de revelação, que Julien, um dos órfãos, dita uma carta de amor a Kevin (o mesmo rapaz que vemos no início do filme a ser resgatado), um amor que ficou por vir. Kevin morreu. Julien pede desculpa por não terem tido tempo para o enterrar, para o chorar. Julien pensa nele o tempo todo, e sente a sua presença em todo o lado. Não sabe como falar sobre isso com os outros. Pede-lhe para que não fique chateado, pois não aprenderam dizer adeus. Tudo isto inflamado ao som de uma balada de doom metal. É pungente, diz um dos orfãos. Na impossibilidade de comunicarem, por não saberem, por nunca lhes ter sido ensinado, porque acima de tudo lhes foi negado qualquer laço ao terem sido rejeitados ou abandonados, exprimem-se com os corpos marcados pela sociedade, em tensão, embalados pela distorção da música, lutam contra o nada. Estão sozinhos, mas juntos, no amor e na dor.
As escolhas estilísticas de Poggi e Vinel, de uma performance antinaturalista aliada a um sentimento de melancolia, ao ritmo lento das cenas, da música ao apelo estético de um mundo virtual, até à narração que preenche as imagens finais para nos lembrar de que tudo isto não passa de uma lenda, constituem um universo em conformidade. Criaram assim um objeto raro e cinematograficamente difícil de categorizar, que funciona como uma parábola sobre aqueles que rejeitamos, os monstros que todos ajudámos a criar. Até o próprio uso dos efeitos especiais parece ir mais ao encontro de uma dimensão espiritual, do que o de proporcionar o mero servir de um momento de espetacularidade em bandeja, sobretudo se recebermos com atenção momentos como aquele em que Kevin morre nos braços de Jessica ou Lucas, um dos órfãos, recebe a visita da irmã, que sabemos estar morta. Veja-se também a composição e encenação plástica em algumas das cenas, com ecos de obras que todos conhecemos, da figuração de uma Pietà ao sepultamento de Cristo. É difícil a posição em que nos deixam, entre o amor e a rejeição, mas uma coisa é certa: este filme vibra. Jessica Forever é assim uma faca de dois gumes, um amor que pode ou não ser correspondido. Mais do que ver caras, é preciso ver corações.
Jessica on t’aime. Jessica, para sempre.