Foi a propósito de Jean Seberg e Otto Preminger em Bonjour Tristesse (Bom Dia, Tristeza, 1958) que François Truffaut escreveu um dos aforismos mais a ele associados: “O cinema é uma arte da mulher, isto é, da actriz. E o trabalho do realizador consiste em fazer que mulheres bonitas façam coisas bonitas.” Poderá parecer às sensibilidades politicamente correctas de hoje (sobretudo as de hoje) uma frase datada e sexista. Mas, vendo a história do cinema, como não lhe dar razão? Basta olhar para Anita Ekberg banhando-se na Fonte de Trevi em La Dolce Vita (A Doce Vida, 1960), Jeanne Moreau passeando pela noite parisiense adentro de Ascenseur pour l’échafaud (Fim-de-Semana no Ascensor, 1958), Rita Hayworth removendo docemente as luvas de cetim em Gilda (1946), Diane Lane cantando e dançando energicamente com o vestido vermelho de Streets of Fire (Estrada de Fogo, 1984)… O leitor complete a lista como lhe aprouver e cremos que o ponto que pretendemos transmitir se manterá fixo: o cineasta minimamente talentoso que ousa pedir à sua bonita actriz pequenas e inofensivas acções no plateau é capaz de criar momentos de cinema arrebatadores no ecrã. Boutade: um filme pode ser tão bonito quanto a sua actriz e as coisas que lhe mostra a fazer. Por estes parâmetros, Janet Leigh, sob a batuta de maestro Josef von Sternberg, faz de Jet Pilot (As Estradas do Inferno, 1957) um filme belo.

Lendo a autobiografia de Sternberg, é evidente que o cineasta renega aquela que foi, simultaneamente, a sua única comédia e experiência cinematográfica a cores. Sem direito a controlo criativo total, e tendo outros realizadores dado o seu inesperado “contributo” (entre os quais o excêntrico magnata Howard Hughes, também produtor deste filme) nos sete anos que foram da sua partida da rodagem ao momento da estreia, Sternberg fala dele como “um falhanço lamentável”, onde o mero exercício de revisitação se lhe revela penoso. E não esteve só. John Wayne considerou-o um dos piores filmes da sua carreira, a crítica detestou-o à época, e mesmo atualmente críticos de referência como Jonathan Rosenbaum não hesitam em defini-lo como “uma monstruosidade de fazer cair o queixo”. E detestaram-no pelos defeitos que lhe são evidentes nesta história de amor entre um piloto americano (Wayne) e uma agente dupla soviética (Leigh): o seu lado camp, o seu patriotismo ingénuo num argumento meio-estulto, os seus propósitos propagandistas de uma cultura capitalista e consumista sem grande inspiração (soltam-se risos, mas não por boas razões, na forma como Leigh e Wayne se deliciam por duas vezes em torno de um bife suculento). Mas…
Mas há Truffaut. É a ele que retorno, que, aquando a visualização de Jet Pilot, caracterizou-o como “um bom filme, apesar de tudo”. Porquê? Ele responde. “Porque as cenas entre Janet Leigh e John Wayne são dirigidas com uma arte, uma invenção, uma inteligência de todas as imagens; porque o erotismo é do mais insidioso, do mais subtil, do mais eficaz e mais refinado que existe. Não esquecerei a cena em que John Wayne tem de revistar Janet Leigh enfiada numa combinação forrada com bolsos oblíquos no peito e no baixo-ventre; não esquecerei o momento em que, a baloiçar o pé, a aviadora atira, pela abertura da porta, as suas cuequinhas para serem inspeccionadas; não esquecerei Janet em camisa de dormir no avião, na Rússia, em todos os lugares, Janet na sua melhor forma.” Tão simples quanto isto: uma mulher bonita a fazer coisas bonitas.
Nem Welles, nem Mann, nem sequer Hitchcock, souberam usar a presença sensual de Leigh como Sternberg o faz em Jet Pilot.
Janet Leigh é bela. O que Sternberg faz é permitir que a beleza da actriz resplandeça em toda a sua glória. Quem achar isto pouco ambicioso não faz a mínima ideia da facilidade com que uma luz mal colocada, um ângulo mal escolhido, um fundo mal seleccionado, uma pose mal feita, pode levar a que a câmara deslustre com facilidade a personificação de pulcritude que contempla. Sternberg, qual Vermeer no ateliê defronte da rapariga com um brinco de pérola, estuda a iluminação, o traje, os adereços, a cor, a direcção do olhar, a abertura dos lábios, a textura da pele, a posição de cada membro, para que cada milímetro do enquadramento que crie tenha incrustado o fulgor dos atributos estéticos do seu modelo. Mas Sternberg é um Vermeer cujo métier o obriga a fazer quadros em movimento. Por isso, há que juntar a todos os seus utensílios artísticos um factor crucial: o tempo. Isto é, o tempo que uma acção dura para ser considerada bonita. Nem demasiado curto para que ela passe despercebida, nem demasiado longa para que recaia na monotonia.
O tempo que regista a respiração suave de Janet Leigh enquanto repousa no sono dos anjos. O tempo que lhe leva a destapar o joelho no seu fato exótico de odalisca enquanto espera a chegada de Wayne a casa. O tempo que dura a remoção de cada peça de roupa acompanhada pelo barulho tonitruante dos jactos no exterior. O tempo em que um plano fechado se foca no seu sorriso desafiador e confiante. Como é possível renegar um filme onde a sua protagonista arrojadamente se aquece junto a uma caldeira com nada mais que uma toalha em torno do tronco, desafiando os homens que a observam, divididos entre o espanto, o desejo e o profissionalismo que tentam a custo manter? Poucas vezes se viu uma câmara inebriada desta maneira pelo rosto de uma actriz, os seus olhos azuis-esverdeados, a sua cabeleira loira, a sua pele lisa, os seus lábios do vermelho mais lúbrico que já se viu em celulóide. O rosto, mas também o corpo, cujo pudor no acto da escrita me autoriza apenas a defini-lo como o de uma Helena de Tróia americana. E assim, com o talento por detrás da câmara sucumbido ao diante dela, Jet Pilot é percorrido pelo mais forte sopro da vida. O coração de um filme pode, por vezes, ser visto como o de um homem: é em frente à mulher por que se apaixona que se sente mais vivo.
Dito isto, nem Welles, nem Mann, nem sequer Hitchcock, souberam usar a presença sensual de Leigh como Sternberg o faz aqui. E fá-lo porque Jet Pilot é um filme onde o gelo da Guerra Fria é derretido pelo calor de Eros. Eros que paira tanto na terra como no céu. Ver as extraordinárias acrobacias aéreas do filme, com os aviões em voos altaneiros a olharem-se, a perseguirem-se, a virarem-se, a irem ao encontro um do outro, a moverem-se em sincronia, a serem engolidos por lençóis de nuvens (essa obsessão fixa de Hughes) enquanto os pilotos macho e fêmea trocam palavras de amor pelos altifalantes, fazem destas sequências autênticas cenas de cama. O que não vemos explícito ao nível do chão, presenciamos num plano simbólico no ar. Isto tudo, mas é na terra que queremos estar, vendo mais e mais Janet Leigh.
Pois neste cruzamento libidinoso entre Ninotchka (1939) e Hell’s Angels (Os Anjos do Inferno, 1930) é-nos garantido que enquanto puserem mulheres bonitas a fazerem coisas bonitas o cinema não morrerá, mesmo que queira. É deixar-se maravilhar pelos gestos, pelos movimentos, pelos sorrisos, pelo glamour que Janet solta. Janet de vestido, Janet de farda, Janet de camisola, Janet de fato-de-banho. Janet a dançar, Janet a fumar, Janet a ver-se ao espelho, Janet a dormir. Perguntaram uma vez a Andrew Sarris para dar a sua definição de cinema em três palavras. Respondeu: “Girls! Girls! Girls!” Lancem-nos o mesmo desafio para falar de Jet Pilot e responderemos: “Janet! Janet! Janet!”