Estamos juntos, mas afastados. Estamos unidos, mas separados. O que nos pode ligar? Um corte ou outro que junta aquele plano a outro plano. O cinema é como nós: feito de imagens que se colam, e tornam narrativas inteiras coerentes e entretidas, por força do corte, das separações. Os cineastas portugueses (as suas produtoras e distribuidoras) aproveitaram o momento quando puseram online várias das suas produções? Quer dizer, nunca se viu aproveitamento tão generoso. Dar cinema, pela primeira vez porventura, tornou-se equiparável a um acto salvador – como dar sangue ou dar roupa. Eis uma forma de resgate – contra o vírus corrosivo do tédio e a poluição do terrordos jornais – que muito nos diz.
A lista de filmes que nos foram oferecidos, como quem lança uma bóia para nos salvar de um certo afogamento existencial, é longa e cresce de dia para dia. Por isso os nossos editores walshianos reuniram, numa primeira fase, dez filmes para ver online de forma gratuita, mas agora, outros filmes se juntaram e outra dezena é posta à disposição (para o respectivo visionamento, basta clicarem no título). A escolha, mais uma vez, obedece a afinidades antigas e não a hierarquias de qualidade. A cada filme citado – cada um aponta para os demais que juntámos neste post da nossa página de Facebook – quisemos oferecer uma pequena crítica. É uma forma de dizermos, muito humilde e simbolicamente, que à celebração dos filmes queremos associar uma celebração da crítica. Estamos juntos.

Altas Cidades de Ossadas (2017) de João Salaviza [disponível até 14 de Abril]
Desenvolvido no âmbito do PARTIS da Fundação Calouste Gulbenkian – programa de apoio a projetos que privilegiam a arte como meio de intervenção social junto de grupos em situação de vulnerabilidade ou exclusão –, em particular da URB, que se iniciou através da OCT Terratreme Oficina: conjunto de workshops de formação de actores, casting e recolha de histórias de bairro que ao longo de cerca de dois anos e meio envolveu dezenas de pessoas de todas as idades, residentes em zonas urbanas periféricas. Estas condições de produção podem ser o primeiro justificativo da pedrada no charco que é este filme na obra do realizador – ainda que seja possível identificar neste tomo experiências anteriores, por exemplo, recordo os planos de abertura de Rafa (2012) nas sequências da barraca onde Karlon se esconde. Mas talvez a leitura mais pertinente para Altas Cidades seja vê-lo como um filme-rap. Explico-me: Karlon, o protagonista do filme, é um conhecido rapper, pioneiro na utilização do crioulo neste tipo de música em Portugal. No filme as suas rimas ouvem-se sussurradas num medley que passa por vários dos seus álbuns. É própria do rap a ideia de apropriação como ferramenta base na construção rítmica das melodias e na escrita das letras. Salaviza parece literalizar o universo do seu personagem transformando o próprio filme num objecto que cristaliza a própria ideia de apropriação enquanto ferramenta criativa. Altas Cidades de Ossadas é portanto uma espécie de improvisação sobre os motivos sinfónicos de No Quarto da Vanda (2000) ou O Nosso Homem (2010), como a própria música de Karlon o é doutras modas que desconheço.
Ricardo Vieira Lisboa

The Dockworkers Dream (O Sonho do Estivador, 2015) de Bill Morrison [disponível até 15 de Abril]
Na sua maior parte um filme sobre pessoas anónimas, figuras que aparecem no filme apenas de passagem, o filme enquadra toda a sua acção entre algumas sequências de um trabalhador (o estivador), que aparece repetidamente no filme a caminhar num cais, pensativo e de olhar melancólico. Uma associação que parece assim sugerir que as outras imagens que vemos, de um Portugal entre 1910-30, são nesse momento um sonho, uma imaginação dos caminhos possíveis de uma vida e saudades até por um país que este não conhece (e do seu futuro). O filme nasceu de um convite do Curtas Vila do Conde ao cineasta conhecido pelas suas obras de found footage, e da pesquisa de Morrison sobre filmes do período mudo do cinema português a partir de material de arquivo do ANIM. O resultado é uma magnífica composição visual, onde a música interpretada por Kurt Wagner e os Lambchop ganha fôlego com as imagens etéreas de um Portugal distante, dos trabalhos de um estivador e de um sonho imaginado – o olhar melancólico é afinal também o nosso. Em entrevista ao À Pala de Walsh em 2015, o realizador afirmava: “Um estivador é alguém que, de certa forma, viaja entre diferentes portos para trazer objectos variados e depois os distribui. Isso tornou-se como uma bela metáfora para um realizador de filmes de found footage”.
João Araújo

Um fim do mundo (2013) de Pedro Pinho [disponível até 14 de Abril]
Um fim do mundo, a primeira longa-metragem de ficção de Pedro Pinho, é um filme de uma serenidade invulgar. Filmado num preto-e-branco delicado, em película de 16mm, e mal passando uma hora de duração, esta média metragem existe em relação com as curtas de Filipa Reis e João Miller Guerra, Bela Vista (2012) e Cama de Gato (2012), formando uma trilogia dedicada ao bairro da Bela Vista em Setúbal. O filme de Pinho surge por isso como o resultado de uma trama de olhares cruzados com esses dois outros filmes, mais ainda quando personagens, locais e situações se cruzam e se repetem de filme para filme. O inusitado da produção e a qualidade rara das suas pretensões formais e estéticas destacam-no do universo cinematográfico nacional recente. O poder cândido de Um fim do mundo está no modo como subtilmente expõe as desigualdades sociais que retrata e, simultaneamente, desdenha o realismo social, preferindo um cinema encantado com as texturas da areia, a temperatura dos corpos jovens e a sensibilidade de uns miúdos a fazer de si mesmos, fingindo ser mais qualquer coisa. É portanto sobre o fim da adolescência, da escola, do final de um período da vida que, para quem o vive, é de facto um fim de um mundo, por não parecer haver outro que o substitua. Daí que se fique com a vontade de dormir ao sol nas areias finas de Tróia, para que o fim do dia não chegue e com ele o apagão da juventude.
Ricardo Vieira Lisboa

Noite sem Distância (2015) de Lois Patiño [disponível até 16 de Abril]
Um monumental filme-ensaio: Noites sem Distância. Contrariando a ideia de Heidegger de que “a natureza não tem história”, este trabalho filosófico propõe uma memória supra-humana que a natureza em bruto em si encerra, invisivelmente somando as memórias de todas as suas travessias e ocupações. Contradiz-se a ideia da ruína como prerrogativa humana (decorrente do abandono da vida útil dos vestígios civilizacionais, edifícios e objectos – enunciado recorrentemente trabalhado por Resnais, Duras, Pollet, entre tantos outros), e encara-se a Natureza como uma hipótese de ruína. Afinal, é um ‘‘mapa do passado’’ o que Patiño se propõe a figurar e, entre as montanhas, os rios e as árvores, sugerem-se os dias extintos destes fantasmas que ali, nas paisagens megalíticas da fronteira a norte entre Portugal e Espanha, repetem em ciclo eterno a sua tarefa por cumprir. O vídeo passado a negativo (como o seu Montaña em Sombra, 2012) elimina os eixos temporais e é neste ambiente sem dia nem noite que se esboça a evocação de uma história muito real, feita das horas de sufoco dos contrabandistas que ali arriscaram a vida a tentar atravessar uma fronteira. Um filme absolutamente visionário, que combate também ele entre fronteiras: algures entre o visível e o invisível.
Sabrina D. Marques

Miami (2015) de Simão Cayatte
A duração é curta, mas a amplitude do gesto é longa e o olhar surpreende pela sua maturidade. Simão Cayatte assina esta história sobre uma rapariga capturada pelo sonho juvenil de atingir o estrelato mediático e ser reconhecida por todos, até que o seu nome seja notícia nas praias de Miami. Na realidade, basta-lhe ser conhecida, se o talento não lhe valer o reconhecimento imediato. A câmara, sempre firme, presa ao rosto bonito e atormentado da rapariga, vai desenhando um espaço sonoro-visual tendente ao isolamento e, como corolário, à loucura. Acabou por ser, de todos os filmes que vi na edição de 2015 do MOTELx, a obra mais penetrante do ponto de vista dramático. Uma óptima surpresa.
Luís Mendonça

Os Olhos do Farol (2010) Pedro Serrazina
Um dos mais belos filmes da animação portuguesa. É difícil não pensar em Epstein, nos ventos e tempestades de Le tempestaire (1947). O poder de controlo e descontrolo do mar e das suas raivas. Aqui uma menina que vive com o seu pai, faroleiro, também parece ter essa habilidade. A sua tristeza ou zanga eriçam os mares. O pai vive na sua quarentena física, encerrada numa torre, símbolo que uma quarentena emocional. Um passado que não sai à rua. A vastidão do areal e a prisão gradeada do farol opõem-se. Serrazina trabalha com a sobreposição de duas figuras femininas, com a simbologia do vermelho, com as sombras ancestrais da brincadeira da filha a serem evocações do passado, com o trauma como imagem fixa – pintura. As sugestões do seu talento parecem intermináveis. Mas são apenas quinze minutos de uma precisão absoluta para nos atingir violentamente no coração.
Carlos Natálio

Seems So Long Ago, Nancy (2012) de Tatiana Macedo [disponível até 14 de Abril]
Não é só esta média-metragem de Tatiana Macedo que, de entre as obras da artista, obedece a uma certa economia da atenção. O seu trabalho, em fotografia ou vídeo-instalação, permite-nos aceder a uma perspectiva crítica qualquer que ora miniaturiza, ora monumentaliza o mundo à volta, desfazendo balizas perceptivas e, com isso, desarmando algumas das nossas resistências críticas. Mas em Seems So Long Ago, Nancy não é a observação que é a matéria-prima, mas uma observação da observação. Trata-se este de um documentário que contém “um olhar sobre o olhar”, coligindo gestos microscópicos, nomeadamente aqueles que sacodem o peso do tempo e a exigência da atenção. De quem propriamente? Perguntando melhor: a que corpo ao certo pertence esse tempo e essa atenção? Ao corpo de um museu – o Tate Britain ou o Tate Modern, em Londres – prolongado pelo corpo de assistentes de sala. São estes os meios – media – através dos quais Tatiana Macedo lança questões relacionadas com esses espaços de controlo e poder que são as instituições. Depois de reflectir através da linguagem documental clássica sobre os empregos do olhar por quem faz da atenção um modo de vida e subsistência, esta awareness crítica, acutilante e lúdica, continuou a ser expandida por Tatiana Macedo com resultados brilhantes em (claro está!) diferentes contextos museológicos. A vídeo-instalação Esgotaram-se os Nomes para as Tempestades #2 (2019), um dos seus mais recentes trabalhos, atesta a coerência deste percurso, perdão, deste discurso. Não me diga que a perdeu.
Luís Mendonça

Sleepwalk (2018) de Filipe Melo
Sleepwalk é menos prosaico do que a sinopse do homem que enceta uma viagem por uma fatia de tarte de maçã fará supor. Sem querer revelar demasiado digo apenas que existe um sentido idiomático para a palavra “sleepwalk” que pode remeter para Dead Man Walking (A Última Caminhada), o filme de Tim Robbins de 1985. Noutra geografia planetária embora mentalmente seja a mesma, é atribuída a Jean-Luc Godard a fórmula de que para se fazer um filme tudo o que é necessário é uma arma e uma rapariga. Filipe Melo fez este filme com um homem e um automóvel clássico e saiu-se bem, no sentido de alguém que escreve um telegrama de amor à América profunda, entre o Texas e o Arizona, um país de estradas vazias a perder de vista e de diners e motels e néons e árvores do deserto que produzem uma mitologia de que o cinema muito se alimentou. A tarte de maçã chegará ao seu destino e quem a fez colocou nela o sentimento que pode existir nas palavras e nas imagens.
Ricardo Gross

Terceiro Andar (2016) de Luciana Fina [disponível até 10 de Abril]
Numa viagem que fiz a Famalicão a propósito do primeiro Close-up – Observatório de Cinema, um evento concebido pelo cineclubista Vítor Ribeiro (entrevista aqui), ficaram-me na retina várias imagens, mas houve três que não esqueci: as dos rostos de Carla Bolito, Vera Mantero e Isabel Ruth, captados frontalmente pela câmara da cineasta italiana, radicada em Portugal, Luciana Fina. Esta instalação, intitulada Chant Portraits, servia para dar as boas vindas aos espectadores num dos halls da Casa das Artes, local onde decorreu a mostra. Esta dimensão do grande plano está presente, com a mesma força nua, em Terceiro Andar (2016). É curioso como o filme, que também existe sob a forma de uma instalação, parte de um exercício teórico sobre o espaço, a linguagem e a tradução – até apetece dizer que o filme se vai lentamente constituindo como o espaço de uma “linguagem da tradução”. A filha que dá palavras à mãe guineense para esta traduzir, a filha que dá à realizadora instruções sobre uma montagem que não vemos, a câmara, por sua vez, que circula entre os andares do edifício situado no Bairro das Colónias, em Lisboa… tudo se medeia ou se intercambia em operações de tradução. Com efeito, Terceiro Andar é uma pequena viagem de câmara, entre andares, em que, no fim, o principal objecto de fascínio é o que está “entre” ou escondido algures nos rostos de uma mãe e de uma filha – Ricardo Vieira Lisboa aprofunda esta ideia na sua crítica. Dizendo mal e rudemente, é na força e na beleza destes rostos que habita “a grande tese” deste pequeno mas elegante filme.
Luís Mendonça

Yulya (2015) de André Marques
É óbvio para todos, a começar pelo realizador, que estamos no campo das potencialidades, onde esta curta ensaia uma longa – a gravidade do contexto da silenciosa personagem (brilhantemente interpretada por Joana de Verona, que jamais numa já prolífica carreira se viu em falso) necessitaria de um crescendo prévio de detalhes narrativos até ao momento em que ali somos largados – no palco de um esquema de tráfico humano – para que sentíssemos intimamente a tensão acumulada na personagem e o peso desta tão séria questão com a profundidade que ela nos exige. Apesar disso, é um filme cinematográfico (e faço uso desta redundância como de um sublinhado face ao paupérrimo contexto da competição nacional de curtas). Eliminando quaisquer diálogos, soube encontrar o seu minimalismo na construção visual e sonora e, principalmente, soube evocar um ponto de vista crítico sobre um tão gigantesco problema como é o do contrabando humano – subtextualmente criticando, em particular, a objectificação feminina pela sociedade contemporânea.
Sabrina D. Marques