Agora que as salas estão fechadas e não se prevê, com certeza, uma data para a sua reabertura, as distribuidoras de cinema portuguesas começam a procurar forma alternativas de levar os seus filmes aos espectadores nacionais. Uma delas, a Cinema Bold, decidiu “estrear” no streaming da Filmin e nos videoclubes das televisões seis filmes, um a cada semana. Os dois primeiros são o drama colombiano Monos e o documentário Hail Satan?, ambos estreados na edição de 2019 do festival de Sundance. Os walshianos Ricardo Gross e Ricardo vieira Lisboa já os viram e deixam aqui as suas impressões.
Monos (2019) de Alejandro Landes – disponível a partir de 23 de Abril
Prefiro falar do filme abordando-o como um objecto de cinema realista, e não entrar em comparações alegóricas com o Lord of the Flies (o livro de William Golding de 1954) ou com Apocalypse Now (filme de 1979 de Francis Ford Coppola), referências que dão muito jeito à estratégia de marketing mas que iludem os méritos que o filme não possui. Monos tem lugar nas montanhas e na selva colombiana, onde um exército de adolescentes mantém refém uma engenheira norte-americana. A paisagem e os fenómenos da natureza só por si garantem parte substantiva da força visual do filme, que Alejandro Landes sublinha noutros momentos com recurso à música electrónica da banda-sonora e apontamentos de fogo e de cor, que sugerem que Monos pode meter pausa para o aparecimento de uma rave espontânea promovida pelos jovens actores.
Não se percebe onde Alejandro Landes tem o coração, nem se a aventura humana de Monos é algo onde invista sentimento.
O filme soma uma série de episódios que dão jeito quando nenhum rumo se nos afigura para o acumular dos vários momentos, e Monos vai então apresentar, por esta ordem, uma vaca chamada Shakira (ahaha…) que acidentalmente desaparece minutos depois; tem em seguida um ataque à base dos jovens guerrilheiros que é mais uma sucessão de sensações no abstracto de elementos informativos; e compõem-se ainda de três fugas, duas delas protagonizadas pela mulher cativa, e outra por um elemento dissidente do grupo, de sua alcunha Rambo… Não se percebe onde Alejandro Landes tem o coração, nem se a aventura humana de Monos é algo onde invista sentimento ou da qual tire somente partido no confronto entre a inocência dos corpos e a violência das práticas, tão superficial como uma publicidade ou um videoclipe de longa duração. Monos pode ser também visto como um jogo de guerra acéfalo, para ser fruído pelo seu lado vistoso e sensorial. Fim de realismo.
Ricardo Gross
Hail Satan? (Salve Satanás?, 2019) de Penny Lane – disponível a partir de 30 de Abril
Penny Lane tem um percurso invulgar no circuito do cinema documental independente norte-americano. A sua filmografia parece fluir a dois ritmos diferentes: por um lado, os filmes de compilação em que o found footage fala por si; por outro, os documentários comerciais (ao gosto do festival de Sundance) onde o exótico e improvável se fundem no sincopado de uma montagem rápida e do recurso às famosas cabeças falantes. Na primeira categoria encontram-se Our Nixon (2013) – trabalho imenso de recolha de material de arquivo, à semelhança do que fizera Andrei Ujica em Autobiografia lui Nicolae Ceausescu (A Autobiografia de Nicolae Ceausescu, 2010) – e The Pain of Others (2018) – composto por material disponibilizado no Youtube por pessoas diagnosticadas com o síndrome de Morgellons. Na segunda categoria a inusitada história de John Romulus Brinkley e a sua cura para a impotência masculina com recurso a testículos de bode – Nuts! (2016) – e agora Hail Satan?, sobre o Templo Satânico (organização do “satanismo moderno”) e da sua luta pela laicização das instituições públicas nos (muito evangélicos) Estado Unidos da América.
Penny Lane demonstra, com perspicácia lúdica, as dinâmicas que constroem as identidades nacionais.
Hail Satan? é um objecto formulaico à imagem de tantos outros documentários-de-pipoca (que se acumulam pelas múltiplas plataformas de streaming ou são produzidos e exibidos pelos infindáveis canais de cabo – quase sempre exemplos de bom entretimento). Certo. As suas boas intenções são aquilo que tem de melhor (o respeito pela complexidade do retrato que pretende fazer desta inesperada organização pela defesa dos direitos civis). Certo. Mas além disso, o que mais me interessa neste filme (e que já se identificava em Nuts! e Our Nixon) prende-se a forma como a realizadora é capaz de descrever os sinuosos processos da cultura popular através dos quais se constituiu a actual manta identitária norte-americana (que pelo seu peso colonizador, através do mainstream, acaba por ser, também, a manta identitária da contemporaneidade). A forma como a Lane recorre a excertos fílmicos ou televisivos para ilustrar a história do satanismo nos EUA [com fragmentos que vão de It’s a Wonderful Life (Do Céu Caiu Uma Estrela, 1946) a Gandhi (1982), passando naturalmente por Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968)] acaba por demonstrar como a própria cultura cinematográfica popular formou e enformou a América actual – o caso das estátuas dos dez mandamentos cristãos, espalhadas pelos diversos estados norte-americanos, resultantes duma campanha promocional dos The Ten Commandments (Os Dez Mandamentos, 1956), é o exemplo acabado disso mesmo. Aí, Penny Lane demonstra, com perspicácia lúdica, as dinâmicas que constroem as identidades nacionais (tendo sido, pelo menos para mim, uma revelação perceber de que modo a delapidação do secularismo norte-americano foi um processo recente, pós-Segunda Guerra e resultante da caça às bruxas da Guerra Fria, i.e., que só há “muito pouco tempo” as notas de dollar passaram a incluir a famosa inscrição “In God We Trust” ).
Ricardo Vieira Lisboa