Joan Crawford eleva-se a alturas bem meritórias da sua grandeza como actriz em Sudden Fear (Medo Súbito, 1952), de David Miller, enquanto corpo e rosto. Rosto, como figura dramática e barómetro de resposta plástica e emocional, traduzido em grande plano a estaca zero, o ponto zero, do enquadramento e alvo primordial do cinema – “(…) todo o poder expressivo, artístico e espectacular do cinema está ligado ao rosto”, disse Renoir.
Será o efeito único que tem a plasticidade de Crawford que leva à fixação do olhar numa ordem hipnótica. Uma ligação automática que se inclina para a leitura permanente dos sinais dados pela personagem, além da atmosfera, e envolvente sonora que completarão o quadro de estímulos. E se se fala em rostos, há que relevar sem fuga possível o vincado e anguloso (talhado à faca) de Jack Palance, que exibe aqui a sua força e impressiva presença, e também, o outro rosto inevitável que se junta, o pecaminoso, suavemente perverso da bela Gloria Grahame, culpadamente noir. Serão pois os três rostos chamados ao drama.
Sudden Fear foi adaptado de uma obra de Edna Sherry,e Joan Crawford aliou-se à RKO, assinando a produção executiva. A actriz precisava de se reafirmar depois de uma fértil carreira desde o mudo e o merecido Oscar com Mildred Pierce, (Alma em Suplício, 1945), de Michael Curtiz, pois a estrela estava a perder brilho.
François Truffaut entra na memória do filme ao ter-lhe dado destaque num inaugural artigo para os Cahiers du cinéma. O seu entusiasmo chamou a atenção por se dirigir a uma produção relativamente B, com realização do discreto e não muito conhecido David Miller, que se mostra bem capaz de produzir efeitos à altura dos maiores.
O filme movimenta-se num curioso território que parece assimilar alguns estilos e géneros cinematográficos: drama romântico, suspense, thriller e o inevitável film noir, que o alimenta espectralmente desde o início. Sob estes cambiantes intensificar-se-á a história feita com dramáticas medidas variáveis para se poder assimilar as transformações que nos agarram à narrativa.
Os acordes musicais não são nada inocentes e podem ser a placa de aviso que isto não será para brincadeiras.
O primeiro sinal de que vamos entrar num mundo que se talha, ou melhor, se ritma ao sabor de um tempo bem dramático e psicológico, declara-se logo pelo pêndulo de um relógio que é pano de fundo do genérico que corre. Os acordes musicais também não são nada inocentes e podem ser a placa de aviso que isto não será para brincadeiras. Entre acordes mais ‘’nervosos’’ e particularmente dramáticos, substitui-se uma música suave e esperançosa, tão colada aos romantismos. Estas ‘’misturas’’ fazem parte da variedade de sinais que nos oferece Miller.
De seguida, estamos perante uma intriga à partida comum, no arranque ligeiro (ainda) que nos coloca numa posição de conforto que durará algum tempo, mas não totalmente.
Myra Hudson, é Joan Crawford no papel de uma dramaturga com poder para desclassificar o desempenho de um actor no palco, Lester Blaine, que luta por um papel, no corpo e rosto de Jack Palance (foram pensados para a personagem Clark Gable e Marlon Brando, ambos declinaram). Myra não o acha capaz e com envergadura física para um herói romântico que cative o público e este será dispensado. Mas logo romperá o destino implacável que os vai unir num comboio, num encontro fortuito – fruto do acaso?! O sentido noir espreita imediatamente. O combóio atravessa o plano em alta velocidade, elevando-se uma mancha negra de fumo em direcção ao céu; na carruagem fecha-se o enquadramento para condensar a cumplicidade crescente do casal romanticamente próximo num futuro que está fora da janela. A troca amorosa faz-se num ping pong de citações de Julio Cesar, António e Cleópatra, Shakespeare, para sentimentalizar mais o romance.
Inscreve-se assim o drama romântico a soprar todas as velas que os vai casar e permitir que o cenário se sensibilize à felicidade conjunta, expressando-se no rosto os sinais de uma nova aventura; o dela aberto, resplandecente e o dele, uma máscara de alegria. Ela é rica, ele diz ter pouco… É curiosa a impermeabilidade do actor e o seu empenho (para já) em cumprir o papel de marido feliz e apaixonado.
O valor de drama romântico não durará e o mal vai entrar vestido de branco dos pés à cabeça na figura de Gloria Grahame, a personagem Irene Neves. Nem a meio do filme estamos e Miller coloca em cima da mesa elementos apetecíveis que começam a desenvolver um gráfico singular de expectativas, acrescentando dados à acção na sua escalada de crescimento.
Irene e Lester aparecem como amantes furtivos bem colocados no plano com ângulos de implacável violência e desejo. A partir daqui vão trabalhar juntos para um interesse comum.
Um malogrado ditafone (objecto de excelência do drama), ligado por inadvertência, vai ser o grande mensageiro de más notícias para Myra, e oportunidade única para Crawford expressar um rodopio de sentimentos. Incrédula ouve o horror da traição, o seu rosto imprimirá a enormidade da decepção, o desespero, o medo: “um rosto é uma tela, uma superfície” (Aumont). A tela-rosto de Crawford permeabiliza-se enormemente, alguns consideram que é excessiva a interpretação. Tal exagero parece aliar-se a um estilo característico da natureza da representação da actriz que ‘’puxa’’ as alturas do drama a um nível elevado, plasmando-o no seu rosto, desde logo tão permeável e visualmente activo.
O medo leva Myra para a cama, fecha-se no quarto, a tensão sobe, a imagem deforma-se, como se não aguentasse mais, e a montagem fica frenética, cheia de imagens-presságio.
A mise en scène trabalha nesta cena a proximidade (o rosto) e a distância (a personagem a recuar no plano, a ficar pequenina), encurralada num escritório como um animal perdido; imagens do ditafone [copo de leite em cima, detalhe a lembrar, Suspicion (Suspeita, 1941), de Hitchcock], o disco partido e as vozes dos amantes a ecoarem… O gráfico emocional sobe.
O medo leva Myra para a cama, fecha-se no quarto, a tensão sobe, a imagem deforma-se, como se não aguentasse mais, e a montagem fica frenética, cheia de imagens-presságio. Um dos picos dramáticos é atingido neste momento de revelação.
Agora a caminhada de resposta tem de ser bem feita, bem medida, urdir os planos e contra planos – Myra versus os amantes, cada um por si.
A mulher traída vai lançar-se na realização do contra-ataque e a maquinação entra em linha. Chave copiada, idas à casa de Irene, simulações (queda nas escadas), copiar cartas enganosas, mentiras e mais mentiras, essas serão a moeda de troca para todos…
Até ao dia da execução do plano de Myra, terrível dia, em expressão noir de alta escala com fabulosa execução formal que não permite a quem vê descolar – o mal estar é infalível.
As sombras inundam os planos, o relógio faz-se ver e ouvir – lá está o pêndulo que volta – um papel com um horário rigoroso mostra as acções alinhadas a executar. E, num momento magistral de intensidade plástica e dramática, Myra fica frente ao pêndulo no seu movimento ininterrupto a ver (o olhar em macro), em flash forward, a execução do plano. Convém referir a mestria do director de fotografia Charles Lang.
Ponto alto do filme que movimenta o suspense, um quadro noir em crescendo, lancinante e expressionista. Nada, na verdade, vai acontecer assim e sem descanso a jornada do supense continua, sem dar tréguas, a juntar mais elementos imperdíveis.
Como uma ‘’placa nervosa’’, o rosto engole o medo e projecta-o.
Depois, no plano real já em execução, Myra fechada num armário em casa de Irene volta a imprimir no rosto uma elevada intensidade, igual ao rosto de Deleuze como uma “placa nervosa, e sede dos cinco sentidos, suporte dos órgãos de recepção”. Como uma ‘’placa nervosa’’, o rosto engole o medo e projecta-o; um cãozinho de corda vem até ao armário accionado pelo marido, banhado em sombras, que aguarda Irene e não sabe que alguém se esconde perto de si.
O espectador também aguarda em alta tensão e uma sensação de mal estar instala-se em perfeita empatia com a vítima. Estas criaturas vão sair para a rua, a cidade de S. Francisco vai tornar-se território de fuga, de perseguição e de perigo. Ela foge, ele persegue-a. Numa atmosfera tipicamente noir as sombras projectam-se em labirintos de ruas e ruelas, em declive, formando um aglomerado arrepiante; thriller, terror e film noir caminham juntos.
Um lenço branco, mais outro lenço branco, vão servir de toque dramático para o remate final.
Truffaut terá afirmado, além dos elogios rasgados a Gloria Grahame e à mise en scène de Miller, que não haveria nenhum plano no filme desnecessário à progressão dramática, nem nenhum plano que não fosse apaixonante e nos levasse a pensar ser o ponto alto do filme.
Sudden Fear arrasta-nos numa onda de suspense e atmosfera noir onde o rosto de Crawford cabe bem e domina o grande plano – como o rosto intensivo (de Deleuze), o rosto que sente. É este que fica.