Este é, talvez, um de vários ícones do universo da imagem cinematográfica: línguas cruzam-se, tocam-se, movimentam-se, alongam-se num acto que foge ao desejo entre quatro lábios, duas bocas, duas faces, dois corpos, dois seres. Desprovido de emoção, resta a repetição. Desprovido de sentimento, resta a morte da sedução. Prolongado, demorado (digno de um ultimato), provoca, instiga um desconforto, seguido de uma banalização, seguido de um estado de equilíbrio entre aquilo que é projectado e aquilo que é visto. Assim se treina, assim se banaliza, assim se inicia um ensaio visual sobre o potencial (absurdo) da realidade.
Attenberg (2010), de Athina Rachel Tsangari, pertence ao ramo da vontade anti-dogmática, pós-canónica. (Não) é único e (não) ambiciona ser. (Não) é diferente e (não) ambiciona ser. (Não) é real e (não) ambiciona ser. No seu tempo, mostra-nos o início de um percurso de aprendizagem, de conhecimento, de crescimento, que advém da expectativa (e, em parte, da concretização) do fim da vida, do fim da ilusão. No seu espaço, excede os limites da representação da banalidade, expandindo os limites (naturais) do real, numa aceitação da perdição do destino.
Aqui está a vida. Aqui está o absurdo, e o absurdo, em si, jaz em nós.
Ao contrário dos seus conterrâneos [do qual Kynodontas (Canino, 2009), de Yorgos Lanthimos, poderá ser um dos exemplos máximos], reserva-se (ou confina-se) a um lugar de colectividade reduzida, dando azo a um aprofundar das incongruências, da (falta de) emoção de cada indivíduo que nos é apresentado numa clausura da geometria, da firmeza do plano. Daí resulta também a teatralidade: o toque de ficção que nos remove do nosso plano de existência.
A normatividade da narrativa, a simplicidade da abordagem cinemática, a eliminação do adereço da fantasia são alguns dos elementos que nos permitem chegar mais perto (levando-nos mais longe) de algo que foi já tantas vezes representado, tantas vezes mostrado, tantas vezes pensado: a morte de um pai, a fisicalidade do materialização do desejo sexual, a sedimentação de uma amizade poderosa e conflituosa. Esta é uma história sobre trauma, sobre aquilo que move a nossa inércia, na nossa condição (tão prolongada, tão generalizada) de desilusão para com as promessas dos ideais de esperança, de iluminismo, de fé no potencial para além do real. Este é um filme que, pelo corredor de um hospital, pelo corredor de uma rua sem sentido, pelos quartos em que as personagens habitam, cria uma linguagem, uma comunicação terrena, animalesca, brutal, seca e fiel.
O absurdo advém da ruptura do expectável, numa extensão, num prolongamento, numa fixação e num jogo (ou um duelo) entre os extremos do desejo e os extremos de existência. Aqui, a comunicação é dotada de traços surrealistas, que provêm de uma incessante repetição para o alcance da nulidade do significado. Aqui, a comunicação, na sua incongruência e insignificância ultrapassa o potencial da norma: atinge, assim, os dois pólos, os dois extremos e, naturalmente, um ponto de equilíbrio.
Aqui, os movimentos, os gestos, as danças, os rituais são dotados de um carácter de significação continuamente conflituoso. A cada passo, uma emoção extravasa. A cada respiração, uma vida perece. Mas o olhar permanece vazio e a inacção contrapõe-se permanentemente à fluidez dos corpos que sonham existir neste espaço de confinamento cinematográfico.
Aqui, a música e os sons servem para a resignificação daquilo que, desde há muito, circula nas ondas do conhecido. Se Alan Vega recheia os ambientes compostos e criados pelas personagens, assume-se no entanto uma disrupção da (expectável) ligação emocional através da sonoridade. O final é o apogeu desta estratégia: uma conclusão (previsivelmente) trágica e triste, adornada pela leveza e jovialidade de “Le Temps de l’Amour”, numa demonstração bruta do ridículo da fantasia, através da observação de uma paisagem composta por camiões que não cessam o seu movimento pela perda de uma vida, pelo desaparecimento eterno de um indivíduo. A crueldade da vida está, assim, também, na certeza de que um limite não é (nem nunca poderá ser ultrapassado): a morte é, e será sempre, a única certeza, o único final. A ruína da existência é previsível, mas o jogo depende de cada um.
Dentro destas paredes de representação visual, abre-se o espaço para uma reflexão sobre o potencial do absurdo: longe da fantasia (que tanto nos guia, que tanto nos molda, que nos cria), mostra-nos o poder da quebra da norma através do mundano, numa busca por um significado que, em si, não existe (e não tem de existir). Aqui, assume-se a vida tal como (não) é: um acto consciente de equilíbrio e restrição, num apelo à sobrevivência. Uma representação física, suja, cruel mas fiel aos contrastes, aos extremos da mente e do corpo, da vida e da morte.
Aqui está a vida. Aqui está o absurdo, e o absurdo, em si, jaz em nós.
Attenberg (2010) de Athina Rachel Tsangari está disponível na Library da MUBI