Aproximar as coisas que nunca foram aproximadas e não pareciam predispostas a sê-lo.
Na sua recente masterclass no Instagram, Godard relembrou esta ideia-chave das Notas sobre o Cinematógrafo, livro de Robert Bresson a que os cineastas da Nouvelle Vague conferiam um estatuto bíblico. Caso não conhecêssemos a sua velha obsessão pela linguagem e a sua notável arqueologia cinematográfica, estranharíamos o modo como Godard distorce a frase de Bresson para falar do seu próprio método de trabalho. Mas a aproximação sugerida nas Notes não remete para qualquer espécie de pastiche com elementos das mais variadas artes, desde trechos de filmes a frases soltas de obras literárias, temas musicais ou pinturas. Nos antípodas da técnica godardiana, Bresson acreditava que os meios do cinematógrafo permitiam e deviam ir para além de qualquer outra forma de arte. Desde a rejeição de qualquer indício de teatralidade, com o recurso a “modelos” no lugar de actores, passando pela supressão de música extradiégética, à rejeição daquilo que chamou de “falsa potência da fotografia”, tudo no cinema sonhado por Bresson aponta para o despojamento das demais manifestações artísticas. Na sua linguagem, e ao contrário de Godard, rapprocher les choses não significa rapprocher les arts.

Na forma como Bresson encara a aproximação de imagens e sons, estes elementos devem funcionar como parcelas do mundo real captadas com os seus próprios instrumentos de trabalho, num processo que envolve um misto de intuição artística e “indiferença escrupulosa de máquina”. É nas intersecções, na forma como esses elementos a priori desconexos se sucedem, se unem e transformam no grande ecrã, que desponta a verdadeira magia do cinematógrafo e aflora o inefável universo bressoniano. Surge assim a aldeia dos Pirinéus franceses de Au hasard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966), bem como as casas, as árvores, as folhas, as telhas e as plantas que a compõem. Nascem assim o burro Balthazar, Marie, os blousons noirs, o vagabundo bêbado, o velho comerciante de grãos e todas as pequenas formigas que nela habitam. Bresson borda as vidas que se acendem e apagam nessa aldeia como se o seu filme fosse uma manta de retalhos preta e branca, entrelaçando imagens e sons díspares no momento da montagem com a sua delicadeza singular. E o turbilhão emocional em que nos vemos envolvidos ao experienciar o filme parece enigmaticamente desproporcionado face à simplicidade das histórias que nos são apresentadas, face à subtileza e elegância formal da escrita cinematográfica. Pois eis um dos mais belos paradoxos do cinema de Bresson: encontrarmo-nos perante a sua simplicidade é também perdermo-nos no mais complexo labirinto emocional imaginável.
Pois eis um dos mais belos paradoxos do cinema de Bresson: encontrarmo-nos perante a sua simplicidade é também perdermo-nos no mais complexo labirinto emocional imaginável.
O hasard, o acaso no cinema de Bresson, está na base de outro belo paradoxo. O realizador francês dizia acreditar que a vida é feita simultaneamente de acaso e predestinação. Talvez para tentar explorar ao máximo essa ideia no seu processo criativo, decidiu pela primeira vez em Au hasard Balthazar não ter como base qualquer obra literária, tornando o seu esquema de partida o mais ambíguo possível, expondo-se a eventuais “acidentes” durante a rodagem e promovendo momentos de improvisação. Partiu assim da “ideia plástica” de um burro, porventura inspirado pelo quadro Gilles de Watteau, animal cujo focinho confessava fasciná-lo. O burro de Poitou, escolhido pela sua fotogenia, é assim lançado às feras humanas, vagueando de dono em dono, com a câmara de Bresson a registar a sua peregrinação acidentada. São as peripécias de Balthazar que o levam a sentir na pele a mecânica mortífera do mundo humano e a ter uma visão clara da indiferença do universo face ao sofrimento na terra. Perante as deambulações do burro, as nossas emoções vão-nos relembrando que o livre-arbítrio não tem lugar num mundo onde o desejo cego de dinheiro, de alcool, de violência, se sobrepõe a uma salutar sintonia com a natureza. Os acasos da vida de Balthazar fazem-nos sentir a fatalidade que acorrenta os protagonistas do filme. A arte do cinematógrafo revela-nos a predestinação de uma humanidade acorrentada às suas paixões mais nocivas e brutais.
Para quem estiver familiarizado com a obra de Bresson – e sobretudo com a sua fase final – revisitar Au hasard Balthazar é ser novamente apanhado de surpresa pela presença persistente de música ao longo de todo o filme. Não é de estranhar o impacto causado pelo constante braço de ferro entre os silêncios da aldeia e a música do circo, da festa de Arnaud ou do rock yé-yé que sai da telefonia de Gérard como uma nuvem negra de poluição. Surpreendente é o facto de ouvirmos em certos momentos do filme frases de uma sonata de Schubert – Sonata em Lá maior, D. 959 – que começamos a ouvir logo nos créditos iniciais intercalada com os zurros de Balthazar. Segundo Bresson, a banda sonora extradiegética tem um efeito corrosivo sobre os filmes, razão pela qual viria a suprimi-la da sua paleta cinematográfica em trabalhos posteriores. Mas ouvir a música de Schubert em Au hasard Balthazar é como ouvir ecos da fatalidade que encerra os seus protagonistas. Com efeito, o cineasta francês parece enclausurar Balthazar e os seus modelos na própria estrutura do segundo andamento da sonata escolhida. No filme, as etapas da vida de um burro são equiparadas às etapas da vida do homem, e o movimento circular da odisseia de Balthazar pode remeter para a forma ABA do andamento em causa. À secção A corresponde a infância do burro, a sua adopção, o baptismo, as carícias e as brincadeiras no feno. Segue-se a secção intermediária, com a expulsão do Éden e vida de trabalho duro, que é também a fase do burro sábio, capaz de multiplicar algarismos com três casas decimais e receoso dos efeitos nefastos do alcool. Por fim, é retomado o tom da sequência de abertura, com o retorno ao Éden, a fase mística que precede a morte, beatificação e coda.
No seu romance biográfico Jeune Fille, Anne Wiazemsky, que encarna Marie em Au hasard Balthazar, conta-nos as histórias da rodagem do filme. No seu livro, Anne faz um retrato surpreendente de um Bresson manipulador, possessivo, que nos bastidores da rodagem fez questão de a manter isolada da restante equipa, envolvendo-a num jogo emocional ambíguo. Sugere que tais são os habituais procedimentos do cineasta francês para “entrar em telepatia” com os protagonistas dos seus filmes, de modo a conseguir captar os seus estados de alma em raros instantes de espontaneidade e automatismo. Confessa também não ter seguido as directrizes de Bresson, à sua revelia, na cena da sua perdição total, em que se confronta com Pierre Klossowski. Nas suas palavras: “(…) descobria de forma instintiva, ao ritmo das sequências e sem me poder ainda explicar, as bases da profissão de actriz”. Efectivamente, Anne viria a ter uma notável carreira de actriz de cinema – de um tipo de cinema que Bresson apelidava pejorativamente de “teatro filmado”. Resta saber se este não se apercebeu de facto da transformação que ocorreu no interior da protagonista do seu filme. Ficamos apenas com a certeza de que nunca mais nos esqueceremos do rosto, dos gestos, da voz, do charme da jovem Marie, admiravelmente registados na “película enfeitiçada” de Bresson. Nem nos esqueceremos do destino trágico que lhe é reservado, entrelaçado com o destino de Balthazar por acaso. O mesmo acaso que nos leva às seguintes palavras do poeta Frances Jammes:
“Jeune fille au doux coeur
Tu n’as pas sa douceur :
car il est devant Dieu
l’âne doux du ciel bleu.”
Au hasard Balthazar é um filme disponível na plataforma de VOD nacional, Filmin.