Ao que se sabe, o fascinante invento dos irmãos Lumière não tinha como principal prioridade a exploração comercial, mas sim um conjunto de motivações de teor cultural e científico. As experiências pioneiras de Edward Muybridge, Étiene Jules Marey, Jean Commandon ou Eugène-Louis Doyen são outros dos vários exemplos da matriz científica e pedagógica do cinematógrafo.
Como outras ditaduras, a Ditadura Militar (1926-1933) também procurou aproveitar as potencialidades didácticas e pedagógicas do cinema: logo em 1929, o Ministério da Agricultura criava o Serviço de Cinema da Campanha do Trigo, entregue a Adolfo Coelho, o “pai” do cinema agrícola em Portugal de quem o Tiago Baptista já nos falou aqui no À Pala.

Ao longo das duas décadas seguintes, a Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas produziria mais de 50 documentários sobre as boas práticas agrícolas, desde Como se Combatem as Pragas dos Laranjais (1936), Exportação de Melões (1938), A Colheita da Azeitona (1939), O Mosquito: Inimigo do Homem (1940), O Escaravelho da Batateira (1943) ou Como Obter Batata-Semente (1947).


A exibição destas obras era feita sobretudo nos meios rurais, onde a actividade agrícola era dominante, pelas Brigadas Técnicas do Ministério da Economia, Casas do Povo e Grémios da Lavoura, pelo Cinema Ambulante do Secretariado da Propaganda Nacional e em sessões feitas em estabelecimentos de ensino.
O sucesso desta iniciativa do Ministério da Agricultura permitiu a outros ministérios avançarem com iniciativas similares. Já em pleno Estado Novo, várias instituições e organismos públicos apostaram nas potencialidades do cinema enquanto instrumento de divulgação: Direcção-Geral de Saúde [Só Tem Varíola Quem Quer (1949) de António Lopes Ribeiro], Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas [A Lagarta do Sobreiro (1947) e O combate às Pragas Florestais (1947) de Adolfo Coelho] ou os Serviços Cartográficos do Exército [Preparação e Uso de Plasma no Sangue (1946)].
Em 1932, através do decreto-lei n.º 20 859 (4 de Fevereiro), o então ministro da Instrução Pública, Gustavo Cordeiro, criava a “comissão do cinema educativo”, “com o fim de promover e fomentar nas escolas portuguesas o uso do cinema como meio de ensino e de proporcionar ao público em geral a apreensão fácil de noções úteis das ciências positivas, das artes, das indústrias, da geografia e da história.”
Formada por diversas figuras da administração pública (o secretário geral do Ministério da Instrução Pública, os directores gerais do Ensino Técnico e do Ensino Primário, o inspector geral do Ensino Particular, o director do Ensino Secundário, o inspector geral dos Espectáculos, o director dos serviços da 10.ª Repartição de Contabilidades Públicas, o reitor do Liceu Pedro Nunes) e da sociedade civil (como José Leitão de Barros ou Afonso Lopes Vieira), as principais funções desta Comissão seriam propor a “execução de películas culturais” e indicar nomes de “indivíduos idóneos para a confeição dos argumentos”. A quase exclusividade de funcionários públicos na composição da Comissão assegurava assim o controlo oficial sobre a produção dos filmes educativos.
Em Março de 1935, no rescaldo do debate sobre a legislação, a revista Cinéfilo aproveitou a carta de um “cinéfilo observador” para fazer um ponto da situação do cinema educativo e da comissão criada para o promover. A primeira conclusão era evidente: “o decreto 20.856 nasceu torto – e já não se endireita”.
Ainda assim, nestas décadas, destacam-se algumas iniciativas isoladas, como uma “sessão cinematográfica gratuita, dedicada aos alunos da 3.ª e 4.ª classes, e suas famílias” realizada em 1929 na Escola Primária Conde de Ferreira da Chamusca, organizada pela Associação de Propaganda Educativa “sem o menor auxílio oficial”; pretendia demonstrar aos responsáveis da escola e familiares dos alunos as potencialidades do “cinema escolar como um poderoso auxiliar do ensino”; em 1932, a Escola Minerva do externato das Avenidas Novas realizou várias sessões aos sábados com “programas escrupulosamente organizados, cujos filmes alternam com conferências de professores e alunos”; em 1938, a Escola Central de Lisboa exibiu de “uma série de filmes que constituiu uma auspiciosa tentativa para a instalação definitiva do cinema no espaçoso gimnásio daquele estabelecimento de ensino popular”.
Duas décadas mais tarde, em 1953, no âmbito do Plano de Educação Popular, surgia a Campanha Nacional de Educação de Adultos, importante iniciativa que permitiu a produção e exibição de dezenas de filmes educativos, entre os quais alguns de divulgação científica.

Para além de formar professores do ensino primário nas técnicas de projecção de cinema, de organizar as “missões de cinema” com a criação de unidades móveis que percorriam sobretudo os meios rurais do país para realizar sessões de cinema, a Campanha Nacional de Educação de Adultos também apostou na produção cinematográfica de pequenos filmes em 16mm.
É nesse contexto que surge a personagem Zé Analfabeto, pacato e humilde agricultor português analfabeto que, sempre acompanhado pelo seu afável burro Marcelino, vive algumas peripécias na grande cidade. Interpretado pelo popular Vasco Santana, esta personagem contaria a sua história de alfabetização ao longo de seis episódios: O Zé Analfabeto e o Trânsito, O Zé Analfabeto na Vida Corrente, O Zé Analfabeto nos CTT, Confissões de um Analfabeto, O Zé Analfabeto faz exame e O Zé já não é Analfabeto.


Como explica Cristina Barcoso, o percurso da personagem Zé Analfabeto foi um eficaz meio de promoção da alfabetização em Portugal, apresentando-o ao público como modelo de formação de carácter, superação pessoal e valorização social.
Mas o cinema não serviu apenas na escolarização de crianças e analfabetos. Também as universidades criaram importantes serviços técnicos para o uso do cinema na investigação científica e no ensino superior, nomeadamente o Serviço de Cinema da Faculdade de Farmácia do Porto que, com a direcção do Prof. Correia da Silva, tecnicamente apoiado por Roldão Santos e Rui Pinto, entre 1965-77 produziu treze filmes documentários de natureza científica, entre os quais: Coração Isolado, Intestino Isolado ou Mitocôndrias – Fosforilação Oxidativa.

Naturalmente, ao longo das décadas, várias empresas privadas também se interessaram por produzir filmes “educativos”, como a CUF (Batatas, 1931), a Pathé-Baby [Amputação de Ossos de um braço e sua Substituição (1954)], o Serviço Cinematográfico da Shell Portuguesa [Caça Submarina (1957), de João Iglesias], o Laboratório Sandoz [La Biopsie (1960) de Alfredo Tropa], entre outros.

de Júlio Marques, produzido pela Pathé-Baby.
Os cineclubes portugueses foram, mais uma vez, também importantes núcleos de acção, que organizaram o pioneiro Festival Internacional do Filme Didáctico, no cinema Roma, em Lisboa, em 1964, e que criaram secções de cinema educativo para o público mais jovem.

Quem também não poderia passar indiferente a este fenómeno pedagógico seria Manoel de Oliveira que, em 1958, tentara a concretização de um filme científico intitulado O Coração, um documentário sobre uma cirurgia toráxica que consistia na abertura do coração. Por razões científicas e artísticas, o filme ficou inacabado porque, supostamente, já não traria nenhum valor científico acrescentado e, sobretudo, porque o realizador considerou que a especificidade técnica exigida pelo filme seria incompatível com a sua estética visual.