Se tudo correr bem, as salas de cinema reabrirão em breve. E o fogo do cinema e suas comunidades refrescará um mundo, que esteve aferrolhado a ver os filmes nos streamings, nos DVDs, nas partilhas, nas listas, na imaginação e proposição de cada um, passador assumido e confessado. Muito cinema se viu, muitas pensamentos morreram na praia, outros ainda hão-de florescer. Alguns walshianos abrem o baúzinho dos seus visionamentos e revelam por onde andaram os seus vagabundos olhares. A diversidade é palavra de ordem e emociona. Uns pela mão, outros desacompanhados, mas todos movidos pela necessidade imperiosa de ver cinema. Como uma respiração-viagem que sempre nos deixa mais leves e, paradoxalmente, inquietos. Que estes caminhos possam servir de inspiração a quem já tem a roupa de caminhada vestida e os ténis de tracção postos.
Talvez haja pouco a resgatar da história do cinema clássico americano, sobretudo depois do pente fino dos Cahiers, porém considero que é injustificável que até hoje o nome de Delmer Daves continue numa segunda linha de cineastas. Daves é sem dúvida muito mais que um tarefeiro, porque a esses coube unicamente reproduzir os códigos estabelecidos (e refiro-me aos códigos no seu sentido mais lato, porque não é apenas uma questão de estilo, os seus temas são também atípicos dentro da grande indústria moralizante). Em Daves há de forma inegável um cunho autoral, sobretudo nos seus westerns, bastando 7 obras para o colocar junto de Ford ou Mann. E não incorro em qualquer exagero ao afirmar a proximidade entre Daves e os cineastas ditos maiores. Isto porque o modo como Daves domina a paisagem do Oeste, tanto está ao nível de Ford pela forma – como captura o território e move a sua câmara com uma destreza raramente vista no cinema (o recurso aos cenários naturais, à semelhança do Monument Valley de Ford, é sem dúvida uma das suas maiores qualidades) – como está próximo de Mann e da sua qualidade “mineral”, tal como Godard o referiu, porque os olhos de Gary Cooper frente ao azul do céu em Man of the West (O Homem que veio do Oeste, 1958) serão mais tarde os mesmíssimos olhos que, em The Hanging Tree (Raízes de Ouro, 1959), adquirem esta estranha alquimia entre a natureza e o homem.
Mas comecemos pelo primeiro western de Daves, o belo Broken Arrow (Flechas de Fogo, 1950), que está muito próximo do magnífico Winchester ’73 (Winchester 73, 1950) de Mann, porque são dois filmes bastante ousados para a época, na medida em contradizem a grande narrativa americana [a mesma que estava a ser montada por Ford; e basta relembrar a diferença que há entre estes dois filmes e Wagon Master (A Caravana Perdida, 1950), filme do mesmo ano e que mais uma vez conta a história da América pelo lado dos colonos]. Tanto Daves como (sobretudo) Mann, dão voz ao verdadeiros nativos americanos. E se o filme de Mann permite zonas de sombras (porque apesar de retratar os índios não como atacantes mas como defensores, não deixa de ser um filme sobre guerra e violência, onde os actos mesmo que justificados não perdem a sua dimensão bárbara), o filme de Daves não deixa de ser um objecto justo para com os índios. Tanto Broken Arrow, como Cowboy (Cowboy – Como Nasce um Bravo, 1958) – um objecto igualmente curioso, espécie de anti-western um tanto assimétrico (uma vez que a primeira parte, em estúdio, é algo fastidiosa em comparação às magníficas cenas filmadas em pleno Oeste, sobretudo os momentos com o gado) – , são objectos curiosos e cuidados. Mas o apogeu de Daves encontra-se em 3:10 to Yuma (O Comboio das 3:10, 1957). Este filme foi sem dúvida a minha grande descoberta da quarentena e por esse motivo dedico este especial comprimido a Delmer Daves. A paixão pelo cinema durante esta situação viveu um estranho paradoxo, porque enquanto amante de cinema nunca deixei de desejar ver filmes (o que me levou à procura de Daves); no entanto, o meu lado cinéfilo lamentou que esta descoberta tenha sido feita por entre as margens do computador, porque um cineasta assim só deveria ser visto no grande ecrã e película. Espero que todos aqueles, que tal como eu, se encontram sem a sua sala de cinema, possam descobrir este filme, do qual não quero revelar mais nada. Para que o prazer de o descobrir seja o mesmo ou superior ao meu. E deixo apenas a nota de que há semelhança dos westerns, seria igualmente justo dedicar um programa de redescoberta aos melodramas de Daves que ocupam a sua fase final e que são igualmente superiores.
Bernardo Vaz de Castro
A quarentena desordena ou reordena os visionamentos? Jukebox de luz, sempre a tocar, as notas ecoam, os tons misturam-se, a casa permanece viva e penetrada pelo mundo que não pára. Pego em duas notas desse concerto para um só espectador. 1. Os atalhos da cinefilia são maravilhosos. Nunca tinha visto o clássico Dark Passage (O Prisioneiro do Passado, 1947) e não cheguei pela via mais óbvia: o par Bogart/Bacall. Nem pelo segundo caminho mais óbvio: admirando a arte de Delmer Daves. Mesmo que a câmara subjectiva da primeira metade do filme seja bem boa, e transporte o noir para tons (ainda) mais sombrios de thriller. Cheguei a Dark Passage pela curiosidade no trabalho do escritor e argumentista David Goodis. Mas mesmo este foi um caminho frustrado. Ao contrário de The Unfaithful (A Cruz do Pecado, 1947) de Vincent Sherman, onde o toque da escrita está bem à vista, aqui o argumento é menos conseguido. Demasiados diálogos de resolução, com acções mencionadas e não antes vistas, ou pelo menos intuídas, em off. Muita da resolução da intriga acontece nas palavras, não nas imagens. Mas, dito isto, Dark Passage é um daqueles filmes que brilham muito por causa dos seus secundários. O rosto e palavras intrigantes de Tom D’Andrea, o taxista que leva Bogart até à operação de mudança de rosto. Assustador e amigável ao mesmo tempo, uma cena inesquecível. Depois, os dentes desordenados de Clifton Young, que vai do criminoso inteligente ao banal rufia. E, depois, o que dizer daqueles olhos a pegar fogo de Agnes Moorehead? A trabalhar lentamente da chata à mulher solitária e perturbada. No momento final em que aparece todos os problemas de argumento se esfumam. Que actriz. E ainda nem falei do rosto controlado e olhos a faiscar de desejo de Bacall e as ligaduras Frankenstein de Bogart, apenas a deixar ver aqueles lábios fininhos. A cinefilia é feita destes atalhos-detalhes, do brilho que ofusca quando abrimos os olhos ao desconhecido.
2. Numa altura em que o nosso olhar se tornou, muitas vezes exclusivamente (e o problema aqui está precisamente no advérbio de modo), num instrumento social e politicamente responsável – e que, por extensão a critica ameaça ser apenas crítica cultural, não me parece que um filme como The Wicker Man (O Sacrifício, 1973) de Robin Hardy fosse hoje possível. Um cristão queimado vivo num grande Golem de vime? Ou, no seu inverso, a condenação moral de uma comunidade de uma pequena ilha escocesa como bizarra e com costumes conotados como obscuros? Mulheres nuas dançando de forma mais ou menos gratuita? Tudo isto é hoje objecto de discussão. E, nesse sentido, a obra de Hardy parece ser um objecto datado. Mas o mais interessante é que o trajecto atribulado do próprio filme – com películas perdidas, rejeitadas, encurtadas, remontadas – o transforma numa criatura fílmica de terror com ligaduras. Momentos extensos de canções folk com vozes entre-cortadas, distantes, distorcidas e Hardy, de vez em quando, avança no espaço como se tivesse sido possuído pela câmara de António Reis, e eis que o terror se maquilha de uma certa poesia e liberdade de olhar para qualquer coisa de forma justa. Penso que é nesses gaps que The Wicker Man sobrevive hoje e escapa a esses confrontos do argumento, entre a ordem e a insurreição, entre os mores libertinos e os processos civilizacionais. Pôr os olhos nisto também pode ser uma ode à ironia: foi nas falhas do planeado que o cinema saiu à rua para se imortalizar e se libertar do inquietante e aprisionante enguiço da comparação moralizante entre coisas.
Carlos Natálio
Ainda no início do período de confinamento aproveitei para explorar alguns dos títulos de Jacques Demy que ainda tinha em falta. Foi assim que acabei por ir parar, de forma algo casual e sem grandes expectativas, a Trois places pour le 26 (Three Seats for the 26th, 1988). O filme tem aquela aura própria dos projectos de amor. Num pequeno documentário incluído nos extras do DVD (edição da Arte Editions), Agnès Varda conta como foi recebida a notícia do necessário financiamento para o filme, através de um telefonema a partir de Nova Iorque, qual visita da fada madrinha num conto de fadas – bem ao gosto de Demy. O filme tem como personagem principal Yves Montand desempenhando o papel de Yves Montand, de regresso à sua cidade natal, Marselha, para ser estrela de um espectáculo musical em que é encenada a história da sua vida. Nesse regresso há a redescoberta de velhas paixões e o brotar de novos amores, enquanto vão decorrendo os ensaios para o espectáculo que está prestes a estrear. De forma admirável, Jacques Demy coloca em bailado constante a realidade e a fantasia, o mundano e o insondável, com a ficção a desenrolar-se em cenários reais e a vida real a ser representada em cima de um palco. Ainda que haja um pulsar muito negro que se adivinha a cada esquina (desde logo, o lado cruel de ser parte de uma encenação da sua própria vida, por muito gloriosa que seja), sendo Demy, ama-se muito e dança-se mais, onde quer que seja. Especialmente delicioso é o momento em que Montand, qual espírito luminoso vindo do mundo dos vivos, faz uma aparição numa perfumaria onde, justamente, se canta e dança, por entre cor e perfume.
O segundo filme que destaco foi visto quando o confinamento já ia maduro. Trata-se de Breezy (Ontem ao Fim do Dia, 1973) de Clint Eastwood. “Jaded middle-ager finds Truth with a teen-aged hippie in sappy romance” – esta é a descrição micro-cápsula-de-efeito-rápido que poderão encontrar no Movie and Video Guide de Leonard Maltin (a minha edição remonta já a 2000 e, desde aí, não foi comprada edição actualizada, o que será compreensível face às evidências). De forma simplista, podemos efectivamente dizer que se trata da história de um homem de meia-idade (Frank Harmon, interpretado por William Holden) que encontra uma jovem hippie (a Breezy que dá nome ao filme), nascendo desse encontro um romance. Este é o William Holden da patine, do desencanto, da cara abundante de rugas, dos olhos que se carregaram de azul profundo (mais uma daquelas velhas raposas de Hollywood que nos habituámos a ver a preto e branco e de quem, descobrimos, nas suas décadas tardias, os olhos azuis). O William Holden da segunda vaga, de interpretações e filmes magníficos como Network (Escândalo na televisão, 1976) ou Fedora (O Segredo de Fedora, 1978). Desde o início, o filme mostra a proximidade existente entre Frank e Breezy, de forma muito subtil, com cada um em modo “manhã seguinte”, abandonando a cama quente do amante. Dois seres à deriva – ele sem descendência, ela sem ascendência. Há um primeiro encontro, quando Frank, muito contra a sua vontade, se vê forçado a dar boleia a Breezy e, a partir daí, o que o filme nos propõe é o pequeno milagre que vai unindo estas duas personagens, uma promessa de proximidade humana que salva ambos de uma solidão irredutível. Como é óbvio, pressentem-se neste romance contornos incestuosos. Será que há aqui um estranho diálogo com Trois places pour le 26? Sim, e até mais do que poderíamos pensar: a banda sonora de Breezy ficou a cargo de Michel Legrand, o compositor de sempre de Jacques Demy.
Daniela Rôla
A escolha é difícil, porque, durante a pandemia, consegui manter e, em certas semanas, superar largamente a minha média da praxe: dois filmes por dia. “Ataquei” fundamentalmente três realizadores: Frederick Wiseman (falei um pouco dele a propósito das sugestões para a quarentena), Werner Herzog (uma revisitação propiciada tanto por razões de trabalho como de extremo prazer, movido pelo gosto pela descoberta ou redescoberta, pela exploração de destinos longínquos a partir do sofá) e Allan Dwan (alguns westerns que queria ver e, por força das “brincadeiras com machados” de Manuela Viegas, acabei por dar corda, atempadamente, à descoberta). Começando por este cineasta clássico algo obscurecido por outros nomes que, entretanto, entraram no cânone, como John Ford e Raoul Walsh, apetece-me destacar a última imagem que guardo do último western que vi dele: é exactamente o derradeiro plano de The Restless Breed (1957). Não foi o melhor filme que vi de Dwan neste período – alvíssaras para o politicamente ousadíssimo Silver Lode (Falsa Justiça, 1954) ou a tragédia sensual e telúrica Tennessee’s Partner (Rivalidade, 1955). Escolho este still porque foi o último, do filme e desta minha curta, mas magnífica, jornada pelos westerns algo esquecidos de Dwan. E porque ele representa tudo aquilo que adoro neste cineasta: quando pensamos que estamos perante um Dwan menor, perto de olvidável, ele penetra-nos, como que com uma lança, com um plano de uma força simbólica, estética e moral, que nos deixa rendidos. Num plano-aforismo, Dwan rende o filme ao happy ending total: o cowboy (Scott Brady) com sede de vingança cumpre o programa filosófico que enunciou cenas antes, em jeito de prédica, a um grupo de crianças e, depois de consumada a vendeta, atira a pistola com o cinto repleto de munições para o chão. Um movimento que acontece como prolongamento do beijo na boca de Angelita (Anne Bancroft), a jovem órfã que baila sem parar, descalça, durante todo o filme, espicaçando a imaginação erótica do herói.
A força simbólica desse plano – o seu poder de síntese fotogramatical – tem poucos rivais na já longa história do cinema, permitindo quiçá encontrar aqui elos de consanguinidade entre Dwan, Serguei M. Eisenstein e Pedro Costa. A rendição da arma é feita não tanto ao happy ending do protagonista, mas ao próprio poder maior do Cinema. São muitos os planos memoráveis que podemos encontrar num filme como Nosferatu: Phantom der Nacht (Nosferatu, o Fantasma da Noite, 1979) de Werner Herzog, porventura o mais bem sucedido remake de um clássico maior do cinema. O que salta do filme – especialmente na sua assombrosa cópia restaurada em blu-ray, disponibilizada no mercado pela mão da BFI – é a palidez de Klaus Kinski contra a paisagem mágica da Alemanha natal de Herzog. Embarcamos numa viagem repleta de doença e desejo por carne. É um filme tomado pela peste e tudo nele assombra – não há só “um plano”, mas muitos, ainda que Herzog fosse, nesta altura, um cineasta perfeitamente ciente daquilo que podia extrair de uma certa economia visual e dramática. O encantamento assustador e sensual concorre com a crua presença das coisas e dos corpos. E com a presença dos décors reais, a morada do Príncipe das Trevas, aquele castelo frio de chão firme mas rangente. Um documentarista feérico na paisagem esquecida, maravilhosa e danada de F. W. Murnau e de Caspar David Friedrich – talvez Nosferatu pudesse ser resumido assim. De qualquer modo, o que retive desta experiência foi o seguinte: o melhor documentário que vi sobre este nosso período estranho veio da ficção – porventura das mais fantasistas – desse cineasta viajante chamado Werner Herzog. “O longínquo” nunca esteve tão perto e “o perto” tão doente.
Luís Mendonça
Se colocarmos no motor de busca as palavras cinema + sexualidade + erotismo + nudez, vem por arrastão uma maioria de títulos pouco ou nada interessantes, da pobreza de imaginário da pornografia até aos inúmeros casos ousados e datados da história da sétima arte. Sleeping Beauty (Beleza Oculta, 2011) é uma excepção que confirma esta regra. O filme da australiana Julia Leigh é elíptico e abstracto e mostra-nos o dia-a-dia de uma estudante universitária que não dá sinais de se envolver emocionalmente com as situações da sua vida, desde a relação que (não) tem com as pessoas com quem divide o apartamento, ao interesse que (não) manifesta pelas aulas, passando pelo (não) investimento que coloca nos pequenos trabalhos que faz para subsistir. Um dia responde a um anúncio e na entrevista de trabalho comunicam-lhe o que esperam dela, por troca com uma elevada remuneração. Primeiramente o trabalho de hospedeira em lingerie no decurso de festas muito privadas, e mais tarde que aceite ser sedada para que fique algumas horas adormecida nua num quarto, junto de homens que lhe podem fazer tudo excepto penetrá-la. Isto é-lhe dito a ela, como é sempre referido a cada um dos homens antes de entrar no quarto.
Penetração é a palavra-chave nesta obra de estreia da escritora Julia Leigh. Do mesmo modo que cada homem não está autorizado a penetrar Lucy (Emily Browning), também ao espectador não é dada a possibilidade de penetrar a mente da rapariga, cujas razões do seu oferecimento displicente à vida serão apenas afloradas. Por que razão aceita Lucy o trabalho? Não parece ser por dinheiro, até a vemos pegar fogo a uma das notas. Por curiosidade, por fantasia, para se sujeitar a um trabalho laboratorial, como outros em que a vemos ser também usada? A madame que com ela interage tem traços e um timbre de voz muito semelhantes aos de Charlotte Rampling. Vejo neste Sleeping Beauty, mesmo que sugestionado pela personagem da madame Clara (Rachael Blake) e pela jovem “jeune et jolie” que faz de bela adormecida, elementos do cinema do bom François Ozon, filmados com o modo algo distanciado e cerebral dos filmes de Michael Haneke. O erotismo aqui não é decorativo, obedece a um ritual minimalista e opaco que se estende ao resto do filme. Bela surpresa.
Ricardo Gross
Vi tantos filmes nesta quarentena. No mínimo um, a cada dia, mas por vezes dois, três ou quatro. Foram portanto mais de uma centena de longas-metragens, certamente (mais todas as metragens curtas, vistas entre um afazer e outro). Pensei, várias vezes, em apontar o rumo destes visionamentos erráticos, feitos quase sempre em casal, pelo que guiados a quatro mãos. Nunca o fiz (do mesmo modo que raramente tiro fotografia em passeios). Prefiro deixar-me ir. Fica-me a memória difusa dos primeiros, a fronteira esbatida entre os filmes vistos antes e a partir do confinamento. Sem bilhete comprado, nem DVD emprateleirado, nem sequer ficheiro descarregado, o streaming parece favorecer o esquecimento. E se calhar esse é o cerne da questão: usar o cinema (essa janela de imagens e sons) para abrir o panorama de uma pequena habitação partilhada. As janelas mostram a vista, mas o cinema mostra a vida… como ele era (e cedo voltará a ser). Os filmes que mais me tocaram – e isso diz muito da minha cinefilia – foram dois documentários sobre… cinema. Um, a curta-metragem de André S. Labarthe, disponível no Henri de La Cinémathèque française, intitulada La Photo (2014), sobre uma fotografia (esperto!) onde Rossellini, Langlois e Jean Renoir olham a câmara em pose convivial. O outro, a longa-metragem de Mark Cousins de seu nome A Story of Children and Film (2013) – outro título auto-explicativo.
Aquilo que me surpreendeu e me emocionou em cada um dos títulos não foi, certamente, o seu formalismo – os seus enquadramentos, os seus raccords, a sua mise en scène, a sua estrutura narrativa –, que é, em ambos os casos, acima de qualquer outra coisa, funcional (até quando não é ligeiramente tosco). O que emociona são os olhares. Os dois filmes, cada um à sua maneira (as múltiplas entrevistas, muito curtas e sincopadas de Labarthe, a narração omnipresente, com forte sotaque de Belfast, de Cousins), têm a capacidade de me deixar ver pelos olhos de outrem. Ver coisas que eu vi, por mim, e outra que eu nunca veria sem ajuda. E o resultado desta inter-subjectividade pedagógica traduz-se, agora sim (e mais afirmativamente), numa expansão do mundo, num alargamento dos pontos de vista (como se uma nova janela se abrisse dentro de uma janela já aberta). O que comove, até às lágrimas, em cada um destes filmes, é ser autorizado a ver através de olhos mais sábios que os meus e, também, mais doces que os meus: essa brutal lição de humildade que se dissolve na aprendizagem e me encanta na sua bondade. E depois, claro, a suavidade com que me conduzem (os olhos, o espírito) por uma imagem ou por um mar de imagens, e a segurança de me sentir acompanhado nesse trajecto. Guiado pela mão, com Labarthe eu vou…
Ricardo Vieira Lisboa
Numa Argentina anónima e distópica, onde paranóia, repressão e complexos de perseguição são absolutamente palpáveis, Invasión (1969) retrata um grupo dissidente que procura travar, pela força das armas, a invasão do país por uma potência estrangeira, esquiva na sua origem geográfica e incógnita nas suas intenções humanas e políticas. Perante a displicência dos cidadãos face às actividades dos resistentes – “por quê morrer por gente que não se sabe defender?”, desabafa Herrera, um dos protagonistas –, estes “defensores de soberania” calcorreiam os quatro cantos do país (literalmente, aliás, uma vez que a acção pormenoriza fronteiras e cidades com nomes fictícios) num esforço que se revelará cru e fatal, mas nunca inglório. A exclamação “Agora começa a resistência”, que assinala o clímax do filme, converter-se-á não só na derradeira palavra de ordem de Invasión, mas sobretudo no sumário de uma película vanguardista, politicamente activa e, no seu formalismo, de superlativa execução.
Não obstante a particularidade de o argumento ter sido co-autorado por Jorge Luis Borges – uma das raras incursões do escritor argentino pelo cinema, tendo colaborado novamente com Hugo Santiago em Les autres (1974) –, Invasión só fugazmente reveste-se de uma lógica “borgesiana”. O verdadeiro poder semiótico deste título reside, sobremodo, nos seus movimentos exclusivamente cinéticos: jump cuts e travellings plenos de expressão, uma simbólica sonoplastia de contornos assíncronos, a disposição e o figurino dos invasores, lembrando alguma da imagética que Godard imprimiu em Alphaville (1965), intensificam a sua natureza “alienígena” e ameaçadora… Obra de denúncia política, tanto implícita como declarada, à ditadura militar que governou a Argentina nas décadas de 60 e 70 (um regime que, supõe-se, furtou os negativos do filme de um laboratório fotoquímico de Buenos Aires), o “país imaginado” de Invasión adensa a universalidade dos riscos do autoritarismo que, independentemente da sua latitude ou história, pode medrar em qualquer nação. Uma preciosidade de filme, este, e de urgente redescoberta (não me foi possível encontrar registos se, por exemplo, alguma vez foi exibido em Portugal), nomeadamente à luz dos contextos políticos que aparentam ganhar tracção na América do Sul contemporânea.
Samuel Andrade