Os primeiros minutos dos filmes de Pablo Larraín começam por nos revelar bastante acerca dos seus personagens. Em El club (O Clube, 2015), por exemplo, vemos um homem na praia ao entardecer, a brincar com um cão, que persegue em movimento circular um pau que o homem segura e o faz buscar. O círculo que o cão inscreve na areia, à medida que corre atrás do tão almejado pedaço de madeira, parece funcionar como metáfora para a persistência (e existência) do homem neste lugar. É de culpa e penitência que se trata. O destino que Larraín lhe reserva está condensado nessa cena, no que está por vir. Na sua mais recente criação, Ema (2019), o realizador chileno volta a perscrutar a nossa atenção ainda antes do filme começar: ouvimos crepitar no escuro, vemos um semáforo de trânsito que arde, há uma mulher que segura um lança-chamas. Larraín, mais uma vez, coloca as cartas em cima da mesa para nos ler a sina: não esperem surpresas.
Ema é uma bailarina de reggaeton de Valparaíso (Chile) e vive com Gastón, coreógrafo da troupe da qual faz parte. O casal atravessa um período de rutura, mas não é de agora. Sabemos que adotaram uma criança de oito anos, um órfão colombiano, Polo, mas um ano depois Ema decidiu “devolvê-lo” após este ter incendiado a casa e, consequentemente, ter queimado parte do rosto da tia. Este é o problema do filme e até aqui ainda não tivemos tempo suficiente para reagir. Ema também não. Polo faz-lhe falta. Reconsidera e procura a assistente social que muito sucintamente lhe diz que a criança já não é sua, não é seu filho, e que não há mais nada a fazer, ele está com outra família, uma que o ama verdadeiramente. Isto é combustível para Ema. Daqui para a frente estamos em guerra: no seio do casal, na dança, no trabalho, no grupo de amigas, na rua, no sexo. Ema vive condicionada pela infertilidade de Gastón e na incapacidade de Polo a reconhecer como mãe.
Sai-se amargo, mas no ha passado nada, pois Ema é o retrato de uma mulher em chamas que queremos ver devorar tudo (e todos) e é com esse retrato que devemos ficar.
Ema é o primeiro filme no qual Larraín não está a lidar diretamente com um assunto histórico ou biográfico (a ditadura chilena, Pablo Neruda, ou Jackie Kennedy). O seu alvo aqui é a juventude chilena de hoje, aquela que se quer libertar das amarras sociais e políticas que assolam o país. Está a falar sobre os jovens que se querem manifestar e concretizar os seus desejos, os que anseiam por um futuro melhor, que querem redefinir os termos e categorias da família, do género e da igualdade. Portanto, em Ema, Larraín está a lidar com o aqui e agora, é o presente que lhe interessa. É através da música, mas sobretudo da dança, que o filme no seu jeito musical mostra o pulsar das ruas e quem é Ema, como vemos na primeira manifestação de uma criação de Gastón: uma estrela azul fria, que vai ficando cada vez mais um vermelho quente, à medida que a performance avança, para no final engolir os bailarinos na sua intensidade, enquanto os seus corpos, ao ritmo da música, abanam como chamas. Ema é o centro desta La danse matisseana, a estrela solar que vive pela dança. Todos os outros orbitam à sua volta. O reggaeton liberta-a. Luta com o corpo, cospe fogo, pratica da vingança com as suas amigas, despe-se da toxicidade arreigada de Gastón. Serve única e exclusivamente a sua própria agenda e prazer.
As personagens de Larraín foram sempre ambivalentes, figuras intelectualmente complexas. Percebíamos as razões que as levavam a agir de determinada forma, sendo que muitas das vezes éramos confrontados com os seus crimes, os seus pecados, ainda que nunca nos fosse possível apontar o dedo moralista. Não podíamos. Mas hoje, em Ema, estamos perante um cineasta que parece ter perdido o fulgor de outros tempos ao tentar ser apenas um provocateur.
É certo que Ema é um filme vertiginoso, mas é também na chamada final para o consciente que percebemos a obra que ameaçava ser e que se ficou apenas por isso: uma ameaça. O comentário final de Larraín – aquele para o qual nos tinha alertado no inicio com as cartas em cima da mesa – desilude, não pela sua tentativa de reinventar as relações familiares, o amor, o sexo, a maternidade, mas por todo o outro filme que está antes, orgásmico, que parece evidenciar uma forma e uma liberdade maior no pensamento que se permite a escorrer, através da música e da dança, sobre o Chile hoje.
Sai-se amargo, mas no ha passado nada, pois Ema é o retrato de uma mulher em chamas que queremos ver devorar tudo (e todos) e é com esse retrato que devemos ficar.
Ema estará disponível a partir de dia 28 na plataforma de VOD nacional, Filmin.