De há uns tempos para cá, tem sido assim: recebemos a notícia da morte de alguém famoso, actor, actriz, realizador ou realizadora que muito gostamos, através de um enxame de partilhas nas redes sociais. A notícia da morte ecoa no ciberespaço, pedindo por uma reacção. De espanto, de choque, de consternação, de solidariedade. Fora as mensagens algo automáticas ou mais circunstanciais, deparamo-nos com tributos de outra natureza, mais íntima, quase em registo confessional. No Facebook, antes de escrevermos o que quer que seja, já somos visados pela pergunta: “Em que estás a pensar?” Naquele dia de Abril, todos pensávamos no quão cedo e abruptamente desapareceu um dos actores mais brilhantes da sua geração. Mas se eu só podia falar de Filipe Duarte (1973-2020), os outros podiam – e preferiam – falar do “Pipo”. Descobri nesse momento que havia dois nomes que se confundiam muito entre si, mas que não representavam necessariamente o mesmo universo de ideias e sentimentos.
Havia o actor que os cinéfilos da sala escura forçosamente conheciam. E esse actor agigantava-se no grande ecrã através da sua presença, uma que, sensivelmente desde A Costa dos Murmúrios (2004), encarei com respeito e uma crescente admiração. O actor e as múltiplas personagens que encarnou pareciam falar uma linguagem parecida: a de um torturado silêncio, por um lado, flanqueado por um olhar terno e vulnerável (belo), por outro. Mas o Filipe Duarte do grande ecrã era uma fonte de força, ele dava-nos aquela certeza difícil de pôr em palavras, uma espécie de segurança no mundo gerado por cada filme que advinha de uma minúscula mas importante exclamação que ouvia dentro de mim sempre que ele aparecia e, simplesmente, olhava ou dizia uma fala: “Aqui está um actor de cinema a sério!”
Havia o actor a sério que interpretava personagens sérias, as tais que viviam no limiar da sociedade ou, torturadas, no limiar da sua vida interior e invisível. E havia, depois, o “Pipo”. O “Pipo” nasceu para mim naquele dia de Abril e tudo aconteceu no meu feed de Facebook. Foi também por causa do “Pipo” que cresceu em mim a vontade de escrever este texto, recolhendo testemunhos, memórias e reflexões oriundas de pessoas que, como eu, só conheciam o Filipe Duarte – ia escrever “conheciam de fora”, “deste lado”, mas não me pareceu justo, porque no cinema só há um lugar e este é comum, o ecrã – e de pessoas a quem foi dada a grata providência de terem privado com o “Pipo”. Comparando o Filipe Duarte com o “Pipo”, alimentava a ilusão de encontrar caminhos entre um e outro – todos desejamos que o ecrã seja como essa superfície que nos revela e renova o interesse na ciência da vida, aquela que, “do lado de cá”, nos parece tão estranha e inacessível.
Luís Filipe Rocha trabalhou duas vezes com Filipe Duarte no papel de realizador. Entre A Outra Margem (2007) e Cinzento e Negro (2015), distam os anos do amadurecimento deste actor. São dois papéis que o próprio Filipe Rocha caracteriza da seguinte forma:
Em qualquer deles, o Filipe soube encontrar dentro de si os caminhos de verdade emocional e expressiva que lhe permitiram criar duas personagens que, humanamente, nada têm a ver uma com a outra.
Luís Filipe Rocha, em correspondência por correio electrónico, Maio de 2020
O realizador sublinha, nesta nossa correspondência, o advérbio de modo humanamente. Ora, se aqui podemos acompanhar o sentimento do realizador e afiançar essa profundidade humana – que é particularmente expressiva na sua “máscara” de travesti em A Outra Margem (2007) -, a partir do momento em que Filipe Rocha nos fala do homem ou da pessoa aguardamos por uma revelação, pela confirmação de que Filipe era como “Pipo” ou, pelo contrário, pela verificação de que não o era de todo.
O Filipe Duarte não era apenas um excelente actor; como todos nós, não era um ser humano isento de defeitos, mas, ao contrário de muitos de nós, era um ser excepcional, um homem íntegro, solidário, apaixonado e profundamente humano.
Luís Filipe Rocha, idem
Falo com uma pessoa amiga, a realizadora Margarida Leitão, e esta diz-me que Luís Filipe Rocha era como um pai para Filipe Duarte. Esta afirmação podia pertencer a uma cinéfila, mas na realidade pertence a alguém que também trabalhou de perto e privou com o actor. Eu, como cinéfilo, podia ter dito algo parecido, porque não me esqueço daquela poderosa cena final de Entre os Dedos (2008), filme realizado por Tiago Guedes e Frederico Serra que juntou no mesmo elenco Filipe Duarte e o próprio Luís Filipe Rocha.
Nesse filme, o realizador continua a dirigir o actor, mas agora fá-lo também ele “mascarado”, in character. Na realidade, naquele mundo que ganha forma e se (des)organiza no ecrã, Luís Filipe Rocha fazia de pai e Filipe Duarte de seu filho. A relação era tensa, turbulenta, aparentemente inconciliável. Mas é aqui, nesta equação sentimental de difícil resolução, que entra uma das sequências mais marcantes do cinema português: a luta final entre esses dois homens. O corpo do pai dominando o corpo do filho, este último grita, esbraceja, mas o que conta é que a sua revolta vai amainando e o que era luta torna-se um longo abraço entre homens – momento quase fordiano que põe em evidência, sem palavras muito discerníveis, no peso dos corpos, digamos assim, a importância indizível dessa palavra: “pai”.
Como actor e como homem, o Filipe era um ser persistente e determinado: por sugestão dele actuei como seu pai no filme Entre os Dedos, dos meus colegas Tiago Guedes e Frederico Serra. A cena da nossa luta/abraço, quase no final do filme, retrata melhor do que as minhas frouxas palavras a nossa relação humana e profissional.
Luís Filipe Rocha, idem
O walshiano Paulo Cunha tem muita razão quando invoca a tradição neo-realista. O filme de Tiago Guedes e Frederico Serra está carregado desse pathos que podemos associar a realizadores como Vittorio De Sica ou Luchino Visconti. Perguntei ao Paulo qual dos filmes com Filipe Duarte que mais o marcara e, na sua resposta, encontramos pistas sobre uma certa capacidade de síntese, posta à nu no olhar e presença deste actor.
[A]quele operário desempregado assentou para sempre como uma segunda pele ao Filipe Duarte, e foi o ponto de partida para o imaginar a interpretar outras personagens neo-realistas icónicas, como Rocco Parondi, Antonio Ricci, Natale Pilon, Giorgio Manfredi (aka Luigi Ferraris) ou o nosso “Tonho” Manata.
Paulo Cunha, em correspondência por correio electrónico, Maio de 2020
Margarida Cardoso, realizadora de A Costa dos Murmúrios (2004), fala da experiência que teve com Filipe Duarte face ao desafio de, em equipa, conseguirem pôr no ecrã uma personagem tão complexa e delicada como o alferes Luís Galex. Nas palavras da própria, este era “um homem que corta cabeças e ‘atira ao olho do cu das galinhas'”. No olhar, Margarida Cardoso encontrou a expressão de um grande actor.
No último plano em que vemos o alferes, ele está barbeado, penteado, como uma farda limpa, olha para sua mulher (Beatriz Batarda) e diz-lhe: “Vou sair. Arranja-te que eu já te venho buscar”. Lembro-me de o Filipe me perguntar se o personagem sabia que não iria voltar. Eu disse-lhe que também não sabia, pois qualquer uma das versões sobre o que se passa no final do filme poderiam ser verdadeiras, ou não… E o Filipe fez-me o olhar mais incrivelmente ambíguo e triste que eu já vi. E eu percebi que era claro que alferes nunca iria voltar, pois mesmo que voltasse em vida, todo o seu ser já se tinha dissipado algures na violência da guerra. E só um grande ator consegue fazer coisas assim.
Margarida Cardoso, em correspondência por correio electrónico, Maio de 2020
Temos falado aqui de um homem e de um actor, para concluirmos, eventualmente, que o actor é o homem ou que o homem é o actor. Essa potência do olhar e a presença máscula são motores para o retrato, táctil e vibrante, que outro “camarada espectador” me fez do actor. O walshiano Ricardo Gross responde assim à pergunta “como caracterizarias o actor Filipe Duarte?”:
Tinha uma intensidade calma, um olhar penetrante e uns olhos belíssimos que pareciam trazer rímel de nascença. A voz é inconfundível e continua a entrar-nos pela casa, nos intervalos para a publicidade, gerando o desconforto de sentirmos a presença viva de alguém que na realidade nos deixou. A beleza natural permitia esticar nele a corda da masculinidade até zonas em que nos apresentamos vulneráveis. Filipe Duarte não mostrava esforço para ser o centro das atenções, mas tinha aquilo a que chamamos magnetismo e isso atrai a câmara de filmar mais do que qualquer outro atributo. E depois sorria com a maior das naturalidades, coisa mais difícil não há.
Ricardo Gross, em correspondência por correio electrónico, Maio de 2020
Ricardo Gross refere como filmes favoritos com Filipe Duarte quatro obras do cinema português que atestam a versatilidade deste actor que era conhecido por ser sólido e confiável – já vamos voltar a estas palavras. Elege A Vida Invisível (2013) de Vítor Gonçalves como eventualmente o seu filme mais importante – obra “delicada, fantasmagórica, suportada pela figura deste actor”, diz-nos. Nomeia ainda o mais recente sucesso popular do cinema nacional, Variações (2019) de João Maia, encontrando aqui a prova de que Filipe Duarte não conseguia ser secundário mesmo quando tinha menos tempo de filme – “uma figura de quase secundário, mas tão principal”. Gross não se esquece ainda – apetece escrever “inevitavelmente” – de dois papéis de Filipe Duarte em filmes de Luís Filipe Rocha e Margarida Cardoso, o inspector da polícia de Cinzento e Negro e o alferes – “a primeira vez que o vi com um bigode que felizmente regressou noutros filmes”, nota Gross – de A Costa dos Murmúrios.
No cinema português, Filipe Duarte estava por todo o lado, oferecendo o resultado generoso do seu trabalho, da sua presença, do seu olhar e (pontualmente) do seu bigode. Margarida Cardoso desabafa na nossa conversa que gostaria de “ter tido a oportunidade de trabalhar mais com ele e de o ter conhecido melhor”. Numa fase ainda recuada da sua carreira, a realizadora pôde, ainda assim, apreciar a discrição e o lado humano do “Pipo” – o mesmo lado humano que comoveu Luís Filipe Rocha?
E havia também o amor pelos animais e pela natureza, o sentido de humor, e uma espécie de qualidade que se define bem numa palavra em inglês: “reliable”.
O meu pai, um velho piloto militar que cumpriu 13 anos de guerra, ensinou-me uma forma muito pragmática de olhar os outros – pode ser um pouco cruel mas resulta. Segundo ele as pessoas dividem-se entre aquelas com quem “iríamos à guerra” numa missão perigosa, e aquelas com quem “não iríamos à guerra”.
E o Filipe era definitivamente uma pessoa com quem eu “iria à guerra”. E julgo que não serei a única a pensar assim.
Margarida Cardoso, em correspondência por correio electrónico, Maio de 2020
Não sei se Filipe Duarte iria à guerra connosco ou nós com ele, mas da grande caçada que é o mundo imaginário do cinema este homem trouxe-nos algumas das mais vistosas peças da arte de contar histórias recorrendo a palavras incisivas, sorrisos discretos, um olhar belíssimo, um bigode eloquente, enfim, uma presença que não morre.
A todos os que sentem de perto o desaparecimento do “Pipo”, os nossos sentimentos.