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“Il Decameron”: atrofia genital e trombose mental

De Carlos Natálio · Em 5 de Maio, 2020

Il Decameron (Decameron, 1971) começa com(o) uma porrada. Franco Citti que lá mais para a frente virará santo, de pau em punho a matar alguém. A vítima pede socorro mas em vão, mais uma pedrada na cabeça, em off, e os efeitos sonoros são pronunciados e dão vontade de rir. O homem é pesado, Citti pega, a custo, no “saco de batatas” e carrega-o pela cidade de Nápoles, ainda é madrugada, as ruas esconsas iluminadas por velas, mas o dia já raia. Ouvem-se os grilos, a banda sonora da gente, e a voz de um homem cantando ecoa pelos vales. Citti sobe ao cimo de um monte e deita o “saco de batatas” cá para baixo. Depois do esforço, cospe. Será esse o mesmo cuspo pelo qual mais tarde procurará perdão? Num dos episódios, o da sua santificação, a sua personagem, Ciappelletto, pede perdão ao padre por ter cuspido na igreja. Será esse também o mesmo cuspo do miúdo que serra as tábuas da retrete que vai fazer Ninetto cair na merda?

Mais tarde, dirão os estudiosos, Pasolini fará, antes de se despedir deste mundo, o espectador comer merda, em Saló (Salò ou Os 120 Dias de Sodoma, 1976). Agora trata-se apenas de uma mera apresentação à mesma, e aos jactos e trajectos de uma vida ainda a salvo das moedas e do comércio. É verdade que aqui já há planos mais ou menos astuciosos de roubo e cobiça: fingem-se laços de parentesco, entra-se numa tumba para roubar anéis. Mas o que a todos motiva é a carne, o erotismo que veste as peles do pecado da luxúria, assim como as pilas têm nome de rouxinol.

Decameron, como de resto quase toda a opus pasoliniana, é um tratado sobre os rostos em todo o seu pormenor e esplendor. O esplendor do contorno irregular, dos dentes apodrecidos, das gengivas disformes, uma geografia afectiva que não conhece limites de boa forma e “boa mercadoria”.

Mas a questão do erotismo sempre foi controversa em Pasolini. Nesse conto em que a menina dorme na varanda para melhor poder descansar ao som da noite e do rouxinol, o italiano tudo encena como uma micro cena de uma opera bufa. Pai e mãe preferem assegurar o futuro da filha (pois o rapazinho até é rico) do que falar de desonras e porcalhices feitas nas suas costas. Pasolini fecha o momento com os pais da rapariga, satisfeitos, a saírem do leito improvisado, fechando as cortinas atrás de si, como se de um palco se tratasse. Mas o que há para ver, quando tudo está desnudado à boca desse palco?

O sexo não é o negócio do que há para ver, uma vez que Pasolini é um revelador e a sua câmara uma enxada a revolver o solo dos dogmas. Não há mãos a medir: não há moral para ladrões nem para vítimas, pois estes trocam, sistematicamente, de papel na grande roda da vida; afinal o sexo não é pecado; afinal a ingenuidade é tratada como estado dentro de um vaso-tumba que nos tolhe a visão do que nos rodeia; os violadores rapidamente se santificam; os astutos fodem mais e melhor; as cabeças de amantes passados fazem medrar o manjericão e nem as freiras recusam o belo milagre do falo e da fala.

A revelação de Il Decameron não é sexual, pois esta apenas permite vislumbrar a superfície. E a superfície, diga-se fez (faz) escola. Na altura sucederam-se as continuações marotas de Decameron, tendo o italiano começado, ainda que inadvertidamente, um subgénero: o decamerótico. Filmes marotos que davam ao público italiano planos de mamas, de pilas e de rabos. E depois havia ainda na obra de Pasolini os risos, os gestos, a sátira. Como não lembrar o contraste entre os andares gingões e os sorrisos marotos de Nineto antes de serem tingidos pelo castanho-merda? Como não recordar a falsa confissão de Ciappelletto às portas da morte e a troca interminável, com um padre “choramingoso” dos “si!” e dos “no!” em que este pede encarecidamente para confessar o seu último “terrível” pecado? Ou a transformação mágica de uma jovem mulher em égua de montar?

Tudo foi muito escandaloso para se evitar enfrentar o que Pasolini –  nos seus planos frontais, com o rosto cavado, olhar profundo e indicial, como discípulo de Giotto a conceber um fresco napolitano – nos parecia querer apontar. Uma liga da decência da altura, mais propriamente o “Comité Nacional para a Moralidade Pública” começou a perseguir o filme. Em Nápoles também se insurgiram contra os planos aproximados dos genitais, sobretudo pelo facto de surgirem enchumaçados e assim parecerem maiores do que a baguete do padeiro. E uma napolitana chamada Mirra Salvatore, pode ler-se no excelente Pasolini Requiem de Barth David Schwartz, escreveu mesmo esta delícia:

“Por causa das suas sequências obscenas, [Il Decameron] deve ser observado de perto pelas autoridades judiciais de Nápoles assim como o foi em outras cidades ao longo do sul, com o intuito do seu banimento imediato, sob pena dos seus espectadores, vinte e quatro horas após o seu visionamento, participarem em actos de coito e arriscarem a atrofia dos orgãos genitais, depois dos quais comecem a sofrer de problemas de circulação sanguínea e sintomas de desequilibro mental, e que possam mesmo alguns espectadores ser acometidos de tromboses mentais difíceis de curar.”

A resposta ao filme de Pasolini, que dizia que queria fazer uma pausa dos filmes sérios e divertir-se um pouco com a alegria e absurdos da vida, é bem esclarecedora das vinhetas de Boccacio. Algumas coisas deveriam permanecer obscuras, fora de campo, não realizáveis. Mas volto ao olhar do pintor que é o símbolo mais claro que podemos encontrar em Decameron. Ele capta com o olhar, câmara portátil, os pormenores da vida volátil do mercado, um homem enquadrado entre cachos de uvas, as malaguetas em exposição, os meninos que escorregam do telhado das barraquinhas de feira. Depois irá pintá-los, à sua maneira, depois irá filmá-los, à sua maneira. É essa vida que Pasolini revela, é esse o inviolável que está muito além das freiras de perna aberta ou dos pénis erectos.

Decameron, como de resto quase toda a opus pasoliniana, é um tratado sobre os rostos em todo o seu pormenor e esplendor. O esplendor do contorno irregular, dos dentes apodrecidos, das gengivas disformes, uma geografia afectiva que não conhece limites de boa forma e “boa mercadoria”. Decameron é a revelação dos sorrisos genuínos, dos olhares à espera da direcção de actores, dos falsos raccords, dos cortes abruptos da pincelada do quadro para o jardim. Em Decameron os jovens cantam na rua canções de outro tempo, os homens cavam a terra, os velhos desdentados contam contos e as mulheres gritam à janela deixando com que essa realidade seja revelada muito além do jacto da merda e do sémen.

Tal como as histórias que, sucedendo-se, começam e terminam sem aviso – Pasolini não quis separar as episódios com frisos narrativos – tal como num fresco temporal, Il Decameron é um sonho, uma obra que sempre que se concretiza perde parte do seu esplendor. Não é esse o desabafo, ou quem sabe o conselho com que Pasolini nos deixa no ultimo plano: “Perché realizzare un’opera quando è così bello sognarla solanto?”

Pode ver Il Decameron nesta edição de DVD lançada pela Leopardo Filmes.

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Carlos Natálio

«Keep reminding yourself of the way things are connected, of their relatedness. All things are implicated in one another and in sympathy with each other. This event is the consequence of some other one. Things push and pull on each other, and breathe together, and are one.» Marcus Aurelius

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