No início de Rubber (Pneu, 2010), o filme que colocou Quentin Dupieux no mapa da distribuição comercial e na rota dos grandes festivais de cinema (nomeadamente a Quinzena dos Realizadores, em Cannes, que se tornou um dos seus portos de abrigo), o realizador abria o filme com um discurso que funcionava, de facto, como manifesto sobre a sua atitude perante o cinema: a ode ao no reason [sem razão/sem motivo]. Nesse discurso, antecedido por uma espécie de Café Müller versão redneck com um carro da polícia no meio do deserto, o tenente referia filmes como E.T. (O Extra-Terrestre, 1982) de Steven Spielberg, Love Story (História de Amor, 1970) de Arthur Miller, JFK (1991) de Oliver Stone, The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974) de Tobe Hooper ou The Pianist (O Pianista, 2002) de Roman Polanski para reforçar o argumento de que no cinema, por vezes, as coisas acontecem só porque sim, e que isso não destrói a suspensão de descrença [a tradução portuguesa deixa muito a desejar], pelo contrário, reforça-a. Se esse era o grande “argumento” de Dupieux, nos seus primeiros filmes, aproximando-o de abordagens (mais ou menos) aleatórias da construção narrativa presente em filmes de Luis Buñuel ou David Lynch, o seu mais recente título [agora disponível nos videoclubes das televisões e na plataforma de streaming Filmin], Le daim (100% Camurça, 2019), prolonga-a mas de uma perspectiva mais adulta e soturna.

Nos filmes que lhe conheço (e já são alguns), este é o primeiro integralmente rodado no seu país de origem e integralmente falado na sua língua mãe, o francês. Esta mudança da paisagem norte-americana, que caracterizava os filmes anteriores (ora o deserto à western, ora o subúrbio de Los Angeles), para os Pirineus franceses implica uma mudança de atitude perante o lugar (ainda que o realizador tente, a todo o custo, reduzir os marcadores históricos e sociais do mesmo). Essa mudança tem que ver com a dimensão icónica das paisagens americanas, dada a sua recorrência no cinema popular. Dupieux, a filmar nos Estados Unidos da América, é um realizador que se delicia a tirar partido de todo o peso cultural que se agarrou aqueles lugares. Daí que Nonfilm (2002), Rubber, Wrong (2012), Wrong Cops (2013) e Réalité (2014) sejam (mais ou menos) divertidos pastiches de subgéneros cinematográficos ou colecções de piscadelas de olho. A saber: o seu primeiro filme, Nonfilm, era, como o próprio descreveu, um filme “unwatchable”, a “essência do no reason“, que no fundo é o making-of da rodagem de um meta-filme sobre a rodagem de um making-of de um filme qualquer; Rubber homenageava o slasher – como o citado título de Hooper – em modo meta, com o espectador dentro do filme a observar e ser igualmente alvo do pneu assassino com puder telecinéticos; Wrong investia na completa aleatoriedade com um cheirinho a Charlie Kaufman; Wrong Cops era, como o título já anunciava, uma comédia de polícias incompetentes que, em formato série B semi-televisivo, procurava estabelecer pontos de contacto com o filme anterior, recuperando actores e personagens num possível “universo comum” de estupidez; e Réalité (o seu filme mais ousado, até ao momento – não necessariamente o melhor), uma matrioska de filmes dentro de rodagens dentro de filmes dentro doutras rodagens dentro doutros filmes que se poderia descrever como uma versão soalheira de INLAND EMPIRE (2006) ou Road to Nowhere (Sem Destino, 2010) de Monte Hellman.
Dos trolls da história do cinema, Quentin Dupieux era o mais infantil e logo o mais terno. Le daim marca um desejo de crescimento que torna tudo muito mais sombrio.
Talvez esse viesse sendo o aspecto mais tocante na obra de Quentin Dupieux, a sua insistência na dimensão solar. Apesar de todo o escarcéu pós-moderno, havia uma alegria gozona e auto-paródica em tudo o que o realizador vinha estreando. Em certa medida, dos trolls da história do cinema (Godard e Lynch à cabeça), este era o mais infantil e logo o mais terno. Le daim marca um desejo de crescimento que torna tudo muito mais sombrio (e lamento dizê-lo, aborrecido). É certo que aqui se re-encontram muitas das suas marcas auto-reflexivas, como seja o filme dentro do filme, o protagonista feito realizador, a confusão entre “a realidade do filme” e a “a realidade da rodagem”, a personagem da montadora que enverga o filme no final [uma espécie de vídeo-ensaísta que se divertiu a colocar o Pulp Fiction (1994) por ordem cronológica para perceber que assim o filme fica sem graça nenhuma – wink wink], etc. E, além disso, a figura do homem de meia idade completamente perdido no mundo re-surge aqui (à imagem de todos – todos! – os filmes anteriores) sem grandes mudanças significativas – a não ser a presença do actor, Jean Dujardin. O que difere é, no entanto, a necessidade de justificativo psicológico para a inconstância do protagonista. Isto é, Dupieux começa a despojar-se da radicalidade lúdica do seu no reason, caindo numa análise de vão de escada. Ao contrário do desmoronamento do personagem de Wrong, que era mais geracional do que pessoal, este Geroges é-nos apresentado, aos poucos, na ressaca de uma relacionamento recém terminado, servindo esse fundo como reason para a “fragmentação” de personalidade catalisada pelo casaco de camurça que compra nos primeiros momentos do filme.
Claro que há uma graça na forma como se anima aquela peça de vestuário com uma sobriedade de recursos (que é muito característica de Dupieux – alguns zooms, alguns acordes e uma voice over que na verdade é só uma voz off) recusando assim vistosos efeitos especiais. E o filme (dentro do filme) diarístico, à la Alain Cavalier em desvario serial killer, é dono de um humor que tem o condão de ser simultaneamente subtil e gore – o que não é para todos. Há ainda o divertido plano (resumido no gag que abre o filme) de destruir todos os casacos do mundo que, simetricamente, dialoga com o desenlace, cuja punch line só se revela traduzindo as falas para inglês. (O filme foi originalmente escrito e pensado para o território americano, e se no processo de transladação territorial se foi modificando, esse é possivelmente um dos vestígios da sua origem linguística – que encontra redobrada graça na sua manutenção em francês). Tudo isto para dizer que Le daim é o mais subtil e delicado dos filmes de Quentin Dupieux, o que, no fundo, não quer dizer muito, dado o desvario dos seus filmes anteriores. E se não posso deixar de saudar a redescoberta de um estilo próprio (depois de Réalité ter cristalizado a anterior proposta estética do realizador), não deixo de sentir frustração pelo qualidade morna de tudo o que Dupieux aqui apresenta. Chamem-me burgesso, mas entre esta saborosa canja e as anteriores sopas da pedra enfarta-brutos, o meu palato não tem dúvidas.