Les amours d’Astrée et de Céladon (Os amores de Astrea e Celadon, 2007), último filme de Éric Rohmer, toma emprestado do romance seiscentista de Honoré d’Urfé L’Astrée a história de dois jovens pastores enamorados e temporariamente desentendidos. A desavença e a sua resolução são motivo de interesse maior – como noutros filmes de Rohmer, o amor, e a pergunta sobre o que pode ele ser, dão azo a muita conversa.

Astrée (Stéphanie Crayencour) e Céladon (Andy Gillet) cruzam-se pela primeira vez, quase crianças, numa festa dedicada à deusa Vénus onde se encena o julgamento de Páris. Céladon, de feições delicadas, disfarça-se de rapariga para poder entrar na brincadeira, à qual só o sexo feminino tem acesso. Faz-se passar por mulher para conseguir o papel de um rapaz, não fosse esta uma novela pastoril. Quando a muito bela Astrée, representando Vénus, põe pela primeira vez os olhos nele é uma rapariga aquilo que vê.
Mas mesmo que no universo delicado e bucólico que os dois jovens habitam seja a alma e não o corpo que ama, Rohmer não abandona a matéria e de Les amours d’Astrée et de Céladon, ponto importante na constelação dos outros amores do realizador, cabe dizer, como João Bénard da Costa disse a propósito dele, “há muito tempo que não via um filme tão belo”.
Esta breve nota sobre um acontecimento do passado, introduzida no filme pela boca do druida Adamas, é recuperada no reencontro final dos dois enamorados. Astrée, julgando Céladon morto, é atraída por ele sem o saber, e entrega-se à afeição de uma andrógina Alexis, num culminar bem-sucedido de enganos e desentendimentos, que além de conveniente em termos narrativos, traz consigo implicações importantes.
Pensemos no diálogo entre o inconstante Hylas e o leal Lycidas sobre a natureza do amor, diálogo também ele cheio de ecos de uma conversa muito anterior – a de Sócrates e Diotima, n’ O Banquete de Platão. Lycidas sugere que o amor nada deseja que não ele próprio, porque em si mesmo encontra o seu contentamento. Segundo Lycidas, o amador procura algo que é já parte de si, aquilo que já tem. O objecto amado, bem como o amor, são apenas um instrumento – o próprio impulso do ser apaixonado nada mais é, de acordo com as admoestações de Lycidas a Hylas, do que um movimento em busca de uma unidade perdida (lembre-se Platão). Por isso Lycidas, num eco do poema de Camões, afirma que se transforma o amador na coisa amada, que o princípio do desejo é o fim do desejo, complicando a simplificação de Galathée sobre aquele que vê primeiro ser o primeiro a amar, isto porque o sujeito do amor, dentro da lógica do neo-platonismo é também alvo do amor, simbolizado pelas setas de Cupido.
Da possibilidade de “amando-a me transformar nela” se ri o muito pouco socrático Hylas, para quem o amor é o desejo daquilo que não temos e que pergunta porque não usa então Lycidas, amador, as roupas de Phillis, a amada. Hylas de tudo vê a superfície. O amor é para si o desejo dos corpos, à semelhança da ninfa Galathée, que se deslumbra com o belo Céladon quando o encontra inanimado na margem do rio. Também ela, excessivamente concentrada na matéria, tudo interpreta de modo literal. Do vaticínio do druida, que num espelho lhe mostrou o lugar onde encontraria um objecto inestimável, deduz que é Céladon o depositário desse valor. Como a mais sensata, e de melhor visão, Léonide lhe lembra, aquilo para que o druida talvez estivesse a apontar era sim o lugar onde encontram Céladon e não o pastor ele mesmo.
Este jogo de desvios é constante – a literal transformação do amador na coisa amada materializa-se no disfarce de Céladon como Alexis ou até no retrato de Astrée que Céladon pinta – substituto de uma imagem mais perfeita, graças ao qual o reencontro dos dois será possível. Mais do que mentiras, falsas formas, esses pedaços de matéria são efectivamente veículos para formas mais originais. A possibilidade de o amor elevar a alma impregna todo o filme, como lembram os quadros que Céladon vê no quarto onde as ninfas o acolhem (Saturne vaincu par l’Amour e Psyché et l’amour, ambos do francês Simon Vouet). Mas mesmo que no universo delicado e bucólico que os dois jovens habitam seja a alma e não o corpo que ama, Rohmer não abandona a matéria e de Les amours d’Astrée et de Céladon, ponto importante na constelação dos outros amores do realizador, cabe dizer, como João Bénard da Costa disse a propósito dele, “há muito tempo que não via um filme tão belo”.