John Badham confessa que o que mais gosta ao rever Saturday Night Fever (Febre de Sábado à Noite, 1977) é da presença da cidade, diurna e nocturna, e identifica a sequência mais prazerosa da rodagem: John Travolta (Tony) e Karen Lynn Gorney (Stephanie), o seu novo par, caminham num plano sequência extenso enquanto conversam, até que o enquadramento os encontra sentados numa mesa de um restaurante e então vêmo-los, ainda do ponto de vista do exterior, banhados pela cidade reflectida, espalhada pelo interior do compartimento. No diálogo, Stephanie descreve um outro mundo para lá da ponte (de Brooklyn, já lá vamos), a Manhattan dos lugares e das pessoas de sonho, ao que Tony responde que Bay Ridge (subúrbio de classe operária) não é o pior sítio de Brooklyn, mas como ela continua a cavar o fosso, ele atira – “snobs instead of slobs?” –, qualquer coisa como – “snobes em vez de paspalhos?” – , um trocadilho que usa o diminutivo de lagosta e que o snobismo da parceira não alcança. A conversa encaminha-se para o mais recente filme que Stephanie viu – Romeu e Julieta – em que ela identifica o realizador Franco Zeffirelli, e Tony responde que leu a história no liceu, é do Shakespeare, ao que ela responde, não, é do Zeffirelli. Curioso confronto de culturas, ela bebe chá e ele café, se os dois procuram impressionar o parceiro, ele revela-se mais autêntico, ao passo que ela procura aparentar sofisticação, na descrição de ambientes e comportamentos. Dialéctica de lugares, em que Travolta resiste na assumpção da necessidade de fuga e de outro futuro, mas também guerra dos sexos, uma das boutades do cineasta. Badham escolheu muito bem a cena.
O filme, rodado nos locais e longe dos estúdios, com o guarda-roupa adquirido em lojas do bairro, não esmoreceu com o tempo, na sua condição de registo documental de um lugar e de uma época, sustido, também, no trilho do disco-sound dos Bee Gees. Numa das primeiras sequências, o tema Stayin’ Alive (que se ouvia na rodagem, para Travolta acertar a passada), conduz a câmara ao longo de montras e passeios, com figurantes que partilhavam a indumentária de Tony (as calças boca de sino e tudo o mais) e onde se adivinha um fora de campo, ao que dizem as crónicas, pejado de centenas de raparigas que desde a madrugada se acotovelavam para ver o protagonista, que depois de passagens pela Broadway e pela televisão, tinha saído com grande notoriedade de Carrie (1976) de Brian de Palma.
O jantar de sábado, que precede a saída para o clube de dança, estabelece a rigidez de uma família italo-americano católica, com um pai desempregado e menorizado por essa condição, que sobrevive com o salário de Tony e que reserva algum alento no percurso de Frank Jr., irmão de Tony, que estuda no seminário. O choque geracional, a alteração de costumes, preenche o quotidiano da família como uma panela de pressão, que conhecerá o culminar quando Frank Jr. regressa e informa a família que desistiu do sacerdócio. Esta deserção deixa os pais e a avó de Tony acabrunhados, receosos de terem perdido a ligação com Deus, mas Frank Jr., numa conversa com o irmão, mostra-se o mais clarividente ao afirmar que descobriu que a sua vida correspondia a uma fantasia dos pais. Badham sinaliza, em pelo menos duas sequências, a procura de libertação do catolicismo por parte da geração de Tony, quando enquadra Frank Jr. já com a batina parcialmente despida e com um poster de Farrah Fawcett em fato de banho no fundo do plano para, já depois da partida de Frank Jr., colocar Tony a simular um enforcamento com a batina que o irmão lhe deixara.
Nos ensaios, Annette (Donna Pescow), que ambiciona uma relação estável com Tony, questiona se ele não está a exagerar no rigor dos movimentos, nas repetições, e diz-lhe que aquilo é só dançar. Tony responde: só dançar? Tal como na revisitação de Pablo Larraín e Alfredo Castro, a dança é uma libertação, do contexto social e familiar: o corpo, o indivíduo, solta-se para dançar. Já com a nova parceira, a Stephanie de Manhattan, o espectador é contaminado pelo êxtase, um fora de si que a dança constitui para o protagonista. “És tão bom na cama como és na pista de dança?” pergunta-lhe uma das raparigas com quem ele partilha a pista de dança no night club 2001 Odyssey. Se para os outros personagens, a dança constituiu uma recreação, que muitas vezes é o prelúdio do ritual do acasalamento, uma simetria entre dança e sexo que termina no banco de trás de um carro, para Tony dançar pode revelar mais intimidade do que o sexo, conforme Bahdam assinala ao mostrar-nos o protagonista enciumado quando encontra Stephanie a dançar com outro parceiro. A libertação de costumes dos setentas, é cercada por um conjunto de tensões, em que o catolicismo é mais uma vez a cápsula, pois se o sexo tem uma presença banal no quotidiano da juventude, uma gravidez continua a forçar o casamento, a determinar futuros, como ocorre com Bobby C. (notável fragilidade de Barry Miller), um dos amigos de Travolta, cujo destino trágico, que uma narrativa em paralelo ao filme vai prenunciando, participará da definição de fuga do protagonista. Tony Manero é, então, o rei do baile nas noites de sábado à noite, o protagonista daquele lugar, dominado por uma combinação de luzes e fumos na pista de dança, um artificio que as discotecas se encarregariam de mimetizar. Saturday Night Fever constitui-se num deambular entre construção e registo, com Badham a assumir uma procura de autenticidade, na escolha das discotecas e ao dispensar dançarinos profissionais, que pareciam demasiado dançarinos, e ao incluir os pares que frequentavam os clubes de dança; também Travolta dispensou um duplo dançarino, pois era decisivo mostrar que era o actor quem dançava, e por isso é enquadrado frequentemente dos pés à cabeça, um processo semelhante ao seguido, e exigido contratualmente, por Fred Astaire, nos musicais da MGM.
Se o Tony Manero de Larraín quebrava pelo corpo gasto de Alfredo Castro, em Saturday Night Fever os corpos são ainda robustos, encabeçados por um Travolta de pouco mais de 20 anos: Badham, nas cenas em que o protagonista prepara a saída de sábado à noite, exulta o corpo, ao mostrar Travolta em cuecas e em contrapicado e determina uma ligação entre corpo, cultura popular e cinema, ao colocar nos planos, numa troca de olhares com Travolta, o Pacino dos setentas, de Serpico (1973). Esta imposição do corpo, associada ao uso de linguagem imprópria, causou vários problemas a Badham, a quem retiraram o projecto seguinte, após um dos executivos de Hollywood ter visto a projecção previa à estreia. Além do uso do calão, há uma frequência de terminologias de carácter sexual (segundo Badham, foi a primeira vez que “blowjob” foi dialogado num filme mainstream), um ambiente realista também acentuado pela violência de lutas tribais (entre italianos e porto-riquenhos), por comportamentos misóginos (onde se inclui o protagonista), racistas e homofóbicos, que a realização sublinhou ao promover o improviso com a participação da população local.
Na primeira vez que vemos Travolta a atravessar a Ponte de Brooklyn, para auxiliar Stephanie nas mudanças para Manhattan, já se passaram cerca de 75 minutos, para lá de metade da metragem do filme. Mas a ponte cerca e pontua o filme desde o genérico inicial, num diálogo que questiona a ponte como passagem, para a apresentar como algo que afasta, até pela sua imponência, dois mundos que estão geograficamente contíguos: menos uma ponte e mais uma barragem. Badham confirma: a ponte é elegante em algumas perspetivas, mas também se revela uma ameaça quando enquadrada pela escuridão e por contrapicados, a ponte está ali como testemunha das ambições, mas também dos medos e das frustrações dos personagens. No regresso de Manhattan, após Tony ter testemunhado a relação mantida por Stephanie com outro homem, o par senta-se num banco de jardim com vista para a ponte. A luz mortiça do final do dia acentua o tom melancólico da cena, e Tony começa a descrever exaustivamente a ponte, a sua altura e extensão, o número de carros que a cruzam todos os anos, a quantidade de aço e betão albergados. Ele diz-lhe que costuma vir para ali para pensar, para sonhar acordado: a câmara encontra emoção no rosto do protagonista e a explanação termina com o relato da morte e sepultura de um homem durante a construção, o que faz a síntese da ponte como espaço contíguo de fábula e de tragédia.
Badham diz-nos que Travolta, ainda em início de carreira, revelou um entendimento muito claro do personagem e resolveu muitas das cenas ao apresentar-se mais como uma personalidade, que se interpreta a si próprio, do que como um actor, o que garantiu uma transmissão de sensibilidade e emoção genuínas, que nos vários cambiantes, incluindo os tons negativos do personagem, o liga progressivamente ao espectador. O realizador cita como exemplo a cena em que Tony recebe do irmão a noticia do abandono do seminário, mas também poderia referir-se à cena da ponte, que intensifica a multidimensionalidade da personagem, torna-o credível como o único capaz de estabelecer ligações com outros personagens, de revelar talento e sofisticação, a dança para lá de soltar o corpo vai libertá-lo do fatalismo e projectar a fuga, o futuro deixará de ser a loja de materiais com vista para as noites de sábado. Um acontecimento traumático, uma noite que esgota aquele mundo, e Travolta seguirá sozinho: nessa mesma noite, estará em Manhattan.