Nesta homenagem a esse gigante do cinema mundial, monsieur cinéma, chamado Michel Piccoli (1925-2020), vamos percorrer várias cinematografias (Godard, Varda, Oliveira, Farraldo e tanto Ferreri como Sautet a dobrar), do movimento deslizante de um argumentista ao sorriso bonacheirão de um velho seguro do seu passado. O caminho é longo e frutuoso, e nunca cessará de se renovar. Piccoli está morto?
Gigante Piccoli, completo actor, impossível de etiquetar (nada de monstro sagrado, que ele não gostava), um nobre monsieur cinéma, inteligente e delicado, a colar-se às personagens sem esforço, à sua medida, sempre irremediável. Capaz de uma plasticidade única, moldada para papéis de culto, e de culto foi o Paul Javal, no Le mépris (O Desprezo, 1963), de Godard, elevando-o ao reconhecimento e à visibilidade que não o largou mais.
Piccoli-Paul anda pelo filme como uma figura impressivamente marcante, desenhado e recortado em estilo, a dar a réplica à sua Camille, a bela BB. Piccoli a olhar para Godard, a “fazer dele”, à procura da imagem de uma personagem do Rio Bravo (1959) que representaria num filme de Resnais, (Godard propôs, e funcionou, um cowboy elegante e fantasticamente moderno). Ele e Fritz Lang, dizia, seriam um monstro de duas cabeças, os duplos de Godard. Um chapéu, um fato claro, a sua voz, a ruptura do desejo, uma toalha em toga, e sempre o incontornável estilo, a figura a inscrever-se no filme, a manter a tal cadência até ao fim, intocável entre os monstros (Godard, Bardot, Lang, e Jack Palance – este menos cúmplice); Cinecittà, Capri, apartamento, arrebatamentos… tudo em medida certa, trabalhada a partir do ‘’grau zero’’ de representação, como se sentia face ao génio de Godard. Piccoli-Paul passeia-se no Desprezo com irrepreensível charme, não imaginamos outro argumentista neste papel, a fazer frente a um fatal drama solar. E ele e Lang em Capri, tu cá tu lá com a Odisseia, e uma amizade para a vida. Piccoli parece estar sempre onde deve estar, no tom, na marcação, a encher a mise en scène, a andar, a deslizar pelo Desprezo, na sua ampla justeza, no “ângulo fechado do cinema”. Para BB brilhar, lá está Piccoli, a amar o seu corpo retalhado, a meter-se na banheira, a enquadrar-se à janela de uma casa-câmara… Bravo! Eterno merci, Piccoli, pela tua entrega e pela tua ‘’paixão louca e paciência eterna.’’ Tinhas a fórmula.
Carlota Gonçalves
Se a memória não me falha, a primeira vez que me “ancorei” no talento de Michel Piccoli foi em Belle de jour (A Bela de Dia, 1967); numa sala de cinema, esse contacto terá sido proporcionado, muito provavelmente, por Manoel de Oliveira, com Party (1996). Logo nessas primeiras experiências, a sua figura imponente – uma beauté du geste intimidadora, magnética, sedutora e, amiúde, de objectiva intensidade – converteu-se num sentimento que nunca cessei de associar a Piccoli, independentemente da sua presença jovem ou durante os seus anos de maturidade, de trabalhar com Godard, Oliveira ou Moretti, de ser protagonista ou secundário. Em suma, perdemos um dos maiores de sempre.
Estes predicados encontram-se inteiramente reunidos em Les créatures (1966, Páginas Íntimas) – um dos meus filmes favoritos de Agnès Varda, pelas prosaicas razões que a própria razão desconhece, e que destaco no presente in memoriam. Coadjuvado por Catherine Deneuve (a sua esposa silenciosa e traumatizada), Piccoli assume o corpo e a alma de um romancista que, na pequena localidade onde decidiu fixar residência, procura inspiração nas suas íntimas assombrações e fantasias, manipula sagazmente os residentes daquele vilarejo e, no final, subjuga-se a um surreal e hipnótico “jogo de xadrez humano”. Nesse equilíbrio de sensações e estados de espírito – muitas das vezes, no mesmo enquadramento –, observa-se tanto a fragilidade como a gravidade que a imagem de Michel Piccoli, essa mesma imagem que me fascinou desde os momentos iniciais da minha cinefilia, transportou durante toda a sua carreira.
Samuel Andrade
Escrever sobre Piccoli levou-me inevitavelmente a pensar sobre Marco Ferreri. São raras as simbioses entre actor-cineasta, ainda que este duo tenha representado o apogeu da carreira de ambos. E é certo que no harém masculino de Ferreri, Depardieu ou Mastroianni ocupam de igual modo um lugar particular, porém cada um personificou uma tipologia de homem branco a quem Ferreri diagnosticou uma determinada crise. Piccoli não foi a manifestação carnal e brutal de Depardieu (La dernière femme [A última Mulher], 1976), nem o maníaco burguês de Mastroianni (L’uomo Dei cinque palloni, 1965), ele foi a sofisticação aristocrática, o homem niilista por excelência que não deixa rasto. Este tipo de homem é o primeiro produto do capitalismo moderno (e contra ele), é aquele que serve de inspiração a diversos romances obscuros franceses sobre os meandros do crime enquanto forma de arte, onde talvez Huysmans tenha sido a expressão mais elevada e de quem Baudelaire escreveu um dia sobre a natureza aristocrática enquanto último clarão dos tempos.
E é claro o porquê de Piccoli nunca ter representado nenhum outro papel no cinema de Ferreri, porque Piccoli nunca foi sensual ou belo, ele foi antes o símbolo da elegância e sofisticação. Piccoli faz parte desses raros actores de presença discreta, que sem necessidade do espalhafato ou do artifício, irradiam uma presença absoluta. O papel mais evidente dessa natureza sóbria está sem dúvida em Dillinger è morto (Dillinger está Morto, 1969), onde a neurose nunca atinge as raias do histerismo ou do excesso – pelo contrário, à medida que o delírio aumenta, a sofisticação e o refinamento aumentam. Piccoli consegue domesticar a loucura sem que esta tenha um exterior, sem que perca a pose. Não é por acaso que invoco este still, onde Piccoli se deleita com um cheiro, tal como um esteta, e que poderia remeter para um outro papel e para um outro magnífico filme de Ferreri, La grande bouffe (A Grande Farra, 1973), onde irá desempenhar o papel de chef. Muito mais poderia ser dito sobre Piccoli, até porque exercício semelhante poderia ser feito com o cinema de Buñuel ou Sautet, onde foi presença regular e no qual também desempenhou sempre um papel muito particular, porém a todos esses papeis apenas posso afirmar a minha reiterada admiração.
Bernardo Vaz de Castro
No rosto de Michel Piccoli houve lugar para todas as personae. Por vezes um pouco canalha, um pouco amargurado, mais melancólico ou mais energético, sempre muito nonchalant. É um rosto por onde passou a história do cinema francês, cigarro na boca e mãos no volante, um rosto em que se adivinham inúmeras conversas interiores. Olhando para a riquíssima carreira de Michel Piccoli, não é tarefa fácil eleger um único título marcante. Hesitando entre a magnífica candura do seu Monsieur Dame em Les demoiselles de Rochefort (Donzelas de Rochefort, 1967) e o seu Max, que fotografa a Romy Schneider na banheira em Max et les ferrailleurs (O estranho caso do Inspector Max, 1971), a minha escolha acaba por recair sobre um outro Sautet, que no ano anterior havia já reunido os dois actores – Les choses de la vie (As Coisas da Vida, 1970).
Claude Sautet foi um realizador longo tempo desconsiderado por ser demasiado burguês, ocupado com os problemas das classes privilegiadas e não com os temas verdadeiramente importantes (sejam estes quais forem). Enfim, não será, certamente, um realizador doutrinário. E, na verdade, pouco acontece em Les choses de la vie – os compromissos, as discussões, as incertezas, a felicidade também. Até que se dá um acidente (uma sequência de um enorme virtuosismo) que, em cinco ou seis segundos, altera tudo. Subitamente, o tempo começa a escassear para essas coisas insignificantes. E ali ficamos nós, a ver o corpo de Michel Piccoli abandonado na relva, por entre as rubras papoilas, um pouco patético, enquanto vai partilhando connosco uma série de pensamentos e inquietações que soam ridículos – que até está ali bem confortável na relva, embora a manta que lhe colocaram em cima seja demasiado quente, que talvez tenha estragado o fato e que provavelmente o carro ficou com uma grande amolgadela. Tudo isto pareceria menos ridículo se as circunstâncias fossem outras, se o acidente que ocorreu não fosse grave, se aquela fosse apenas uma lista de chatices a resolver quando a vida voltasse ao seu ritmo normal. Afinal, aquilo que o ocupa são as minudências do quotidiano ou, se quisermos, as coisas da vida. E a morte não é um acontecimento da vida. Apetece regressar ao início do filme, nesse plano em marcha-atrás e eternamente morar na cena que se segue, naquele olhar que tudo capta e tudo encerra, quando os seus olhos fitam a nuca de Romy Schneider. “Qu’est-ce que tu fais?”, pergunta ela. “Je te regarde”, responde ele.
Daniela Rôla
Um plano a meio de Max et les ferrailleurs (1971) repete um outro plano que também divide em dois Les choses de la Vie (1970), filme anterior de um realizador – Claude Sautet – que tem andado cá por casa nas semanas do confinamento – , o mesmo par: Michele Piccoli a despedir-se de Romy Schneider. Em Les choses de la Vie, a coreografia de um acidente de carro pauta as incertezas de Piccoli, entre a fuga que o romance com Romy Schneider lhe oferece e as memórias felizes de um matrimónio anterior com Lea Massari. Habituamo-nos a vê-lo com mulheres, a impor a sua persona, a acicatar a buñueliana Deneuve numa mesa de café, a conter Bardot em Capri, a domar a impertinente Emmanuel Béart, até que na noite passada, depois de sabermos da sua morte, vimo-lo em Max et les ferrailleurs a ludibriar Schneider, prostituta, mas também rainha entre bandidos de segunda apanha, sucateiros que Piccoli arrasta para um golpe, para concretizar uma obsessão, uma ratoeira que garanta o flagrante delito. Resoluto, casado em regime de patologia com o seu oficio de comissário da policia, a imponência dos recursos de Piccoli permitem-nos acreditar num personagem que se dá ao sacrifício por aquela mulher, que ele usou, mas com a qual também acordara numa manhã solarenga na abertura de Les choses de la vie.
Vítor Ribeiro
Neste filme de Marco Ferreri, Michel Piccoli chama-se Michel, como Marcello Mastroianni se chama Marcello, Philippe Noiret é Philippe, e Ugo Tognazzi responde por Ugo. Nenhuma presença destes quatro “monstros” se destaca das demais, mas cada um tem características e segue o seu particular destino de gula e morte. Piccoli é a personagem mais sonora das quatro. Interpreta um produtor de televisão que alinha no pacto suicida com mais três amigos. Usa o guarda-roupa mais extravagante, até o vemos num maillot de ballet exercitando-se numa barra, e traz muitas vezes uma jelaba vestida que até leva a que tenha que tranquilizar uma criança com o facto de ele não ser um árabe.
Michel toca piano e vemo-lo tentar reproduzir o bolero que Phillipe toca repetidas vezes numa vitrola. Um dos momentos memoráveis deste filme, que os tem em quantidade, é quando Michel atacado de um problema de flatulência que vai piorando à medida que o seu ventre incha de tanta comida, se descontrola e nos oferece uma peça para piano, o tal bolero, soterrada numa longa e violenta sessão de traques. A morte de Michel vem na sequência deste momento e não é menos degradante, quando o que era gasoso se faz sólido. Já li sobre o filme de Ferreri, de que se trata de uma crítica social mordaz, mas à semelhança de outros filmes do realizador não estabeleço uma interpretação directa para a alegoria. Trata-se de uma provocação dirigida ao espectador e de um filme de grande dimensão performativa. Só actores grandiosos como Piccoli e os outros três, para manterem a ordem escatológica dos acontecimentos num plano sempre artístico.
Ricardo Gross
Há uma frase de Party (1966) do sr. Oliveira de que gosto muito, dita pela Irene Papas acerca da personagem mefistofélica de Michel Piccoli: “Este senhor tornou-se um sábio. Dantes era um histérico e toda a gente o ouvia. Agora tornou-se um sábio e ninguém faz caso do que ele diz. O mundo é dos histéricos”. Toda a gente sempre ouviu o Piccoli, a questão é que ele toda a vida falou mais línguas do que aquelas que conseguíamos realmente compreender: a do desejo, das palavras, do silêncio, do olhar terno e malandro. Quando começamos a percorrer a filmografia do actor francês rapidamente percebemos como a figura do sábio histérico se recorta como pura potencialidade da combinação de faculdades na sua arte da representação. Por exemplo, as colaborações com Oliveira mostravam essa capacidade de atenuar a sageza particular da fala, fazendo da palavra corpo. No inverso, num filme dito “menor” da sua carreira, como Themroc (Regresso às Cavernas, 1973), espécie de alegoria-performance acerca dos descontentamentos da civilização, Piccoli histeriza-se, fazendo do seu próprio corpo uma palavra. Mas uma palavra que já começa incompreensível. E que vai perdendo letras, e depois devém tosses, catarros, e finalmente alfabeto de grunhidos, urros e trejeitos.
O filme parece uma vinheta de Mordillo, um mundo que tem mais do Haneke inicial – penso no dinheiro pela sanita em Der siebente Kontinent (O Sétimo Continente, 1989) – do que na finura de Tati. Um homem que se farta das opressões da civilização e destrói o quarto onde habita para o transformar numa caverna. Nessa política do despojamento, temos o corpo despido, peludo, histérico, possante de Piccoli. Como um Gene Hackman das cavernas, que faz suspirar e gemer as mulheres (e os homens) com a sua fisicalidade (mas não eram esses os suspiros de Leonor Silveira ou Deneuve/ Ogier?) e que assa polícias para sua satisfação (também) carnal. Piccoli em Themroc é o selvagem doce, o magnético sedutor das cavernas. Essa junção, entre o doce e o agri, o papal e o hedonista, dão conta desta omnipresença de Piccoli em todo o cinema que se fez no pós-guerra. Um homem de palavras de carne, de corpo feito frase, cuja herança deixará sempre sentir a falta do animal no cavalheiro e vice-versa.
Carlos Natálio
Nas mais de duas centenas de filmes em que participou, o rosto de Michel Piccoli, a sua figura e a sua presença definiram e modelaram as filmografia de Marco Ferreri, Luís Buñuel ou Claude Sautet (mas também de Varda, Godard, Demy, Resnais ou Rivette – para citar os da Nouvelle Vague – ou ainda Bellocchio e Moretti, Papatakis e Angelopoulos, Ruiz e Chahine, et cetera). Claro que aquilo que me aproximou (e me aproxima ainda) de Piccoli é a sua relação com Manoel de Oliveira. Como se sabe, o filme que os uniu (amical e profissionalmente) foi Party (1996) – tinha o realizador já 88 anos e o actor 71 –, e logo aí os jogos de espelhos se iniciaram com o actor a prolongar-se no ecrã (Piccoli interpretava Michel) ou a assumir-se como alter ego do realizador, num encontro de dois casais onde a escrita erótica de Agustina Bessa-Luís fazia acordar uma perversão insular de um velho badalhoco (quem? O quê?). Depois deu-se o famoso episódio em que Oliveira convidou o actor a integrar o elenco do pastelão Palavra e Utopia (2000), sobre a vida e obra do Padre António Vieira, onde Piccoli assumiria o papel do padre Cattaneo (dada a sua descendência italiana – que igualmente motivava o casting do filme anterior). Por conflito de agenda, o actor não pôde assumir o papel, iniciando a série de incidentes que desembocaria na desistência de Renato di Carmine, convidado para o substituir, incapaz de reproduzir sem enganos a extensa (infindável?) defesa do Riso de Demócrito. À terceira interrupção o ator terá afirmado “não continuo. Vou para casa.” E esse foi o catalisador do filme seguinte de Oliveira, Je entre à la maison (Vou Para Casa, 2001) onde Piccoli interpreta – agora sim – um grande actor de teatro, já de idade avançada, que numa rodagem para cinema é incapaz de continuar [prefere aposentar-se e ficar a brincar com o neto – tema que Nobushiro Suwa repete, ipsis verbis, em Le lion est mort ce soir (2017), só que com Jean-Pierre Léaud]. “Vai p’ra casa, ó velho!”, ter-se-á ouvido também, noutro plateu oliveiriano, na rodagem de Amor de Perdição (1978), nesses tempos pós-revolucionários em que o decadente romantismo camiliano não condizia com a (des)ordem dos dias. Oliveira sempre teve essa profunda empatia pelos (actores) velhos, sendo ele um velho (realizador) também – lembre-se a comovente despedida de Marcello Mastroianni em Viagem ao Princípio do Mundo (1997), também ela baseada numa anedota de rodagem.
Mas o filme da parceria Piccoli-Oliveira que me fica (também por ter sido o meu primeiro Oliveira) é Belle toujours (2006), essa “sequela, tributo ou nota-de-rodapé especulativa” de Belle de jour (A Bela de Dia, 1967), como lhe chamou Jonathan Rosenbaum. Há que ter tomates para regressar a uma papel que se interpretou quarenta anos antes, uma vez que fazê-lo é admitir a passagem do tempo e os estragos que este deixou (Catherine Deneuve não os teve, pegou neles Bulle Ogier, outra buñueliana e oliveiriana actriz). Mas mais que isso, Piccoli retoma um dos papéis que lhe deu maior reconhecimento, dessa fase brilhante da sua carreira. O que caracteriza esse regresso a Henri Husson é a madureza solar de um homem tocado por uma alegria doce de quem encara o mundo com um sorriso bonacheirão (gozão? Ainda?), seguro do seu passado e dos segredos ocultos que este carrega. Este, como os outros papéis que interpretou para Oliveira, são sobre a velhice e o confronto com a falência física que o tempo impõe, mas onde o brilho ferino permanece vivo nos olhos de quem viveu completamente todos (!) os prazeres da existência – disse o actor, comparando o Luis e o Manoel, que “a sua reserva permite-lhes explorar os mais secretos jardins da existência” (a cada um o seu bucho). São retratos de homens velhos – rebarbados q. b. – e dos seus desejos, onde o actor se (con)funde com o realizador, e vice-versa. Depois de ter abandonado os plateaux há já seis anos, Michel Piccoli voltou, definitivamente, a casa. E levou o segredo da caixinha com ele. O gatuno.
Ricardo Vieira Lisboa