Os eighties são anos especiais para o terror: em filmes como The Evil Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1981) de Sam Raimi e a sua sequela, este Re-Animator, The Return of the Living Dead (O Regresso dos Mortos Vivos, 1985) de Dan O’Bannon ou os primeiros filmes de Peter Jackson, destacando-se Bad Taste (Carne Humana Precisa-se, 1987), uma clássica proposta de “terror gótico” ou série B era transviada pelo splash e body horror eivado de um certo desplante camp por regras de bom gosto e bem-fazer. Estamos longe do universos da Universal, de Val Lewton, da clássica Hammer e mesmo dos primeiros Romero, porque não há como resistir à gargalhada – mesmo que seja uma gargalhada nervosa – face a tanta viscosidade… leia-se, a tanta viscosidade verde. Stuart Gordon (1947-2020), co-fundador da companhia de teatro Organic Theater, amigo próximo de David Mamet, não deveria estar à espera de se tornar um dos padrinhos deste horror sardónico, que sabe conjugar o sentimento de nojo com o de diversão. O “homem respeitável” do teatro aceitava o desafio lançado pelo produtor Brian Yuzna e adaptava ao cinema, em modo de Picadora 1-2-3, um punhado de contos de H. P. Lovecraft. A história de um cientista louco, Dr. Herbert West (Jeffrey Combs), que não conhece barreiras éticas na aplicação de um poderoso reagente verde que reanima os mortos, foi o motor de várias barrigadas de riso, um fenómeno cult que conquistou um certo consenso da crítica high brow, com uma convencida Pauline Kael a apelidar Gordon de “o Buñuel pop“. A etiqueta assenta-lhe que nem uma luva e agora, na hora da sua morte, não podemos deixar de perguntar: cadê o Dr. West para devolver a vida a um dos mais divertidos e despretensiosos nomes do terror dos eighties?
Refere o próprio Gordon em entrevista (um dos extras desta fabulosa edição alemã), no seu jeito característico (sereno e humilde), que a personagem do jovem estudante de medicina de Re-Animator (O Soro Maléfico, 1985), que se cruza com o misterioso Dr. West, serve de bússola para a nossa própria humanidade nesta história de esgrouviados. Sem Dan Cain (Bruce Abbott), tudo seria demasiado… demasiado “demasiado” para nos podermos situar na história e provocar a sacrossanta empatia dramática. Mas também foi Gordon quem, com o mesmo jeito (afável e despretensioso), deu a volta ao texto, arregaçou as mangas e injectou boas doses da sua mistura mágica directamente na veia da fórmula batida “less is more”, atirando: “Não, ‘more is more’!” Disse-o, salvo erro, na apresentação da projecção de Re-Animator num já distante MOTELx. Rodava o ano de 2009 e confesso que a vinda de Stuart Gordon despertava em mim um misto de sentimentos: pretendia “cortar com a minha adolescência” e, portanto, revisitar o seu cinema sem grande vontade de o “reanimar”, mas também queria, ao mesmo tempo, reacender em mim a paixão desmiolada por aquele cult classic da minha infância cinéfila. De facto, quando revi no grande ecrã Re-Animator, deparei-me com um deleite não tão distante de Buñuel quanto poderia pensar – a passagem de Brian Yuzna por Lisboa, no mesmo festival, confirmou, aos meus olhos, esta filiação, sobretudo fruto das “descobertas” do charme indiscreto de Society (A Sociedade, 1989) e do segundo e não inteiramente despiciendo Re-Animator, o ainda mais fetichista Bride of Re-Animator (O Soro Maléfico 2, 1990).
Esta via crucis feita de visco, de sangue e porcaria alimenta-se de uma pura energia cinética que só a espaços voltámos a encontrar no cinema de Stuart Gordon.
Gordon abre uma Caixa de Pandora de possibilidades neste filme: o líquido verde é capaz mesmo de animar partes do corpo separadas do seu natural conjunto. Num momento em que explode no ecrã uma dança delirante e improvável entre Buñuel e Ed Wood, o Dr. Carl Hill (David Gale), médico-professor acusado de plágio por Dr. West, volta à vida, mas com o corpo separado do resto do corpo. A vingança terá lugar em várias posições desconfortáveis: o corpo obedece à cabeça consumida pela raiva e leva-a, digamos assim, “debaixo do braço”, até à morgue do Hospital, uma espécie de “loja de brinquedos” aqui ou um local onde param muitos mortos que o Dr. West terá todo o prazer em reanimar. O chavascal será total quando a “rapariga do meio” (Barbara Crampton), a amante do relativamente são Dan Cain, é assediada pela cabeça desvairada do sinistro Dr. Hill. A cena da tentativa de violação em plena morgue, por uma cabeça falante que não se contém no seu plano de vingança, consta entre os mais audaciosos pedaços de body horror que podemos encontrar.
As experiências começam naquele local onde Norman Bates guardava a sua mãe “não-defunta”: da cave para a morgue, o trajecto de Dr. West, e os efeitos da sua “weird science”, terminará num fabuloso ending em que o soro maléfico é a última coisa que resta para que “o amor vença” no meio de tanta loucura. Era Yuzna quem, elogiando a montagem de Lee Percy e a música com assinatura de Richard Band, mas despudoradamente “sacada” a Bernard Herrmann e ao seu Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), falava do afinadíssimo sentido de ritmo e da energia faiscante que tomam conta da narrativa desde os primeiros minutos, ainda vai a história no seu prólogo. Se é verdade que “more is more” para Stuart Gordon, também é verdade que este foi dos primeiros a saber como “cut the bullshit”, fazendo do visco verde na história o doping que precisava para acelerar o ritmo cardíaco da história, tornando-a morbidamente divertida.
O que sinto, neste novo revisionamento, é que passamos da cave para a morgue como quem sobe uma íngreme escadaria em espiral – mais uma imagem hitchcockiana, vinda de Vertigo, ou mais uma imagem buñueliana, vinda de Él (Ele, 1953)? Subimo-la, com o credo na boca, gritando e gargalhando, sem olhar para trás. Esta via crucis feita de visco, de sangue e porcaria alimenta-se de uma pura energia cinética que só a espaços voltámos a encontrar no cinema de Stuart Gordon. Por exemplo, From Beyond (A Criatura Que Veio do Além, 1986), outra adaptação de Lovecraft, outra produção do amigo Yuzna, literalizava ainda mais esta visão espacial do terror, “em espiral”, mas todo este sentido de economia, que conjuga – com, imagine-se, uma certa elegância buñueliana na mise en scène – o “more is more” com o “cut the bullshit”, só muito raramente voltou a ter uma interpretação melhor depois de Re-Animator.