It’s just one abomination after another.
(fonte desconhecida, citada em The Movie Orgy)
Quem observar o percurso cinematográfico de Joe Dante – uma filmografia dominada por ficção-científica, comédia e horror ao longo das décadas de 80 e 90 – dificilmente poderia imaginar que a sua primeira experiência, enquanto estudante de cinema, consistiu em “deitar mão” a tudo o que fosse B-movie, documentários institucionais e filmes publicitários, excertos de programas televisivos de entretenimento, newsreels e public service announcements produzidos nos anos 50 e 60, para congregar uma “mastodonte” obra de found footage. The Movie Orgy (1968), com os seus 280 minutos de metragem, é tudo isto e, ainda, um filme definitivo para a compreensão da mentalidade anti-establishment que, nos finais da década de 60, exibia forma quase definitiva.
Um dos aspectos que, imediatamente, se torna evidente, é a noção da consciente filosofia que orientou o trabalho de montagem de The Movie Orgy. Se a quantidade de material aqui agregado poderia indiciar uma realização baseada na mera colagem de filmes, não demorará muito até que o espectador apreenda como Joe Dante infundiu estas imagens da contracultura que, à época, dominava os meios académicos norte-americanos. Pois 1968 foi o ano que marcou a escalada do conflito na Guerra do Vietname e elegeu Richard Nixon – curiosamente, um dos principais visados do filme – para a Casa Branca.
Nesta genuína overdose de “Americana cinematográfica”, Joe Dante disseca implacavelmente a psicologia, as transformações sociais, a ideologia de género e os estereótipos dos anos 50 e 60 do seu país.
Tais intenções são demonstradas, por exemplo, através das diversas justaposições que compõem The Movie Orgy: um documentário de instrução canina (intitulado Every Dog a Gentleman) com propaganda de recrutamento para o exército norte-americano; a visão de Christopher Lee na pele do maléfico Dr. Manchu – uma sequência retirada de The Face of Fu Manchu (O misterioso Dr. Fu Manchu, 1965) – a anteceder o eloquente discurso proferido por Richard Nixon (“You won’t have Dick Nixon to kick around any more“) após a sua derrota nas eleições para Governador da Califórnia em 1962; ou um anúncio para uma marca de aspirinas (“Bufferin – Strong medecin for sensitive people!”) lado a lado com imagens do penoso quotidiano dos soldados americanos no Vietname.
Se o efeito destas oposições denota, sem grandes reservas, o cariz satírico, político e anti-bélico que constitui o principal motor ideológico de The Movie Orgy, o mesmo se pode referir quanto ao retrato que o documentário elabora sobre a sociedade e a cultura dos Estados Unidos da América nas épocas visadas.
Nesse trabalho, Joe Dante recorre, num exercício de pura mordacidade, a um curioso grupo de B-movies dos anos 50, que vão de títulos sobejamente enraizados nos cânones cinéfilos – Tarantula (Tarântula, a Aranha Gigante, 1955) ou Attack of the 50 Foot Woman (1958) – a produtos quase obscuros. Destes últimos, os dramas juvenis Speed Crazy (1959) e College Confidential (1960) (hoje em dia, filmes de limitada visualização, dado os complexos processos de copyright em que estão envolvidos) aparentam capitalizar o sucesso, então gravado na psique norte-americana, da “rebeldia sem causa” de James Dean ou Montgomery Clift para delinear histórias de delito adolescente, tédio social e conflito intergeracional.
Nos excertos recolhidos para The Movie Orgy, observa-se a natureza delirante e transgressiva que tão bem caracterizou o filão dos B-movies: em Speed Crazy, o jovem Nick Barrow (interpretado por Brett Halsey, actor com prolífera carreira neste género) defende a sua masculinidade através de corridas ilegais de automóveis e de uma descontrolada tendência para sacar da navalha guardada no bolso do seu casaco de cabedal; em College Confidential, um professor universitário de Sociologia, com a intenção de elaborar uma pesquisa sobre os hábitos sexuais das gerações mais jovens, procura interagir socialmente com os seus alunos, acabando por, acidentalmente, projectar um filme pornográfico durante uma festa repleta de “menores”.
Para além da comicidade que proporcionam, assim como da oportunidade que fornecem a Joe Dante para os entrecruzar com diversos arquivos de índole sócio-política, este momentos de série B constituem a espinha dorsal de The Movie Orgy, assim como da própria motivação para a sua montagem.
Nesta genuína overdose de “Americana cinematográfica”, Joe Dante disseca implacavelmente a psicologia, as transformações sociais, a ideologia de género e os estereótipos dos anos 50 e 60 do seu país.
Das “abominações” resgatadas por The Movie Orgy, reveladas após cinco horas de filme – e como paradigma daquilo que tem para oferecer – , não resisto em destacar outros deliciosos fragmentos, tais como a visão de Elvis Presley, em 1956 no programa televisivo The Steve Allen Show, a entoar ‘Hound Dog‘ na companhia de um basset hound; ou um filme educativo com o título (quase apropriado para um B-movie), High School Prom, sobre as regras de etiqueta a adoptar para um baile de finalistas. Estes pedaços transformam o filme num improvável documentário histórico, no qual o zeitgeist e a evolução sócio-económica de uma nação são definidas pela eloquência, sempre infalível, que se pode esmiuçar de arquivos fílmicos.
Em nota final, e por este ser, sobretudo, um documentário de arquivo, importa salientar o quão difícil é, nos tempos que correm, observar este The Movie Orgy. Compilado das mais variadas fontes, cada qual com as suas especificidades no que toca a direitos de autor e respectivas resoluções, a primeira obra de Joe Dante permanece objectivamente desconhecida junto do público geral. Profusamente exibido, nos finais da década de 60, em campus universitários, o filme é ocasionalmente apresentado em contexto de festival (no nosso país, foi apresentado pelo Curtas de Vila do Conde em 2019) e/ou retrospectivas.
Uma pena, de facto. Pois The Movie Orgy consegue explicar, pela via cinematográfica, mais da história dos Estados Unidos do que muita literatura subordinada ao tema.