Numa cena de Jaime (1974), António Reis filma o barbeiro de Jaime Fernandes. Este conta como tendo achado os desenhos do amigo muito estranhos, este lhe havia respondido: “Oh, Manuel, você compreenda, há fotografias de nitidez, estas são obscuras… são feitas por mim, conforme a minha vontade”. Utilizando algumas passagens do mais recente livro editado entre nós pela Documenta, Descasco as Imagens e Entrego-as na Boca – Lições António Reis (e em alguns casos citações, no interior do mesmo, atribuídas a pessoas que com ele privaram) e pegando nesta ideia da relação entre as fotografias de nitidez e as “outras”, as obscuras, (tensão aflorada por Maria Filomena Molder no seu ensaio presente no livro), o que aqui se procura é que a memória e evocação possam dar nitidez à presença de Reis na cultura portuguesa, enquanto cineasta, poeta e pedagogo, e, ao mesmo tempo, preservar as suas “fotografias obscuras”. Que é o mesmo que dizer, os insondáveis mistérios da arte de que foi o criador.

Apetece começar pelo elogio de João César Monteiro que assinou uma das mais relevantes entrevistas com o autor, intitulada «Jaime de António Reis: O inesperado no cinema português» na Cinéfilo n.º 29 (1974), e onde escreve “fui recebido pela mais cândida e afável criatura que deve existir sobre a face deste taciturno planeta.” Do filme em si, os elogios não são menores: “um dos mais belos filmes da história do cinema, ou, se preferem: uma etapa decisiva e original do cinema moderno, obrigatório ponto de passagem para quem, neste ou noutro país, quiser continuar a prática de um certo cinema, o cinema que só tolera e reconhece a sua própria austera e radical intransigência”. Ou ainda: “um filme em que a severa vigilância ética nunca se separa da permanente invenção estética e, por via da feroz manutenção desse disciplinado equilíbrio, que não é só o da obstinação mas também, e sobretudo, o desse pleno voo da inteligência a que se dá o nome de capacidade poética, projecta, no espaço que é da história, o corpo, da sua própria vidência, feita de um novo furor e mistério”.
Sobre Jaime, Reis explica, quiçá justificando os tons sépia usados no filme, que “Quando o Jaime tinha um delírio, pegava numa picareta e começava a picar no cimento do hospital, para descobrir a mina de ouro.” Maria Filomena Molder, num dos textos contidos em «Descasco as Imagens, intitulado Causas que seguem os efeitos ou ameixas douradas com orvalho», refere que o ensinamento do cineasta é dizer-nos que potencialmente, “Há ouro em todo o lado. Isto é um grande ensinamento que António Reis nos dá, pois é comum, se desprezamos um cineasta ou detestamos um escritor, recusarmo-nos a admitir que gostamos de um filme desse cineasta ou de um livro desse escritor que acabou de nos surpreender. Estamos muito habituados a fazer isso. Mas a natureza, a reinante, a imprevisível, encarrega-se de nos trocar as voltas, por exemplo, quando cantarolamos músicas de que não gostamos. E, de repente, percebemos que ficámos ligados a uns certos harmónicos, a ritmos que têm a ver, por contraste ou por semelhança, com qualquer coisa que estamos a sentir. Sim, mesmo debaixo do cimento do hospital pode haver ouro.” (…) “Mas ainda não é tudo, pois o poder do ouro também tem efeitos no método de preparar e realizar, próprio de António Reis, que tal como o seu personagem, que um dia foi vivo, pega numa picareta e põe-se à procura do ouro. Essa é a sua maneira de fazer filmes. ‘Também tive o meu delírio. Peguei na picareta… Não tenho vergonha por isso’ .”

Ainda no seu método de cineasta há pontas soltas que se atam.
O desembaraço da certeza humana que chamusca: “Hoje estamos como as pessoas chamuscadas. A concepção antropocêntrica começa a ser ultrapassada tão tardiamente quanto civilizações milenárias nunca a tiveram. Parece que acordámos tarde de mais, para nos apercebermos que o homem se integra numa pequeníssima coisa que é a terra, num grande fenómeno da vida do universo. Eu, homem, é pouco. E é imenso…”.
A espera e a emoção profunda: “E, de repente, fecharam-se aquelas portas todas, tudo aquilo era de uma madeira maravilhosa e, subitamente, lembrei-me de dar largas à imaginação. Aliás, na infância, vi secar muitas espigas dentro de casa porque, quando chovia, tinham de as tirar das eiras. Ao pôr ali o milho, lembrei-me do guarda-chuva, e ao pôr lá o guarda-chuva, lembrei-me dos grandes acordes modernos do amarelo e do preto, tudo começou a convergir para uma emoção profunda. Depois, foi tudo o que a sombra do guarda-chuva arrastou, à medida que tudo se organizava, quer cinematográfica quer plasticamente”.
A fuga ao olhar etnográfico: [a propósito de Trás-os-Montes (1976)] “Creio que o olhar etnográfico é um vício. Porque a etnografia é uma ciência que vem depois. De igual modo não adoptámos um olhar pitoresco ou religioso sobre o Nordeste. […] Por isso, a respeito do Nordeste nós dialectizámos tudo o que sabíamos, tudo o que tínhamos aprendido com as pessoas, tudo o que descobrimos nós próprios. Acontece que é preciso esperar até ao fim do filme para dar sentido a certas coisas. E a maneira como os diferentes blocos se dialectizam é muito importante para nós.A voz off faz contraponto à vida dos mineiros tal como o apitar do comboio faz contraponto à música de Pergolesi que se ouve por momentos. Há sempre um cruzamento, uma dialéctica do som com a imagem que me interessam muito mais do que todas essas histórias de raccords, de elipses e outras regras dos manuais de cinema.”
A fuga à distinção ficção documentário: [ainda a propósito de Trás-os-Montes] e essa polaridade ficção/documento]: “Estamos em ambos. É frequente numa aldeia, que um acontecimento integre a ficção. O que é surpreendente é que, se nos limitarmos a estar por lá, apenas vemos a poeira dourada, os animais na fonte, etc. Mas se pudermos passar de uma casa a outra, depois atravessar uma ribeira, depois passar por uma porta, aí as coisas tornam-se de tal maneira complexas que já não podes falar unicamente de ficção e de documentário.”
A necessidade de proteger as pedras gastas e não as colocar num museu, como refere Molder a propósito da política do olhar em Reis. Refere o cineasta: “Perder valores de imaginação, valores poéticos, lúdicos, arquitectónicos, de fauna e de flora, perdermos esse Nordeste, é como perdermos, para sempre, espécies da natureza e, um dia, talvez soframos horrivelmente, ao imaginá-las em álbum, se existirem. Todos ficaremos profundamente pobres […] É horrível salvar um capitel românico para pôr num museu. Um capitel era um elemento de uma coluna, a coluna pertencia a um pórtico, o pórtico pertencia a uma catedral, mas isso […] ainda fazia parte de um templo habitado por pessoas.”

Da poesia ao cinema
José Bogalheiro, um dos editores do livro, escreve, a propósito de um texto de Nuno Júdice, «A Coerência da Solidão», que a “articulação fusional entre a palavra e o olhar” que o cinema permite, deu a Reis uma possibilidade maior de completude depois da poesia. Diz ele, em «Uma torrente chamada vida», que a plenitude procurada por Reis e encontrada no cinema: “é de carácter visual, não se esclarecendo se, nessa articulação fusional, o ganho de plenitude visual se deve ao facto de o olhar, no cinema, ser o da câmara (ou, o do homem-da-câmara), produzindo uma espécie de fusão da palavra. (Falaríamos, então, de um nadador, entre a imagem poética e a imagem cinematográfica, em que esta pelo seu efeito abrasador, literalmente, seca aquela). E numa nota que podia ser de rodapé, acrescentaria que ao recorrer à imagem da torrente tive em conta o facto de, no uso deste termo (formado a partir do verbo latino torrere, ‘queimar’, ‘secar’), o sentido de ‘abrasado’ preceder o sentido de ‘caudal transbordante’. Ora, pelo menos eu, ainda não encontrei melhor universo semântico para definir Jaime na sua devastadora beleza.”
Júdice, no seu texto «Uma poesia próxima da vida», escreve que “O poema não vem de uma voz colectiva, não pretende ser a expressão de uma comunidade, de um grupo, de uma ideologia, mas é apenas a expressão de um eu que habita a cidade, de um homem que sofre as pequenas coisas desse ‘quotidiano’ ; (…) Pelo contrário, este poeta é um ‘narrador’ de episódios banais do dia-a-dia, que se alegra com coisas simples como o amor e sofre com a mediocridade do pequeno emprego, da cidade sem perspectiva, alguém que se apresenta como um coleccionador de instantes; e o poema capta essas imagens que são o documento da vida banal em que nada adquire a dimensão exclamativa e apelativa do neo-realismo.”
Ainda no domínio da poesia, Jorge de Sena escreveu que a poesia de Reis captava “breves impressões e momentos e descoberta poética das coisas comuns da vida”. Eduardo Prado Coelho fala dos seus “poemas rasantes ao solo”, de como era “um poeta cujas subtilezas só com os anos, a vida, as visitas feitas de tempos a tempos poderão explicar como esta simplicidade se desdobra, como este era um poeta que tinha falado cada coisa depois de rodeá-la muitas horas calado”. Manuel Guerra, outro dos editores de Descasco as Imagens e Entrego-as na Boca – Lições António Reis, utiliza a expressão “atenção ardente” (com que Herberto Helder aponta as técnicas do cinema e da poesia) para nomear o seu texto e nos propor a forma de Reis olhar dentro das coisas, na sua transformação e eternidade.
As palavras de Paulo Rocha sobre o amigo António Reis deixam perceber como a sua vida deslizou para a sua poesia: “Na cultura portuense de esquerda daquela época, o A.R. era uma figura luminosa. Humilde, humilhado, secreto, vegetava nos escritórios da Vista Alegre, em Gaia. Odiava a arrogância de um patrão marialva e acompanhava de perto o fluir da vida comum. À primeira vista parecia um operário. Morava num apartamento em Gaia com vista para o rio. As paredes estavam cobertas com bonecos de pano de todas as cores, feitos pelos loucos de um asilo. Os bonecos eram monstros de várias cabeças e muitas pernas, e anunciavam já os desenhos do Jaime. Naquelas janelas que davam para o nevoeiro do rio havia uma energia irracional, um sopro vital à beira do abismo.” (…) “Tinha uma maneira de falar intensíssima, os olhos brilhavam-lhe como diamantes, vestia-se como um proletário e tinha uma cultura meio científica, meio poética”. E era Reis que fazia questão de lembrar esse proletariado triste na mente e na caneta do poeta: “Lembro-me de que chovia quando comecei a escrever, os operários entravam para o trabalho já dobrados de cansaço e mágoa, com fatos- macacos acinzentados. Creio que a minha poesia ficou sempre com essa chuva, essa mágoa.”
Ou ainda como a sua poesia deslizou para o seu cinema: “Trabalhou nos diálogos [de Mudar de Vida (1966)] durante seis meses, riscando e deitando fora. Cada dia mais magro, sempre em suores frios, à procura da vírgula, da pausa, da assonância secreta e expressiva. Os diálogos, arrancados a ferros, chegavam às filmagens à última hora, e não havia tempo para reflectir sobre eles. Só anos mais tarde, quando o “Mudar” se estreou comercialmente em Tóquio, é que tive oportunidade de os estudar. O trabalho de os traduzir para japonês era muito lento, e só assim pude descobrir a concisão musical, a riqueza secreta daquelas frases escritas com um ouvido infalível.’ Quantos diálogos haverá na nossa língua que se lhe possam comparar? “O António sentia o peso de cada palavra, de cada sílaba, fugia aos efeitos”.

Do encontro e da pedagogia
Alberto Seixas Santos, que Reis veio a substituir na Escola de Cinema, disse sobres os seus programas de disciplina: “Eram três linhas. Tentei várias vezes convencê-lo a desenvolver os planos de estudo, mas não consegui. Dizia-me sempre, ‘isto chega perfeitamente’ “. Segundo Seixas, “não lhe interessavam as regras do cinema clássico, os códigos narrativos clássicos, os princípios do campo/contracampo, a fragmentação do plano de conjunto, etc., etc. Realmente ele avançava partindo da poesia e o resultado era uma grande variação de ritmos internos, os do próprio filme, e mudanças também muito bruscas de dimensões do espaço, como cortes bruscos de planos de conjunto para grandes planos, cortes que tradicionalmente se não faziam no cinema clássico, em que se supõe a existência de uma progressiva aproximação de personagens. Este “saber selvagem” é, na minha opinião, o que era mais essencial no ensino dele.”
Bogalheiro escreve sobre sobre o segredo da aprendizagem nas aulas de Reis: “Para o encontro entre dois segredos o setting ideal é à volta de uma mesa de montagem. Os alunos em semicírculo, uns sentados, outros de pé, de modo a todos terem o ecrã no campo de visão; António Reis fica de pé, apoiando a mão direita no canto da moviola, perto dos comandos, ligeiramente inclinado para frente, para poder ver as imagens ao pormenor. O filme arranca, seja um Rossellini, um Godard, um Antonioni ou um exercício de um aluno, o método é surpreendente de cada vez: há um momento em que Reis diz ‘— Pára!’. O aluno que esteja aos comandos não pode falhar nem por um fotograma. É a partir daquela imagem que tudo se passará, no seu torrencial confabular (…). Ninguém sabe, antecipadamente, durante quanto tempo, ou durante quantas aulas se andará de descoberta em descoberta. É uma surpresa: que saberes irá convocar; haverá um segredo antigo, de que ele é o único depositário, que acabará por ser revelado?” Fátima Ribeiro, sua aluna, termina o seu texto «António Reis, nosso mestre», dessa forma eloquente e testamental: “Hoje, recordamo-lo de muitas maneiras, como realizador e como poeta, e todos o recordamos como mestre. Era assim que gostava de ser tratado. Assim será.”
Um agradecimento especial ao José Bogalheiro e ao Manuel Guerra, os editores do livro Descasco as Imagens e Entrego-as na Boca – Lições António Reis, sem as quais não teria sido possível a recolha destes recortes de cinema.