Assistimos pela primeira vez a Aurora (2010) de Cristi Puiu, e fazemos o filme possível até aos derradeiros dez minutos. Quando as três horas de visionamento chegam ao fim, temos uma ideia mais formada, embora incompleta, sobre a ligação entre os momentos do filme e os motivos do protagonista, Viorel. A excelente entrevista de Rob White («Cristi Puiu Discusses Aurora», Film Quarterly, Inverno, 2010, Vol. 64, Nº. 2) com o realizador romeno oferece mais pistas e abre-nos leituras tanto para o essencial diegético, o que se passa na cabeça de Viorel para fazer o que fez, como para o acessório, a natureza de algumas relações que ficam suspensas na sua ininteligibilidade.
Até aqui falei apenas de questões que envolvem o intelecto e a necessidade que o espectador sente de compreender (ou achar que compreende) tudo aquilo que acontece num filme. O exercício aqui proposto envolve o sentido do tacto, e por isso vou tentar compreender Viorel, alguns aspectos da sua personalidade e da sua história familiar, com base no que o filme apresenta das 36 horas na vida deste indivíduo. O tacto é um sentido que associamos ao conhecimento do mundo, ao desempenho de tarefas, mas sobretudo à demonstração de afectos. É através das manifestações afectivas que o tacto ganha um significado mais duradouro, que gera repercussões dentro de nós, próprios da espécie humana. Viorel quase não tem manifestações desta natureza. Talvez resida aí a situação que conduziu à alienação deste homem, ou à acentuação do seu isolamento, com as consequências trágicas que os actos da personagem irão produzir. Saberemos na altura da confissão (são dez minutos atropelados pelo mundano de uma esquadra) que Viorel é percorrido por um estado de negação relativo ao divórcio mais ou menos recente, mas nem aí o monólito filme parece desfazer o pacto com o monólito protagonista.
Irei usar este parágrafo para referir por ordem cronológica todas as acções que Viorel executa que fazem uso das mãos: vemo-lo fumar sozinho no exterior da fábrica; a cadela abrigada recua perante a tentativa de Viorel de lhe fazer uma festa; bebe um café na casa de Gina; conduz sozinho; fuma junto de uma paragem de autocarro para fazer tempo; retira uma pasta no local de trabalho; recebe dinheiro de uma dívida de um colega; paga a outro colega por umas peças para uma espingarda; leva as mãos à cara alguns segundos dentro do carro; tranca a fechadura de casa; come directamente de uma lata de conserva; repara uma velha espingarda; telefona e assobia a quem atende e logo desliga; ensaboa-se no duche e faz uma apalpação na zona da próstata; compra uma arma nova numa espingardaria; arruma compras no frigorífico; reúne os discos compactos junto a uma parede; desliga o cabo do telefone; monta a espingarda nova; ensaia a possibilidade de se suicidar com um disparo; dispara a espingarda na sala contra um cobertor enrolado; come uma fatia de bolo; carrega a espingarda desmontada num saco para o estacionamento de um hotel; mata um homem junto do carro deste e a mulher que o acompanhava; toma os comprimidos que Gina lhe dera; transporta objectos pessoais para casa da mãe e coloca-os no seu quarto de adolescência; aponta o dedo de modo ameaçador para o padrasto; guarda outros objectos na arrumação do seu apartamento; remove a lama dos sapatos junto a um baldio; entrega dinheiro (da renda?) a uma mulher que matará minutos depois; brinca com o comando da televisão enquanto faz tempo; um indivíduo que entra depois na casa é também assassinado com dois tiros; limpa o suor do rosto com uma toalha; força a entrada numa loja de roupa prestes a abrir; carrega duas coroas de flores; vai buscar uma das filhas à escola, que deixa numa vizinha da mãe; come um pastel perto da esquadra da Polícia; esvazia os bolsos para um dos agentes; volta a ligar o telemóvel após autorização da Polícia; pega numa caneta para escrever a confissão dos crimes.
Tudo somado, temos o assomo de uma carícia a um animal na cena de abertura e os restantes gestos dirigem-se exclusivamente a Viorel, que está quase sempre sozinho, ou àqueles que ele irá matar. Até a relação com a filha mais velha (que tem 7 anos, ouvimo-lo contar depois à Polícia) é ríspida. O filme mantém relativamente a todos os momentos uma posição de observação que sugere neutralidade. Escolhido um ponto de vista, ele não é mais abandonado até que passemos a um outro espaço, seja em continuidade ou não. Cristi Puiu conta na mesma entrevista que filmou um total de seis horas e que a lógica de que o espectador corre atrás, ele intencionalmente sabotou, guardando apenas aquilo que lhe parecia ter relação directa com os acontecimentos dramáticos que vinham depois. Puiu fez mais que isso. Não é absolutamente claro ao espectador nem a alternância de dia para noite, ou tarde ou madrugada, nem que o filme compreenda dia e meio de duração. A sua natureza fragmentária acentuará o caos interior de Viorel e leva a que o filme estabeleça com quem o vê a mesma relação hostil e até de desprezo que Viorel manifesta nas raras situações em que se encontra acompanhado.
O tacto em Aurora não implica contacto. A escolha deste filme não pretendeu subverter a proposta inicial, antes apresentar um objecto que se coloca numa posição radical de objectividade parcialmente truncada, para que não exista outra alternativa que não seja nos ligarmos a ele pelo mesmo lado instintivo e banal que nos é oferecido no solilóquio sombrio e opaco de Viorel, em direcção aos crimes e ao castigo.