No momento em que a minha circunstância ainda se define pelo imperativo do confinamento social – são as redes que o teletrabalho tece… –, devotei as últimas semanas a “dar rodagem” ao cinema de terror acumulado cá por casa, impresso em formatos como DVD, Blu-Ray ou o “disco pirata” que, ali, acolá e online, fui desencantando durante mais de um ano. Nessa dinâmica, (re)descobri os mecanismos, narrativos e visuais, do expressionismo alemão, do giallo, do horror made in Hollywood, do exploitation de série B, dos populares filmes norte-americanos dos anos 80 e, sobretudo, do que foi produzido em latitudes onde a minha cinefilia nunca “poisou” com a devida atenção.

De todas estas experiências cinematográficas, uma individualidade rapidamente se destacou: Carlos Enrique Taboada. Cineasta e argumentista mexicano, autor de pontuais incursões pela literatura, filho de actores, virtualmente desconhecido em Portugal e com particular apetência pelo filme de suspense e terror, dele são algumas das obras que melhor fruí ao longo desta “quarentena de horror” pessoal: Hasta el viento tiene miedo (1968), Más negro que la noche (1975), Veneno para las hadas (1986) – título integrado na lista, elaborada pelo site Sector Cine, dos 100 melhores filmes mexicanos de sempre – e, de modo muito especial, El libro de piedra (1969).
Não sendo filme que se possa apelidar de absolutamente revolucionário ou influente, El libro de piedra possui, todavia, diversos “encantos” para que lhe dediquemos um olhar perspicaz e profundamente contemporâneo. E, como adiante se comprovará, o timing da minha visualização foi precioso aliado.
O formalismo, empregue por Taboada, é o de um terror simultaneamente clássico, eficaz e atmosférico – pleno em jogos de sombras e luz –, em inteira confluência com a história de uma família abastada, residente numa mansão servida por frondoso e labiríntico jardim privado, com um (sugerido) passado de relações conturbadas e cujo elemento mais jovem – a pueril Sylvia – poderá sofrer de transtornos mentais. A recém-chegada educadora da criança percebe que Hugo, um amigo imaginário de Sylvia, é também a principal causa de instabilidade daquele agregado familiar, já de si composto por um pai emocionalmente distante, pela esposa insegura com quem se casou em segundas núpcias e por empregados que não hesitam em confessar as suas superstições.
Neste contexto, e em prol de uma análise de El libro de piedra, torna-se obrigatório observar a inquietação que advém, inteiramente, da figura de Hugo. Produto de uma imaginação fértil e infantil ou fantasma com “reais” motivos para assombrar o comum dos mortais? A adensar o mistério, revela-se desde muito cedo que Hugo é, igualmente, o nome atribuído ao menino representado numa estátua decorativa do jardim da casa: um pedaço de pedra que, a espaços e dependendo do observador, aparenta ter vida própria e sobre o qual os personagens transferem paixões, crenças, inseguranças e sentimentos de cólera. E, a certa altura, só a sua destruição parecerá ser o remédio para acabar com todas aquelas moléstias do espírito.

Desde o momento em que nos apercebemos de que o antagonista de El libro de piedra é uma mera estátua, o filme não só adquire particular singularidade, como possibilitará uma simples (e inevitável) associação contemporânea a recentes eventos, um pouco por todo o mundo e integrados no movimento Black Lives Matter, que têm visado as representações de figuras históricas associadas a racismo e a passados colonialistas.
Carlos Enrique Taboada não terá, decerto, pretendido formular uma metáfora sobre a tendência humana de esculpir (e, mais tarde, diabolizar) condições ou valores sociais em pedra e bronze; as intenções de El libro de piedra são, aliás, típicas do cinema de terror psicológico, no seio de um argumento que versa sobre ressentimento, loucura, culpa, expiação e remissão. Contudo, é quase irresistível justapor a actualidade noticiosa com um filme que dedica a maioria da sua metragem aos sentimentos disruptivos que uma estátua pode suscitar. Naquela figura de pedra, orbitam a contrição de um pai ausente, a inadaptação e a mágoa de uma madrasta e a solidão de uma criança emotiva e traumatizada pela doença.
São nesses pressupostos, na multitude de leituras propostas pela sua narrativa, que El libro de piedra se distingue por completo. Aqui, a estátua, qual “bode expiatório” para as falhas do Homem enquanto ser civilizante, adquire vida nas suas mais diversas manifestações e significâncias, não sendo através da sua eliminação que se chegará à redenção. O próprio filme, no seu “petrificante” final, tratará de demonstrar como sentimentos nefastos ou malfadados nunca se resolverão com um simples “partir de pedra”.