He was in a convoy of unknown size, each car keeping the one ahead in taillight range, like a caravan in a desert of perception, gathered awhile for safety in getting across a patch of blindness.
Thomas Pynchon, Inherent Vice
Numa descomunal trip de ácido, o dono de um império imobiliário tem uma visão que o leva a querer mudar drasticamente de vida. Procurando redimir-se de ter cobrado dinheiro por abrigos humanos a vida toda, decide financiar a construção de uma cidade no deserto onde qualquer pessoa possa viver de graça – cidade que pretende baptizar de Arrepentimiento. O multimilionário desaparece misteriosamente pouco tempo depois de ter a sua epifania, sendo mais tarde reencontrado num asilo, entre pacientes hippies forçados a fazer maratonas de filmes de propaganda anti-comunista. É lá que acorda do seu pesadelo hippie e recupera a sua sanidade mental – afinal de contas, não passou tudo de uma visão. Quanto à resolução do enigma da sua desaparição, esta cabe ao corajoso – e invariavelmente pedrado – detective Larry “Doc” Sportello, protagonista e herói do filme Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014) de Paul Thomas Anderson, primeira adaptação cinematográfica de um livro de Thomas Pynchon.

Mais do que um neo-noir envolvendo um cartel de heroína indo-chinês, mortes de dentistas em acidentes de trampolim ou substâncias exóticas da mais variada ordem, Inherent Vice é uma história de fantasmas. Fantasmas de uma era perdida e, acima de tudo, fantasmas de uma relação acabada. Doc vive assombrado por memórias de tempos passados com a sua ex-namorada, Shasta Fay Hepworth. E se o filme abre com o aparecimento inesperado de Shasta em casa do detective, como uma alucinação nocturna, o ansiado reencontro ganha rapidamente contornos de um mero rendez-vous profissional, numa cena diametralmente oposta ao momento apoteótico de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) de Hitchcock. Neste, Judy encarna por completo o fantasma de Madeleine para poder ser amada por Scottie, emergindo como uma aparição fantasmagórica que se materializa ao som triunfante da banda sonora de Bernard Herrmann. Por contraste, Shasta surge vestida de uma forma que a torna dificilmente reconhecível aos olhos de Doc, como uma Madeleine negada, como se a orquestra de Herrmann teimasse em não tocar. As expectativas de Doc são quebradas pela conversa e distância mantida por Shasta, ou como nota a narradora, por uma combinação densa de ingredientes faciais que o protagonista não consegue interpretar de todo. A ex-old lady por si idealizada, hippie de biquíni e T-shirt desbotada, transformou-se em algo de novo e incompreensível para o detective, como um fantasma que se recusa a materializar-se, uma visão que intensifica a obsessão.


Mesmo após esfumar-se ao som do krautrock dos Can, a femme fatale não deixa de acompanhar Doc ao longo de toda a sua aventura. Apesar da rara presença física de Shasta no grande ecrã, o filme parece construído de modo a conferir-lhe uma omnipresença fantasmagórica. E a conversa subliminar que o detective trava cena após cena com a sua ex-namorada revela-se crucial para a resolução do seu emaranhado de casos. Com efeito, por mais que pareça perder-se em deambulações psicadélicas, Doc nunca perde o fio à meada graças à intervenção directa ou indirecta de Shasta, que assume sempre o papel de guia e anjo protector nos momentos decisivos – repare-se na forma intrigante (e oportuna) como aparecem o seu postal, o seu colar, a gravata com a sua imagem pintada à mão ou a cunha de plástico com o seu nome gravado. Se é verdade que todos estes MacGuffins alucinogénicos já estão presentes no livro, é também inegável que os meios do cinema permitem a Anderson explorar de forma singular a dimensão espectral de Inherent Vice. Para tal, o realizador norte-americano detém-se na linha ténue que separa a realidade da imaginação do seu protagonista, envolvendo-o num jogo de incertezas visuais, fazendo os seus interlocutores aparecer ou desaparecer subitamente entre raccords ou justapondo as personagens através de numerosos dissolves. Veja-se, por exemplo, a sequência em que Doc se dirige de carro para o local de construção das Channel View Estates. Inicialmente, vemos a sua gal pal Sortilège no lugar do passageiro, em primeiro plano, antes de um corte para uma nova perspectiva sobre o interior do carro nos revelar o condutor a sós. É assim que Joanna Newsom se transforma na enigmática narradora do filme, que funciona simultaneamente como uma espécie de sexto sentido de Doc e uma encarnação elusiva de Pynchon.

Esta não é, porém, a primeira nem a última vez que Anderson recorre a este conjunto de técnicas para gerar um clima de tensão entre o real e o não real daquilo que é visível para os protagonistas dos seus filmes. Em Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017), e como o próprio título indicia, a dimensão espectral assume uma dimensão preponderante, com a presença-fantasma da mãe falecida do protagonista a fazer-se sentir em várias sequências. A morta chega mesmo a tornar-se visível no primeiro devaneio febril induzido pelos cogumelos venenosos de Alma, surgindo num plano subjectivo que nos revela a visão alucinada de Reynolds. Também em The Master (O Mentor, 2012), a visão do espectador confunde-se repetidamente com a visão delirante de Freddie Quell – ex-combatente de inspiração pynchiana que, tal como Doc, é interpretado por Joaquin Phoenix. Um dos maiores exemplos encontra-se na cena em que Lancaster Dodd canta I’ll Go No More A-roving with You, Fair Maid, rodeado de membros do seu movimento, enquanto Freddie assiste de olhos entreabertos, inebriado. Se a princípio nada de anormal parece ocorrer na transição de planos, tudo se altera quando um plano nos mostra as mulheres no enquadramento subitamente nuas. A sugestão da percepção alucinada de Freddie é concretizada através das contradições no raccord – as mulheres que a princípio dançavam vestidas são as mesmas que, numa fracção de segundo, reaparecem totalmente despidas. Por breves instantes, o espectador estabelece uma afinidade perceptiva com o protagonista fantasioso, e o filme torna-se o filme da cabeça e dos olhos embriagados de Freddie Quell.


O cinema de Anderson tem assim vindo crescentemente a abraçar uma nova dimensão de miragem, assimilando de forma cada vez mais literal o ponto de vista das suas personagens principais, sóbrias ou alucinadas. Através deste dispositivo, o real, o visto, o imaginado e o virtual coincidem num mesmo plano em que se dissolvem as diferenças, dando-se um engrandecimento do real percepcionado, amiúde associada ao consumo de drogas – bebidas alcoólicas, haxixe, cogumelos. Ironicamente, no caso de Inherent Vice, é este processo que permite expor as mãos invisíveis Reaganistas e os caminhos do intimidante labirinto de complots onde se perdem os hippies de Gordita Beach. É através dos olhos pedrados de Doc Sportello que conseguimos ver as forças que se movem nas sombras do mundo de Pynchon, um mundo bem real e bem profundo, que é também o nosso. Percorrendo um árduo caminho envolvendo delírios, associações paranóicas, flashbacks melancólicos e impulsos extra-sensoriais, o protagonista consegue tornar visível – para si e para o espectador – o invisível, desmascarando inúmeros esquemas, ajudando-nos a descortinar uma multiplicidade de vícios intrínsecos a um modelo de sociedade massivamente importado dos Estados Unidos no último meio século.
O livro termina com um Doc solitário ao volante da sua caravana, preso num denso nevoeiro cobrindo a Santa Monica Freeway. O detective avança lentamente, guiado apenas pelas luzes traseiras do carro à sua frente e ajudando da mesma forma o condutor na sua retaguarda. É deste modo que os condutores conseguem atravessar em segurança aquilo que o escritor norte-americano descreve como um “deserto de percepção”. Mas o livro acaba antes do nevoeiro se dissipar, deixando Doc envolto numa nuvem de incertezas. Por sua vez, Paul Thomas Anderson parece impelido a alterar este fim, com o intuito de recompensar o herói do seu filme. Na cena final, vemos Shasta no interior do veículo, encostada ao ombro de Doc, confirmando em definitivo a desejada materialização do fantasma. E se num primeiro instante o protagonista parece atordoado pelo nevoeiro que tapa a auto-estrada, tudo muda quando uma luz se fixa misteriosamente no seu olhar. Como se Pynchon conduzisse outro carro por perto e, numa intervenção luminosa, lhe contasse todos os segredos do universo, emprestando-lhe por breves instantes a sua visão omnisciente. Doc, mais sóbrio do que nunca, esboça um sorriso esclarecido, vendo, por fim, a praia que se esconde sob a calçada.