Buster Keaton, Jacques Tati, Woody Allen, Nanni Moretti, João César Monteiro, Clint Eastwood, Takeshi Kitano, Elia Suleiman, são cineastas que se colocaram em frente da câmara. E existirão outros. O facto de filmarem o seu próprio corpo, e de assumirem identidades que por vezes se confundem com aquilo que julgamos saber da pessoa que são na vida real, leva para alguns destes filmes o pendor confessional, quando não mesmo diarístico. O efeito de autoria sai reforçado. Eles filmam-se a interpretar o que tinham escrito antes, fosse pura ficção ou parcial autobiografia. São filmes e realizadores que ocupam um lugar distinto pelo facto de se implicarem totalmente no que fazem. It Must Be Heaven (O Paraíso, Provavelmente, 2019), de Elia Suleiman, pertence a essa classe de autores do cinema, e a curiosidade do filme estrear num momento em que é reposta, ainda que muito pontualmente, a cópia restaurada de Caro Diario (Querido Diário, 1993), de Nanni Moretti, sugere a leitura do novo Suleiman como se tratando de um diário da vida deste realizador palestiniano, igualmente dividido em três capítulos, um para o seu país, e os restantes para as cidades de Paris e Nova Iorque.

Onde quer que tenha lugar a acção de It Must Be Heaven, o filme faz-se da repetição de motivos visuais ou dramáticos, e de um rigor geométrico que tanto se aplica à casa do realizador, como aos campos por onde passeia e onde viverá o seu episódio do “cântico dos cântaros”, como ao desfilar de mulheres belas de saias curtas e pernas longas nas ruas parisienses, ou num ecrã de umas galerias que Suleiman avista do quarto do hotel, como ainda às linhas que os tapetes verdes e as árvores do Central Park estabelecem entre si. Elia Suleiman pode ser visto como um palestiniano moderado, e os seus filmes são sempre políticos mas num sentido doce. Existe no entanto um tema que se sobrepõe aos demais, e que vemos inscrito no nome de uma livraria que existe mesmo em Paris, a L’Humaine Comédie, situada na Île-de-France É para isto que Elia Suleiman aponta a câmara, com uma encenação mais naturalista nuns momentos, e mais fantasiosa noutros. A comédia gerada pelas vidas banais que as pessoas levam todos os dias, em todas as partes do mundo. A este título, o episódio do vizinho de Elia Suleiman que lhe cobiça os limões é particularmente suculento. O homem dedica-se àquele limoeiro partilhado diariamente, seja para apanhar os frutos, seja para regar ou podar a árvore, com o intuito de que os próximos limões sejam ainda mais bojudos.
É cinema de episódios e cinema do episódico, daquilo que sem darmos por isso faz de nós o que somos, e que pode verter-se em nostalgia quando dobramos a metade da vida.
A personagem de Elia Suleiman é a de um observador não participativo. Quase não fala, e a única vez que o ouvimos abrir a boca é para dizer a um taxista negro norte-americano que é natural de Nazaré e que é palestiniano, o que deixa o condutor num estado de euforia como se estivesse a transportar uma figura do Novo Testamento, a quem aliás não cobrará tarifa. E é nesta cidade que Suleiman sonhará com um país onde toda a gente anda armada com pistolas e metralhadoras, por contraste com os jovens palestinianos que no primeiro terço do filme se lhe atravessam no caminho com paus e catanas, sugerindo uma qualquer ameaça que dá em nada. Muitas coisas dão em nada em It Must Be Heaven, como se o realizador filmasse o nosso mundo como o paraíso do efémero. Daquilo que se esgota antes de acontecer, ou que se esquece mal tenha sido vivenciado. Continuamos, como se vê, no plano da comédia humana, num filme que celebra os pequenos prazeres: um cálice de licor Chartreuse, ou vários, a beleza feminina que o simples soltar do cabelo pode estabelecer como uma epifania, o frondoso limoeiro pleno de fruta viçosa, a pacatez do lar onde o nosso anonimato é uma benção, ou um pardal que nos entra pela janela titubeante, e que ajudamos a que recupere ao ponto de se vir a tornar companhia inoportuna. É cinema de episódios e cinema do episódico, daquilo que sem darmos por isso faz de nós o que somos, e que pode verter-se em nostalgia quando dobramos a metade da vida.