“Eu sou um daqueles artistas que cria a sua obra partindo de si mesmo. O professor que bate no rapaz em Mosafer (O Viajante, 1974) sou eu adulto. E o pai que descura o filho, sou também eu. São duas faces da minha figura de pai”.
Abbas Kiarostami
O Viajante, a primeira longa-metragem de Abbas Kiarostami, produzida ainda no âmbito do trabalho do cineasta no Departamento de Cinema no Instituto para o Desenvolvimento Intelectual de Crianças e Jovens, no Irão anterior à Revolução Islâmica (1979), foi o culminar de um primeiro conjunto de curtas-metragens entranhadas no universo da infância. Primeiro filme iraniano rodado com som directo, numa produção sujeita à fragilidade dos meios – uma câmara barulhenta (Arriflex) e um pequeno gravador – , mas onde encontrámos, desde logo, vários temas que o cineasta usaria para pontuar a sua obra, como o interesse pelo real, uma ideia de percurso a conduzir a narrativa, o protagonismo entregue a personagens obsessivos e solitários, muitos deles crianças, o que libertaria a obra de Kiarostami do teor didáctico do contexto de produção, para a identificar, mais uma vez de forma redutora, filiada no neo-realismo de Rosselini.
Numa pequena povoação rural do norte do Irão, delineada por pequenas ruas e por um edificado que nos remete para os espaços pouco urbanos, e para a compartimentação das habitações, da Trilogia do Terramoto (ou de Koker), que Kiarostami iniciou com Khane-ye Doust Kodjast? (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987), o protagonista Qassem, de 12 anos, troca com frequência os trabalhos de casa por jogos de futebol, em campos improvisados nas vielas, para onde carrega as balizas portáteis do qual é o fiel depositário. É um mundo à escala da infância, delimitado pelas relações entre uma casa salubre mas pobre e a escola com mobiliário obsoleto, com a mediação da rua, espaço de emancipação, entre a repreensão da família pela dedicação única ao futebol em detrimento da aprendizagem, que inclui atrasos e faltas às aulas, que Qassem resolve com recurso a vários expedientes, a invenções que se articulam como ensaios para o simulacro que constituirá o centro do filme.
A família reunida, sentados numa disposição triangular. A mãe, enquanto cose uma peça de roupa, queixa-se do trabalho, que está sempre a lavar e a secar roupas e que o marido não educa o filho, que assim voltará a repetir o ano na escola. O pai, carpinteiro de ofício, fuma e parece divagar, passivo perante os queixumes da mulher. Enquanto isso, o olhar do rapaz rastreia os elementos mais valiosos do espaço, uma jarra, a pulseira da mãe e o relógio do pai. É uma síntese de uma sociedade patriarcal, com carências sociais e de educação, uma ausência de diálogo entre gerações que Kiarostami explicita com duas acções que fecham a cena: a mãe atira a peça de roupa, depois de a costurar, na direcção do filho; o pai atira dinheiro na direcção da mãe, para uma cerimónia religiosa. Na manhã seguinte, é a mãe que visitará o professor, para lhe perguntar se o filho faz os trabalhos de casa, porque ela não sabe ler nem escrever, e por isso não pode verificar. O professor diz-lhe que Qassem não é uma criança, é um monstro que vira a escola do avesso e que se exige mais aos pais do que inquirirem o professor uma vez por ano para lhe exigir resultados. A mãe conta ao professor que o rapaz adquiriu um novo hábito, ao roubar dinheiro nessa manhã, algo que o espectador testemunhou e que até conhece a razão: Qassem precisa de comprar um bilhete de autocarro para Teerão, para assistir a um jogo de futebol. A mãe depositará, então, no professor, a autoridade de inquirir e castigar o rapaz, como se ele fosse um representante da lei.
Em relação à cena do espancamento de Qassem pelo professor, vale a pena olharmos para o tom confessional do depoimento de Kiarostami, na sua relação com os “actores”, da autenticidade que espera deles, das vagas indicações que lhes fornece: “A cena do espancamento é verdadeira: fiz um acordo com o protagonista. Perguntei-lhe o que queria em troca de dez pancadas, porque não havia uma verdadeira razão para o castigar, mas por outro lado não podíamos simular o espancamento; por isso, em troca, ele pediu-me um fato de treino e uma bola de futebol. Quando começamos as filmagens, a cena era tão verdadeira que eu próprio fiquei impressionado: parecia um castigo a sério. Embora o professor, o rapaz e a mãe soubessem que estávamos a filmar, vê-se o professor a agarrar na cabeça do rapaz e a torcer-lha. Eu estava sentado debaixo da câmara e gesticulava para ele parar de lhe bater porque estava impressionado com aquilo. Mas ele não percebia o que eu queria, aliás percebeu que devia continuar com as dez pancadas e, ao mesmo tempo, virar-lhe a cabeça na direcção da câmara para que o enquadramento saísse melhor. Apesar de tudo, a cena era verdadeiramente realista: não disse à mãe para voltar o rosto enquanto o filho era espancado, mas, durante a cena, a mulher voltava-se mesmo, para não ver o filho maltratado. (…) Era um daqueles planos-sequência que nunca deveriam ser cortados”.
As declarações do cineasta confirmam, então, uma obra em diálogo aberto com o real, como um embate, com pessoas (actores) que se confundem com personagens (e as suas representações) e locais (reais) com cenários, que não cabe nas gavetas da ficção e do documentário, onde talvez se possa adoptar a categoria híbrida da simulação, conforme a definição de Gregory Currie, pois estamos perante uma narrativa exercida sobre vestígios autênticos (as pessoas/personagens colocadas nos locais dos acontecimentos), mas com uma notória recriação por parte de Kiarostami, que também conta com a disponibilidade de todos os intervenientes para participar, para brincar à ficção, algo que na obra do iraniano conheceu um culminar em Nema-ye Nazdik (Close-up, 1990). Há depois uma cena muito curiosa, Qassem e o amigo fazem contas ao dinheiro que o protagonista precisa para a viagem e para o bilhete para o jogo de futebol, é uma aula de inglês, em que o professor, que manda os alunos ler a lição, está tão ausente (olhando para o exterior da sala, enquanto toma notas, que podem ser um poema…) e arriscamos que este professor também é Kiarostami, como o pai negligente e o professor castigador: o carácter escapista, fantasista, do cinema permite concretizar esta ideia de podermos ser outros, de ultrapassarmos frustrações e de até as usarmos como degraus para atingir o estado de nos vermos outros, uma ficção que empurra para lá dos limites das vidas, da realidade e que encontra em Kiarostami um cúmplice, um dos demais participantes da ilusão.
Qassem tenta vender uma máquina fotográfica usada, mas os comerciantes oferecem-lhe pouco, pois dizem-lhe que não está a funcionar, faltam-lhe peças do mecanismo interior. A câmara de Kiarostami revela o reiterado trabalho com crianças, ao registar a energia quase animalesca das acções do protagonista, num misto de desafio das regras e da lei e de uma angústia, em nome da satisfação de um desejo íntimo. Como acontece em grande parte da obra do iraniano, há um parceiro que auxilia o protagonista, que procura por um lado ajudá-lo a satisfazer os tais desejos, mas que também lhe apela à razão, como o colega de carteira faz com Qassem, tentando convencê-lo a estudar a lição, num filme em que o tema da aprendizagem, das várias aprendizagens, articula um paralelo com as ambições do protagonista. Com o auxilio do amigo, Qassem simula a execução de retratos dos colegas de escola com a sua máquina fotográfica vazia, a troco de dinheiro, ensaiando com os retratados as poses, a colocação das mãos, os sorrisos, com o compromisso que entregará as fotografias após a revelação. Olhámos, então, para Qassem, como um estudo, um prenúncio para Sabzian, que enganou uma família passando-se por realizador em Close-up, através do uso simbólico da câmara, o olho do realizador Kiarostami (também fotógrafo), um protagonista retratado para lá do burlão, um fantasista num contexto social desfavorecido, uma observação do Irão e da sua população, mas também uma oportunidade de ponderar sobre o cinema, as suas possibilidades e as suas fabricações, o simulacro como o tema nuclear, um convite à imaginação e à reflexão do espectador sobre o original e a cópia, o verdadeiro e o falso.
Alain Bergala, a propósito da Trilogia do Terramoto, identifica o centro desta fase da obra de Kiarostami entregue à infância, nas relações entre o funcionamento simbólico da lei e a formação como passagem da dependência à autonomia, que já encontramos em Mosafer: “Em Kiarostami, esta etapa da aprendizagem tem sempre uma conotação geográfica. Corresponde à saída de um território conhecido, o território familiar e à exploração de uma região estranha onde a criança vai encontrar um espaço novo. A criança vai assim ter de enfrentar um território cujo mapa não possui e no qual vai ter grande dificuldade em se orientar, porque todos os guias que vai encontrando acabam por baralhá-la, espalhando mais dúvidas”; “Kiarostami é muito hábil, faz uma análise calma, aparentemente sem implicações políticas, sobre a transmissão das tradições de geração em geração. Esta transmissão, muitas vezes surda e cega, da lei, talvez seja o aspecto mais doloroso dos seus filmes. Ao sair do território (…), é preciso enfrentar as forças da lei, sempre ambíguas e cheias de mistério, e este frente a frente é uma forma de testar a força do próprio desejo ou da ideia fixa: vê-se até que ponto uma criança, com base nas suas capacidades, está em condições de afirmar o seu próprio desejo numa sociedade onde é muito difícil exprimir e fazer valer o desejo”. Mosafer anuncia a grande viagem ao pontuar várias sequências com uma ideia de percurso, de pequenas e grandes viagens, como uma boleia de Qassem numa carroça puxada a cavalos que faz uso das sombras primordiais do cinema, ou o trajecto por túneis que ligam uma cidade já nocturna, como um atravessamento do tempo para a grande viagem da aprendizagem, da disputa pela emancipação de que nos fala Bergala.
Uma viagem de autocarro ao longo da noite, para os cerca de 300 quilómetros que separam Qassem de Teerão, com o rapaz desperto e cercado pelos demais ocupantes adormecidos e por uma escuridade interior e exterior associada a uma banda sonora fatalista, que procura resolver as precariedades técnicas, na deficiente iluminação e na captação do som directo, mas que se revelam eficazes a abrir a porta a uma atmosfera de fábula e temor, que se estenderá até ao final do filme. Na manhã seguinte, a hábil montagem de Kiarostami liga os pontos de vista do rapaz ansioso na fila, com a entrega de bilhetes e a troca de dinheiro no guichet e os planos laterais com a fila de homens a mover-se, até que os bilhetes acabam e a polícia afasta as pessoas da bilheteira. Qassem começa, então, num rodopio de perguntas e movimento à caça de um bilhete, com Kiarostami a acentuar a aflição do rapaz ao suprimir os diálogos e sobrepor a música, o que nos coloca de novo em diálogo com Close-up, e conforme nos avisara Bergala, com o contributo de Michel Serres, acentua a desorientação a que a exposição do rapaz a um território novo convoca, com os adultos e a autoridade a não constituírem um auxilio: “sem errância, sem exposição ao outro, muitas vezes perigosa, não existe aprendizagem”. Em Close-up, é o realizador Makhmalfab quem vai esperar Sabzian, após a libertação deste da prisão, com o intuito de visitarem a família enganada pela fantasia do angustiado protagonista. A viagem é mais uma vez o motor da narrativa, de encontro e de resolução do conflito: a motorizada com os dois homens, o original e a cópia, arranca, ganha alguns metros ao veículo que transporta a câmara e o som intermitente é substituído por uma música resgatada da banda sonora de Mosafer, filme que Sabzian invocou (no julgamento) como uma influência na sua conduta, talvez por encontrar empatia com a agonia de Qassem. Depois de toda a exposição de Sabzian, Kiarostami permite que aquele fique a sós, na intimidade, com o seu ídolo: Sabzian encosta a boca ao ouvido de Makhmalbaf, um ramo colorido de flores exalta o quadro, o que definiria para grande parte dos espectadores, como o píncaro poético do filme. Kiarostami desmonta o nosso lirismo e confessa que a sequência foi especialmente difícil de concretizar pois Sabzian, ao contrário de Makhmalfab, não sabia que iria cruzar-se com o realizador, nem que este encontro seria registado por uma câmara escondida: “Isso causou-nos problemas porque uma pessoa trabalhava para a câmara e a outra para si própria”. Quando estava a montar o filme, Kiarostami ter-se-á apercebido que “o diálogo entre ambos não era interessante, eram dois monólogos contrapostos”, pelo que o cineasta assegura que esse diálogo final, como tinha sido registado, iria dar um novo rumo ao filme e serviria não para concluir a narrativa, como Kiarostami pretendia, mas sim para a relançar e iria transformar Makhmalfab em protagonista, algo que não interessava claramente a Kiarostami. Assim, o cineasta teve a ideia de cortar os diálogos e substitui-la pela música de Mosafer, pois apesar de não ser essa a sua “intenção inicial, era a única solução para ultrapassar este problema.” O técnico de som recusou-se a fazer este corte e acusou Kiarostami de “espoliar o som do filme com as suas próprias mãos”. Kiarostami concretizou, assim, ele próprio este corte na banda-sonora.
Qassem arranja um bilhete na candonga e entra no estádio. A sequência nas bancadas, com o rapaz cercado pelo público e pelo som directo, adopta um tom documental, com Kiarostami a fazer passar um discurso social quando ouvimos um diálogo entre dois homens, em que um deles, inquieto, diz estar desempregado há algum tempo. O protagonista, como ainda faltam três horas para o inicio do jogo, pede para um adulto lhe guardar o lugar e percorre as imediações do estádio, observa atletas a treinar, conversa com trabalhadores que montam um pavilhão, como um continuo processo de aprendizagem perante a realidade de um novo território, até que observa um grupo de crianças numa piscina interior e inicia um diálogo de olhares com um rapaz, através do ecrã envidraçado: a idade aproxima-os, mas as vivências, a instrução e a urbanidade, estão a uma vasta distância, da província norte à capital Teerão. Depois, Qassem cede por fim ao cansaço e deita-se num relvado, junto a outros homens, que também aproveitam a sombra das árvores, num enquadramento espantoso, um plano inclinado como uma pequena floresta encantada que, a exemplo do que sucede em toda a filmografia de Kiarostami, usa soluções simples para aceder a resultados sofisticados. Enquanto que os outros homens se vão levantando, Qassem é arrastado para o sono e o espectador recebe imagens isentas de som e banhadas por uma luz clara que sinalizam o sonho, intercalado pelo corpo do rapaz que se contorce: na escola, o protagonista é ameaçado pelos colegas e pela mãe, há alguém que o castiga. Se o pesadelo de Qassem pode, também, ser olhado pelo espectador como uma supressão temporal, uma antecipação do regresso a casa, Kiarostami dá-nos um epílogo, da frustração depois do sonho, como uma materialização imagética da angústia da infância: um plano aberto, com bancadas vazias de público e cobertas de lixo, acompanhará a última corrida do rapaz, até desaparecer do ecrã.