Eis o nosso novo mundo: esplanadas amedrontadas com as cadeiras batendo em retirada das nádegas redondas dos potenciais clientes infectados; discotecas por lei cerradas que adiam o “pisanço da uva” debochada de solteirões com o cio; restaurantes de barriga vazia onde nem ternos amantes podem dividir sobremesas com a mesma colher; fuga para quartos côncavos, higienicamente longe de outros corpos (até o mais esbelto e saudável pode carregar a centelha da morte), em que a ementa do dia é atum enlatado (ou Uber eats para os casais, de modo a evitar escabeches conjugais vários), uma série da Netflix que nem se desejava assim tanto ver, e o pecado patético na palma da mão – impossível distanciar-nos socialmente das próprias partes baixas quando as dos outros nos são por tanto tempo negadas. A era do confinamento, sendo a da desconfiança do outro é, pois, a era do onanismo: nela podem-se jogar, sem culpa ou pudor, as nossas fantasias narcísicas de Robinson Crusoé isolado no seu acontecimento existencial, liberto desse inferno de responsabilidades e pedidos que são as outras pessoas. Cada torre de marfim guarda um eremita digital, um académico de trazer (e ficar) por casa, um maratonista da cultura cujo consumo compulsivo dela se faz na exacta medida do tédio dele.
A humanidade lá fora, apagada mas ainda presente por insistência do real, confunde-se agora no seu carácter virtual: os amigos de pijama numa chamada rápida de zoom, o patrão compreensivelmente querendo encurtar o período de lay-off, uma senhora de boca aberta noutra discreta tab de internet experimentado êxtases encenados que os seus pais desejariam não ter conhecimento. Todos foram reduzidos a imagens, a instrumentos bidimensionais de convivência de um vidente com “todo o tempo para si próprio”. Esta descoberta de ampliação temporal, contudo, não faz prever que mais tarde ou mais cedo se esteja destinado a cair na repetição e na confirmação sucessiva de uma mania rotineira, porventura mais frustrada do que a anterior de que se julgava estar a superar. Por mais sedutora que possa parecer a total autonomia de um náufrago entre quatro paredes, acabamos sempre a falar sozinhos, balbuciando dementes mesmidades, sonhando com o outro que também podemos sempre encarnar e que dificilmente se dissipa mesmo quando só a total solidão nos habita.
E assim começou a era do desconfinamento: a nostalgia de sermos agredidos por outros que não nós mesmos, aquela saudade primata de catarmos os piolhos daqueles que gostamos na esperança que eles façam o mesmo por nós. A abertura da civilização é ainda tímida e periclitante: tememos pela saúde como alguém ciente da sua virgindade numa sala repleta de ex-presidiários. Sair de casa equivale a pôr o escafandro e explorar as ruas que sobreviveram, mas quero acreditar que a vontade de o fazer cresce a cada dia que passa. E o cinema? Impossibilitado pelo potencial contagioso – como é estranho agora permanecer na mesma sala durante tanto tempo com indivíduos dos quais nada sabemos do historial infeccioso – só agora vai abrindo as portas. E há qualquer coisa de paradoxal nessa habitação a que nos fomos habituando ao ponto do não esclarecimento. A sala de cinema, sendo o local da projecção individual por excelência (ninguém vê o mesmo filme), necessita da comparência tácita dos outros corpos para engendrar o seu impacto único, esses corpos que respiram, tossem, riem, choram, beijam-se e, em certos locais, trincam milho rebentado.
Perguntamos agora: haverá género cinematográfico em que essa presença mais se faz notar do que no filme erótico? Cremos que não. Se num ecrã de computador o erotismo consiste numa amestração ocular, numa privacidade pantanosa, enfim, num servilismo genital desprovido desse outro que refreia os caprichos de um eu incontinente; na sala de cinema todos os gemidos de deleite, todos os topless marotos, todas as cenas de cama reconduzem-nos à pressão desse olhar imaginado dos outros (e o nosso também é imaginado assim por eles). Uma presença contida mas dispersa que tem tanto de desconfortável como de redentor. O acto sexual tornando-se numa cerimónia semi-pública, reveste esses corpos estranhos de uma gravitas não menos desconcertante: o princípio do prazer vivido torna-se em princípio de morte contemplado em grupo. Em plena altura de desconfinamento, o ciclo arriscado de 10 filmes proposto pela Leopardo Filmes reitera esta necessidade, hoje ainda mais rara pelos motivos que sabemos, de poder experimentar a estética sensual japonesa nas barbas de outros espectadores, ou seja em sociedade, como que deslocando o âmbito do filme erótico do privado para o público, assim invertendo os hábitos actuais de consumo deste.
Desengane-se, todavia, o francês em nós que atribuí qualidades museológicas e refinadas a tudo o que respira. O contexto de produção e distribuição do chamado Roman Porno da Nikkatsu nunca pretendeu arrebatar críticos nem cinéfilos – e não obstante fê-lo, só que inadvertidamente. Consistiu, na verdade, numa mudança impensável de estratégia do estúdio nipónico fundado em 1912, o mais antigo, que, nos inícios dos anos 70, mediante o abandono dos espectadores das salas de cinema “regulares” graças à televisão, e inspirado pelo sucesso financeiro tremendo do cinema pink (veja-se que, no ano de 1965, para 277 filmes de estúdio havia 225 pink produzidos), decidiu virar quase exclusivamente a sua atenção para filmes em que o sexo era o primum mobile. Normalmente, três filmes de hora e pouco (um pink repescado e dois produzidos pela Nikkatsu com orçamentos individuais que rondavam aproximadamente os 7,5 milhões de yen), eram emparelhados numa única sessão e, bimensalmente, o estúdio renovava os títulos das triple-bills dos seus 109 cinemas espalhados pelo país inteiro. Este ritmo frenético de produção – curtos períodos de rodagem com equipas reduzidas, som pós-produzido e uma quota mínima de cenas de sexo simulado onde os genitais eram censurados sob pena de acção judicial – manteve-se quase inalterado desde Novembro de 1971 até Maio de 1988, ano em que a Nikkatsu estancou de vez a linha de montagem devido a um novo inimigo: o home video.
Durante o tempo em que esteve activo, no total perfazendo cerca de 850 longas-metragens, o Roman Porno (de roman pornographique, o termo literário francês pretendia credibilizar o género e ao mesmo tempo distanciar-se dos vadios pinks, rodados com metade do orçamento dos primeiros) representa a última tentativa do sistema de estúdios japonês em homogeneizar o seu trabalho, povoando as suas salas com um novo tipo de program picture para homens ou jovens adultos que iam ao cinema, acima de tudo, para fantasiar e evadir-se. Como nos propõe Alexander Zahlten no excelente estudo The End of Japanese Cinema, isto evidencia uma certa domesticação de um cinema erótico prévio, clandestino, que tinha nascido espontaneamente da tentação de quebrar as barreiras da obscenidade e explorar o marasmo e a confusão moral do pós-guerra. Porém, se houve artisticidade neste novo género (e certamente houve, não em tanta quantidade como se julga), ela nasceu das raízes da própria indústria, sendo que os mesmos pressupostos da teoria dos autores podem aplicar-se sem mudar em nada as suas implicações especulativas. Aqui era o carácter massificado que permitia hiatos de criatividade; era o espírito laissez-faire o garante de excepcionais experimentos cinemáticos – muitas vezes só reconhecidos postumamente. A liberdade media-se entre as obrigatórias cenas carnais a cada 10 minutos, mas mesmo essas eram, por vezes, sujeitas a escrutínio e intervenção crítica – veja-se, mais à frente, o caso de Tatsumi Kumashiro.
Porque actualmente a nostalgia serve de critério de mercado, em 2016, para celebrar o 45º aniversário da estreia do primeiro Roman Porno, a Nikkatsu convidou cinco realizadores contemporâneos a retomar, por tempo limitado, a linha descontinuada. São esses cinco filmes modernos que acompanham e dialogam com outros cinco da velha escola (podendo compor cinco double-bills esboçadas pelo espectador) a proposta de Verão da Leopardo Filmes. Os raccords são mais evidentes nuns casos do que noutros e a selecção, se bem que questionável, oferece uma panóplia de estilos e visões diferentes que fazem jus à diversidade que a marca Roman Porno acarreta. Tomemos, portanto, cada presença numa sessão como um encontro privilegiado com esse outro “desconfinado”. Para facilitar as escolhas bem como o investimento monetário e emocional, proponho um entendimento da crítica de cinema como speed-dating. Num curto espaço de tempo e em poucas palavras, veja o consumidor se as primeiras, mais súbitas e brutas impressões (o substrato mais ou menos rígido a partir do qual germina a atracção ou repulsa) o convencem a apostar numa estadia mais prolongada.
Karuizawa fujin (A Senhora de Karuizawa, 1982) + Howaito rirî (Lírio Branco, 2016)
Hideo Nakata tem uma dívida de gratidão para com Masaru Konuma – quem diria que o realizador de Ringu (Ring: A Maldição, 1998), grande proponente do J-Horror na década de 90, se iniciou enquanto realizador-assistente do especialista de películas sado-masoquistas para a Nikkatsu? O discípulo teve oportunidade de redigir a sua carta de amor ao mestre no documentário Sadistic and Masochistic (2000), pintando também o retrato de um boémio inofensivo, contrário em tudo ao demónio que podíamos presumir estar por detrás das câmaras de exercícios-limite como, por exemplo, Ikenie fujin (Wife to Be Sacrificed, 1974) ou, pior, Hako no naka no onna: Shojo ikenie (Woman in a Box: Virgin Sacrifice, 1985). Esse lado mais delico-doce, todavia, vai-se descobrindo à medida que escavamos na sua filmografia e é precisamente essa faceta que Nakata mais parece admirar.
Em A Senhora de Karuizawa, filme mais extenso do que o normal (93 minutos) e produzido para celebrar o septuagésimo aniversário do estúdio juntamente com Jerashî gêmu (Jealousy Game, 1982) de Yoichi Higashi (filme infinitamente superior), Konuma desempenha o papel de tarefeiro institucional, executando um exercício académico destinado a agradar mais aos seus patrões do que a si próprio. Por entre bosques vistosos e uma ambiência afrancesada (as carnes suculentas só se comem com talheres; o amor faz-se em camas compridas, demasiado altas para japoneses), o tépido erotismo filmado com cana de açúcar de uma madame adúltera com um jovem apatetado parece implicar uma crítica à condição burguesa onde a mulher é mero objecto ostentatório e de aparências para reforçar o papel social do homem. O sexo é tanto libertação desse estatuto escravizador como auto-destruição libertina (da família, da monogamia, da maternidade, da vida). Se isto vos parece profundo é porque me esforço para que seja. De facto, A Senhora de Karuizawa não passa de uma pequena curiosidade, filmada com um certo automatismo decorativo, certamente exótico para japoneses e ocidentais, mas por razões diametralmente opostas para cada um deles.
Inspirado por esta estética “algodão-doce”, em Lírio Branco Nakata resgata o assunto da emancipação feminina (será mesmo emancipação ou fetichização?) através de uma aventura lésbica entre uma professora de olaria e uma aluna também por ela adoptada. Nada aqui nos convence: a intriga de iniciação sexual, ciúmes, possessividades e transferências de poder fica-se pela manhosice de um pornógrafo e as cenas “quentes”, a real justificação para tudo o resto, são de um embaraço atroz, já que possuem uma suavidade bacoca bem como metáforas sensuais fáceis – o barro como descoberta de um corpo moldado pelas mãos de outrem ou o cunnilingus às pétalas do lírio que irrompem em gemidos acentuados e histéricos. É, sem dúvida, o capítulo mais inábil do certame, um filme que olvidamos assim que vemos – e não será esta a pior crítica que podemos fazer à pornografia?
Mesunekotachi no yoru (Noites Felinas em Shinjuku, 1972) + Mesunekotachi (O Alvorecer das Felinas, 2017)
Noboru Tanaka, juntamente com Tatsumi Kumashiro e Chûsei Sone, foi talvez o cineasta mais consistente e o mais criticamente aclamado de toda a linha Roman Porno. Licenciado em literatura francesa, Tanaka primou pelo espírito observacional e pela humanidade indelével das suas películas: não há nenhum outro cineasta que tão bem integre as cenas sexuais nas narrativas como ele. Naquele que é apenas o seu segundo filme, em Noites Felinas em Shinjuku, mergulhamos de cabeça no bairro de Tóquio, famoso nos anos 60 e 70 por reunir artistas de vanguarda, vagabundos, fura-vidas, criminosos, e, claro está, trabalhadoras sexuais. São sobretudo as últimas e o universo em seu redor que a câmara insiste filmar em espaços fechados que parecem ser contíguos uns em relação aos outros – janelas destapadas em que casais não param de copular. Sob a forma de discreto caleidoscópio, eis que somos empurrados para o banho turco onde o conceito de massagem ensaboada serve apenas para circunscrever a lei japonesa de anti-prostituição de 1956, o ano de estreia de Akasen chitai (A Rua da Vergonha) de Kenji Mizoguchi – os paralelos entre uma e outra obra são evidentes.
Mas o que distingue o filme de Tanaka de outros em que se aborda a profissão mais antiga do mundo é a sua leveza quase enigmática, característica que só nos filmes de Kumashiro acerca do mesmo métier encontramos eco – evoque-se do último Ichijo Sayuri: Nureta yokujô (Ichijo’s Wet Lust, 1972) ou Akasen tamanoi: Nukeraremasu (Street of Joy, 1974). Jamais nos passa pela cabeça atribuir aqui estatutos de classe opressora e oprimida e mesmo o coito, pago ou gratuito, pratica-se sem culpa, com humor e desenvoltura. As mulheres são felinas, isto é, independentes, nunca verdadeiramente domesticadas por uma sociedade que as faz mercadoria, mesmo quando aparentam sê-lo. Curiosamente, o trauma sexual vemo-lo apenas na figura masculina de um jovem virgem, Makoto, ainda incerto quanto à sua homossexualidade, iniciado cerimonialmente com cantos gregorianos no sexo com o outro género (que cena notável!), para agradar e se aproximar do mentor, Honda, pelo qual nutre, no mínimo, sentimentos platónicos. Quando raia o amanhecer nas últimas sequências, depois de Honda e Masako (a prostituta sob a qual todas as linhas diegéticas convergem), afogarem as mágoas num colchão insuflável durante toda a noite, sabemos que aquele território diurno não lhes pertence. Os estores automáticos das lojas levantam-se, o hemisfério da produtividade, do trabalho e das obrigações desperta. Um carro esguicha água, esperando purificar a rua coberta de lixo e lascívia nocturna onde Honda, silencioso e sonâmbulo, se deita como que indiferente ao seu destino. Energia cósmica desfamiliarizada, o dia depende da noite para se potencializar, mas precisa de a esconder a cada nova alvorada, fazendo esquecer que ela existe de modo a conservar a ordem solar da jornada. Em Shinjuku, no entanto, os guarda-chuva não nos protegem da água, mas depositam-na se os invertermos. Lá, tudo está ao avesso: a noite é dia e o dia é noite.
Na esteira de Tanaka, o Alvorecer das Felinas de Kazuya Shiraishi debruça-se sobre uma temática idêntica, emprestando-lhe inclusive uma palavra no nome, mas vai no sentido oposto quanto ao tom. Há aqui bastante mais “consciência(lização) de classe”, talvez porque a dívida criativa maior de Shiraishi provém do anti-autoritário Kôji Wakamatsu, de quem foi assistente de realização nos últimos trabalhos – o actor Ken Yoshizawa, descoberto pelo autor de Tenshi no kôkotsu (O Êxtase dos Anjos, 1972) cose os trabalhos dos três realizadores na perfeição, interpretando Honda em Noites Felinas em Shinjuku e o velho cliente viúvo no Alvorecer das Felinas. A 10 minutos de metro entre uma e outra estação, de Shinjuku deslocamo-nos para Ikebukuro: do bairro galante, jazzístico e hippie passamos para um de néons incrustados, prédios soturnos e anonimato infrene. A mudança de local, assim como a escuridão da fotografia deslavada e straight to the point, evidenciam já as diferentes perspectivas que cada câmara tem do ofício em causa. Logo nas primeiras cenas, um motorista pergunta a uma call girl (de três, das quais seguiremos as conexões com um trio de clientes) se alguma vez sentiu prazer com um freguês. Pela resposta brusca e negativa, percebemos que estas mulheres vendem o corpo como se ele fosse separado da alma, pretendem sair sem grandes mossas de uma intimidade postiça – quais as alternativas quando se captiva a liberdade em troca do sustento? E pur si muove! Neste Alvorecer, as lágrimas despontam depois de revisitada uma sensibilidade, antes automática e dormente por força das circunstâncias. É a compaixão do lodo, na noite opaca em que nem todas as gatas são pardas.
Tenshi no harawata: Akai inga (Vísceras de Anjo: Red Porno, 1981) + Anchiporuno (Anti-porno, 2016)
A parelha seguinte é toda construída a partir da dicotomia ver e ser visto. Em Vísceras de Anjo: Red Porno, Toshiharu Ikeda encarrega-se de transladar a linguagem do thriller para uma parábola esquiva sobre o fosso entre real e representação fotográfica. Neste caso, uma jovem vive amedrontada pelo espectro de um photoshoot seu publicado numa revista erótica de seu nome Red Porno e ao qual participou sem total conhecimento do que lá se passaria. Em Anti-porno de Sion Sono, por contraste, interioriza-se aquela ideia que todo o filme é um acto de ver consciente e, mediante isso, tudo o que se vê é convertido para o câmbio de ser visto. Na primeira sessão, é a febre escopofílica que se intensifica não só como violência e violação por parte do perpetrador incapaz de destrinçar o real do imaginário, mas também enquanto paranóia claustrofóbica por parte da vítima. Na segunda, são os poderes do efeito da alienação (o velhinho V-effekt dramatúrgico) que permitem puxar uma extrema extroversão para dentro, para o âmbito da reflexividade. São ambos – e por razões antagónicas – os capítulos menos sexy e mais difíceis de digerir desta mostra.
Claramente na fronteira do bom gosto, Red Porno pertence a um conjunto de filmes rodados para a Nikkatsu e não só, conhecidos internacionalmente por Angel Guts – a instalação de Ikeda é a quinta, sendo todas baseadas em argumentos do autor de mangas e, mais tarde, cineasta Takashi Ishii. A série, que alcança em Tenshi no harawata: Akai kyôshitsu (Angel Guts: Red Classroom, 1979) de Chûsei Sone o seu apogeu, comunga das mesmas obsessões – pluviosidade, ambiências urbanas nocturnas, jovens mulheres apelidadas Nami que são perseguidas por um olhar masculino ora feroz, ora melancólico – constituindo um autêntico ramalhete onde o feminino é tanto mistério insondável, como agente passivo de uma vontade de posse premente. Aqui impera a estética do predador sobre a presa, um pouco na senda daquilo que acontece às heroínas de Sade. A câmara quando não adquire a psicologia obsessiva de um stalker perturbado, encena também o pânico de ser vista por ela própria. É simultaneamente actriz e espectadora do crime. Nessa dualidade algo contraditória, vemos transposto o olhar de um cineasta explanando as potencialidades do género erótico, estando ainda muito preso aos seus mais básicos padrões de funcionamento.
Na contra-mão de Red Porno, como poderíamos descrever Anti-porno? Uma matriosca de negações do já tão estafado male gaze e das regras implícitas e explicitas segundo as quais um filme erótico, bem como o absoluto feminino adquirem sentido enquanto objectos de desejo e projecção. Contudo – e esta sentença poder-se-ia aplicar a todo o corpus fílmico de Sono, tipificado por uma execução esquizofrénica que presume, ainda assim, uma linearidade de intenções – à negação não se arrogam nem segundas nem terceiras tentativas. Através da lógica e da matemática, sabemos que uma dupla negação corresponde a uma afirmação: uma outra negação subsequente negaria essa afirmação de negações e se a negássemos outra vez tornaríamos, fatalmente, ao mesmo ponto de partida. Portanto, e de modo a manter a sua inteligibilidade (aqui cortada por uma soma progressiva e auto-fágica de “antis”), uma negação só se pode fazer uma vez. A este tipo de aneantisation específica, Sono chama de liberdade, a verdadeira liberdade, aquela que segundo a protagonista, Kyoko, nenhuma mulher conseguiu ainda dominar – e porque será? Talvez por isso, se há proposta feminista aqui, ela não é um caderno de encargos ou panfleto figurativo dos quais seja simples extrair uma doutrina, mas uma pintura abstraccionista com as suas cores berrantes vomitadas na celulóide, um exercício de destruição circular onde a polaridade moral se diluí no acrílico enquanto a Barcarola de Offenbach ecoa a súmula de uma ironia transviada. A julgar pelas capacidades estridentes de Anti-porno em que toda a personalidade é bipolar, toda a percepção é armadilha meta-fílmica e toda a emoção é pretexto para gritaria, é de esperar que acabemos exaustos a perguntar pela saída, tal como acontece a Kyoko no fim, querendo escapar da mise en abyme de mulheres refutadas pelos olhos dos outros, inclusive os do cineasta em questão. Querer sair da jaula alegórica pode até ser o princípio da realidade, mas Sono no decurso dos seus jogos de espelhos intermináveis, mostra-se demasiado confortável na tortura intelectual (proponho um novo subgénero: intelectualexploitation), talvez nunca conseguindo transcender, por sua própria responsabilidade, a imagem de alguém apenas embevecido pelo malabarismo demiúrgico. Nas suas mãos, não há saída do círculo de Möbius.
Kurobara shôten (O Êxstase da Rosa Negra, 1975) + Jimunopedi ni midareru (Gymnopédies Escaldantes, 2016)
Eis o que acontece quando o Roman Porno olha para dentro e digna-se a zombar daqueles que o forjam. Esta capacidade auto-crítica – particular de um género que desestabiliza a ordem, incluindo a sua – estava também presente em Anti-porno, porém, este duo de filmes concentra-se maioritariamente no papel do metteur en scène. Em O Êxtase da Rosa Negra de Tatsumi Kumashiro, Juzo é um artola quixotesco à procura da musa com o gemido perfeito; em Gymnopédies Escaldantes de Isao Yukisada, Shinji, outro cineasta jactante e em decadência, boceja no set mas recruta admiradoras para satisfazer uma sede lasciva, imatura e desesperada. Tanto um como o outro põem a nu uma indústria feita por homens trapaceiros (não houve realizadoras no Roman Porno, embora argumentistas mulheres não fossem infrequentes), mentirosos e com uma pretensão de grandeza totalmente desfasada da realidade. É o masculino enquanto bouffon com os truques de magia à vista de toda a gente. Uma figura de poder extremada, mas ulteriormente escarnecida.
Nas suas comédias ácidas, Kumashiro não arreda pé de uma insanidade carnavalesca, perto de um sentido de humor com valor antropológico, oriundo de uma classe mais baixa e em vias de extinção já nos anos 70, a era do milagre económico japonês e do nivelamento social. Outras das suas melhores paródias incluem Nureta yokujô: Hirake! Chûrippu (Wet Lust: Opening the Tulip, 1975) onde se narra as desventuras de um virgem e outros pobres-diabos em torno de um casa de pachinko ou Monzetsu!! Dondengaeshi (Painfull Bliss! Final Twist, 1977) com os seus travestis zoófilos, yakuza boçais e prostitutas respondonas. Em O Êxtase da Rosa Negra, faz-se fogo à vacuidade de um realizador pseudo-intelectual que cita de boca cheia a grande arte de Nagisa Ôshima e Shôhei Imamura (e não estará Kumashiro apontando as armas até a eles), mas só consegue agir de acordo com os ditames das partes inferiores. Numa ida ao dentista, Juzo encontra Ikuyo (interpretada por Naomi Tani, a rainha do kinbaku da Nikkatsu) e inicia aquilo que poderíamos chamar de um seductio ad absurdum, um chorrilho de embustices e ficções auto-comiserativas com o objectivo último de a tornar numa estrela porno – “a minha Lady Chatterley”, como acaba por crismar. Este tipo de sacanice cobarde, Kumashiro associa sempre aos homens: ele não a condena narrativamente como um desembargador dos bons costumes mas leva-a ao paroxismo num final consciente da sua insustentabilidade em que até a marcha nupcial sacraliza (por via do freeze frame, dispositivo obsessivo para o cineasta) uma união que teve origem no maior dos assédios.
Não menos devasso e hipócrita é Shinji, o cineasta de Gymnopédies Escaldantes. Durante uma semana, ele vai coleccionando casos vãos com uma aluna, uma actriz e até uma enfermeira, mas o mais fundamental aqui – para além da cena hilariante num Q&A pós-sessão de cinema em que as máscaras pomposas caem umas atrás das outras – é a remissão para um universo assombrado quando a Gymnopédie No. 1 invade teimosamente o campo auditivo de todas as cenas de amor. Como se Shinji não fosse mais do que um necrófilo, usando carnes jovens para rememorar o espírito da pianista amada que ainda o atordoa mas não lhe pode (co)responder. Ele vai fornicando vivos para, assim, se aproximar de alguém prestes a desvanecer do mundo. É o cúmulo da vaidade, se quisermos, o sexo como masturbação de um ideal sempre reconduzido aos devaneios do id – e poderia haver melhor metáfora para um artista falhado do que esta? Lento e doloroso (como a composição de Satie), o processo de luto pessoal constitui-se num bloqueio criativo: o filme fantasmático de Shinji, o único que ele consegue meter em cena, é o da sua vida sexual desapaixonada e inconclusa. O seu bramido mudo congela-se noutro freeze frame literalmente terminal: é a agonia de quem só sabe amar fantasmas, ideias, imagens, estases.
Koibito-tachi wa nureta (Os Amantes Molhados, 1973) + Kaze ni nureta onna (À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas, 2016)
O melhor deixa-se para o fim, diz o povo e não se engana também a este respeito. Por mais voltas e miscigenações que o Roman Porno tenha feito ao longo da sua história, com várias subcategorias de consumo fetichista bem como ensaios de diversificação e amplificação do genre cinematográfico mais clássico, o filme erótico é (ou devia ser) essencialmente filme do corpo e da sua relação com outros. Evitemos, apesar disso, tomá-lo na sua dimensão exclusivamente genital – sabemos como a lei japonesa repudiou e ainda hoje age sobre a reprodução ou representação de orifícios e zonas púbicas por intermédio do artigo 175 do Código Penal e alguns cineastas, incluindo o primeiro deste dueto, perceberam que a luta pela libertação dos conteúdos gráficos só se poderia efectuar exagerando criticamente os mecanismos de censura. O corpo, todavia, entende-se aqui como a acção chocante do silêncio, uma poética do ennui onde a linguagem e o logos se veem limitados – se quisermos, simultâneo interstício e confirmação da igualdade do “vir do nada e ir para o nada” figurado numa irremissível propensão tanatológica. Foi essa autêntica metodologia corpórea que Tatsumi Kumashiro aplicou uma e outra vez na gramática visual das suas películas, principalmente nas mais fatalistas como o são Os Amantes Molhados, Onna jigoku: Mori wa nureta (Woods are Wet, 1973) ou Yakuza kannon: Iro jingi (Yakuza Justice: Erotic Code of Honor, 1973). Entrar em qualquer um destes filmes significa aceitar as premissas de um mundo primitivo onde o conceito de prazer é subordinado ao da comunicação gestual, onde o sexo é atletismo de corpos errantes.
Sendo reconhecido pelo próprio cineasta como tal, Os Amantes Molhados representa um dos picos maiores da estética kumashiriana – vemo-lo projectado numa tela e transmitido num ecrã de televisão nos mais tardios Kamu onna (Love Bites Back, 1988) e Bô no kanashimi (Like a Rolling Stone, 1994). Filmado quase todo em exteriores, excluindo as cenas dentro de um cinema de província reabilitado em salão Roman Porno e uma ou outra mais, o filme desconhece outra língua que não a da vagabundagem. Katsu volta para a terra natal para fugir de um passado ignóbil, mentindo a toda a gente sobre a sua identidade, incluindo a dona do cinema de quem é empregado e com quem inicia um tórrido affair; Yoko e o namorado, sem residência fixa, vão-se entretendo a fazer fogueiras na praia e amor por entre as searas. A fome junta-se à vontade de comer e o encontro dos três desencadeia um conjunto de recreações sexuais (até com outra parceira) que respondem, de alguma maneira, à ambiência desmaiada da aldeia e à monotonia das suas vidas. Kumashiro encara-os enquanto corpos enquadrados pela paisagem litoral e salgada, e, dando espaço para ela se exprimir, aparta-se igualmente da voracidade animalesca dos personagens na maneira como engenhosamente monta a faixa sonora (toda gravada posteriormente), imiscuindo a solenidade de coros folclóricos nas itinerâncias sem nexo, guitarradas espaçadas mas sentenciosas (a banda sonora do fatum) ou voice-overs numa cena brutal de violação. Esse distanciamento evidencia-se também nas grandes barras que cobrem por vezes corpos inteiros, uma provocação propositada para, de certo modo, tornar o espectador plenamente consciente do carácter arbitrário da censura japonesa. Mas arbitrária é também a conduta destas finas existências. Numa das sequências mais poéticas e exigentemente físicas de todo o catálogo Roman Porno, o trio salta ao eixo até à exaustão e nudez, recapturando uma infantilidade cerimonial e absurda que augura a morte – e é o aniquilamento a derradeira etapa da peregrinação dos corpos perdidos. Para Kumashiro, só se canta a efemeridade. Se existe o seu contrário (o freeze frame lúgubre que estagna o fluxo das imagens), ele só existe enquanto lembrete que tudo passa e tudo fenece. Nada sobrevive.
Muitos dos motivos kumashirianos que atrás aflorámos são reformulados em À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas, título que, no original, se aproxima bastante mais dos de Kumashiro: “Mulher molhada ao vento”. Akihiko Shiota não se limita, portanto, a decalcar influências, mas baralha as coordenadas ao estabelecer um diálogo directo com Os Amantes Molhados, primando sobretudo pela chalaça. Anteriormente, a bicicleta sem travões afundando-se no mar cristalizava o momento fúnebre da despedida; agora, possibilita um encontro insólito entre um dramaturgo com ambições ascéticas e uma nómada libidinosa que desafia qualquer tentativa de subjugação e desperta nele todas as pulsões carnais. Aquilo que William Johnson no artigo A New View of Porn cunhou de “ginásticas de Kumashiro” surge aqui em todo o seu esplendor. Fazer sexo é coisa de dançarino olímpico. Suscita nos seus desportistas uma compulsão análoga a um sacrifício da razão e dos preceitos intelectuais segundo os quais o eu se desvenda na solidão. Nessas dinâmicas físicas onde chapadas, pontapés nas miudezas e mordidelas nos mamilos transportam os corpos para o reino das sensações, reencontramos uma comunicação extrema que só o erotismo consegue proporcionar. Ora aqui está um bom exemplo de como se assimilam os ensinamentos de uma estética sem os canibalizar.